quinta-feira, 26 de maio de 2016

I love you Dani Nariz


      De um dia para outro, apareceu pichada em um muro perto de casa a frase “I love you, Dani Nariz” e, desde então, não consigo  parar de pensar nela. Quem deve ser tal Dani Nariz? Alguém do bairro? Alguma aluna de escola lá perto? Ou será que só o pichador é que mora nas redondezas? Aliás, quem é que fez essa pichação? São as perguntas que me atormentam, como se não tivesse coisa melhor para pensar ou fazer...
      Penso todo dia, no congestionado caminho que percorro, inevitavelmente, depois de ler e reler a pichação no muro. 
      O dia a dia acaba me distraindo dessas preocupações, mas, qual o quê, na manhã seguinte, preso ao semáforo, que dá de cara para o muro do cemitério onde resta a suposta declaração de amor, voltam-me os pensamentos todos sobre a Dani Nariz. 
      O que primeiro me incomodou foi pensar se ela gosta ou não do apelido. Seguramente não é um muito simpático a alguém que talvez desfrute de um nariz grande. Ou seria talvez um nariz por demais empinado? E o apelido seria nesse caso apenas uma crítica moral ao seu comportamento arrogante? Não, seria cruel demais. Fiquemos com o nariz um pouco avantajado (e, como acordei otimista hoje, bem sensual... hão de concordar no charme que eles normalmente têm!).
      Quem sabe ela talvez nem ligue muito para esse apelido que grudou nela e, em meio a tantas Bete Bochecha, Lili Língua ou Rita Quatrolhos, o seu até que nem é tão ruim assim. É que quando um apelido pega, não há o que se fazer.
      Ocorreu-me então que talvez esse seja aquele apelido particular que o suposto garoto da declaração usava com ela em momentos mais íntimos (talvez em uma resposta ao apelido que ela lhe dera: Zezinho Pequeno, mas isso já é imaginar demais...). Com o fim do namoro, ela era muito ciumenta, ele se desesperou e, para voltarem a ficar juntos, ele arriscou tudo, até mesmo uma pichação no muro branco do cemitério expondo assim o amor que sente por ela e o seu apelido. Diga-se de passagem, que lugar para se fazer uma declaração de amor!
      Pode ser também que a Dani Nariz nem saiba desse admirador presumivelmente secreto. E, quem sabe, nem viu a declaração mal pintada no muro. E, se viu, pode até ser que nem ligou para isso, visto que já estava apaixonada por outro garoto (um Pepe Espinha, um Caio Caolho, um João Pezão...), ou quem sabe até pela Bete Bochecha. E será que foi a Bete que pichou o muro? Novas possibilidades se abrem, pela letra não dá para se saber se foi um Zezinho Pequeno ou uma Bete Bochecha...
      E passo agora a imaginá-las juntas, nariz e bochecha se encontrando no cinema do Villa Lobos. E o Zezinho morrendo de ciúmes. Não, nesse caso, não haveria Zezinho ou Pepe, sequer Caio ou João... Ou haveria? Um triângulo, talvez? Quadrilátero...
      Outro dia, o semáforo, o muro e a declaração. E se foi ela, a própria Dani, quem escreveu no muro a (auto)declaração? Ela é ciumenta, já disse, ou foi minha imaginação? Concordemos que ela é, de fato, ciumenta e aí faria todo o sentido ela escrever tal frase só para provocar uma reação no Zezinho ou na Bete, que sejam eles, se não forem outros. Essas coisas acontecem, assim como acontece ficar mirando o zapzap só para sentir que a outra pessoa, a que constantemente te despreza, está online, está online também olhando mas ainda assim te desprezando. Mas ora, estou aqui divagando novamente. Foco, foco, rapaz!
      A pichação ainda segue lá meses depois de tê-la visto pela primeira vez, mas meu pensamento já não é mais da Dani, volúvel que sou nessa matéria de inventar estorinhas. Mas é preciso dar um fim conveniente a ela, à estória, não à Dani, que isso fique claro. Por isso...
      Hoje eu  passei por lá e vi, alguém jogou uma tinta branca por cima e nada mais de Dani Nariz. Pena, mas meu pensamento agora já não é mais dela, se volta inteiramente para um conto de nome “Adocão”... 
      Será que é o sobrenome dela que é Nariz?
      Não importa mais, o reconfortante é saber, porém, que alguém ama a Dani Nariz e isso me basta por ora.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Vinténs III



Botões

            Não é possível se fazer uma descrição precisa dos movimentos dos dedos quando esses se dedicam gentilmente a desabotoar uma blusa alheia. Ainda mais quando esses dedos, ágeis por suposição, estão em contato pela primeira vez com aquela específica blusa, azul por definição.
            Apesar das experiências acumuladas dos dedos dela e das blusas da amiga, ambos, dedos e blusas, tremem agora de ansiedade pela primeira vez.
            O primeiro botão é o do consentimento, mão acariciando mão. O segundo, do mistério parcialmente desvendado, da superação da vontade reprimida. Do terceiro em diante, seja o que o diabo quiser, o que deus permitir...
            E gozam, dedos, blusas e amigas, o sabor do momento!



Está lá, na lei...

            Ao voltar de uma de suas visitas à República de Hygina, Thio Therezo, muito pensativo, deixou escapar uma observação sobre algo que aparentemente o surpreendera por lá.
            - Vocês sabiam que todos os membros da República de Hygina são limpos, por definição?
            Ante o nosso interrogativo silêncio, ele completou.
            - Pois isso consta até da Constituição...
            - Da Constituição, Thio? - um de nós perguntou surpreso.
            - É... bom... ao menos da interpretação que o Supremo dá a ela...
            Pareceu-nos triste e desanimado, o nosso Thio.



Há de haver

            E há de haver aqueles que hão de insistir que há de haver algo a mais no firmamento que as estrelas candentes ou os olhos lacrimosos...



A que sobrou

            Após inúmeros anos de intensa e dolorida psicanálise, ele finalmente se livrou de quase todas as múltiplas personalidades que insistiam em se abrigar em seu corpo.

            A que sobrou, no entanto, era a que menos o agradava. Isso explicava o calote financeiro que dera no psicanalista naquele final de ano...



quinta-feira, 12 de maio de 2016

Olhando a Sistina.

       
       Não é segredo a ninguém, mesmo àqueles que ainda não tiveram a oportunidade de vê-la, a beleza da famosa Capela Sistina. No entanto, muitos poucos de nós, seguramente, tiveram a oportunidade de experimentar a melhor vista da incrível pintura que cobre o teto. E nem vou dizer que, atualmente, a maioria se contenta com um apressado selfie e esses nem se importam em observar realmente a pintura. Somos, Thio Therezo e eu, do tempo em que o que importava mais era admirar uma pintura, uma paisagem, uma cidade, um mural... do tempo em que o protagonista da foto não era nossa cara estragando a vista. Do tempo em que a lembrança superava os pixels...
       Mas o Thio Therezo, sim, teve a oportunidade de admirar a pintura do teto da maneira que ela merece. Em um dos inúmeros dias em que o Thio aproveitava o seu tempo dentro da Capela (por um motivo que nunca nos foi propriamente esclarecido, ele tinha acesso ilimitado à Capela, o dia que quisesse, o horário que melhor lhe aprouvesse), em um desses dias, ele parou e pareceu perceber algo que, primeira vez, chamava-lhe a atenção. O Thio, então, deitou-se ao chão para melhor observar o detalhe nunca antes visto. 
       Nem é preciso dizer que foi um rebuliço, os turistas com suas máquinas e seus celulares agora se alternavam entre selfies narcísicos, fotos desfocadas do teto, mas também daquele estranho sujeito deitado ao chão. Como só poderia acontecer, logo a sala ficou repleta da guarda suíça mas, antes mesmo que alguma atitude mais brusca pudesse ser tomada contra o Thio, um parente distante nosso, um suplente de subvicechefe da Divisão Noroeste da Guarda de Honra da Capela, o reconheceu e, consequentemente, todos perderam a ação, tão forte é o nome dele no Vaticano. O intocável Thio Therezo.
       Enquanto o Thio ainda se entretinha com os detalhes do teto, a guarda tratou de fechar a Capela aos outros visitantes que, sob protestos vários, foram retirados do recinto. Já se disse que o Vaticano é uma grande província e, nesses casos, as notícias correm desenfreadamente. Não demorou muito e o Papa em pessoa adentrava o recinto seguido pelo usual séquito de cardeais e assessores.
       - Thio, meu caro Thio, por que você não me avisou que vinha? O Papa foi logo falando. 
       Thio Therezo, após o respeitoso cumprimento de eterna admiração ao Papa, completou.
       - Desculpe-me por não me levantar... mas Vossa Santidade já reparou na pequena diferença de tonalidade naquela nuvem ali? O Thio apontava para o magnífico teto.
        O Papa ficou um tanto quanto desconcertado com essa inesperada informação. Tentou olhar, mas a posição desconfortável doeu-lhe o pescoço e, logo, ele também estava deitado ao chão, ao lado do Thio, para desespero e espanto de todos presentes, guardas e cardeais, ajudantes de ordem e freiras várias. É claro que não demorou muito para aparecer uma almofada de sustentação para a sua cabeça mas, ele em uma atitude extremamente papal, a repassou ao Thio. Outra, é claro, foi imediatamente providenciada para a sua santíssima cabeça.
        Passaram a discutir detalhes da pintura do teto, muitas vezes o Thio concedendo ao seu interlocutor a palavra final, em um merecido e adequado reconhecimento hierárquico. Os poucos que presenciaram tal cena até hoje se lembram, com justa admiração, da profundidade histórico-filosófica dessa iluminada conversa.
        Acontece que, pelo ridículo da cena ou por doerem por demais as costas já anciãs, o Papa deu por terminada a conversa e, após se estabilizarem de pé, convidou o Thio para um de chá de meio da tarde.
       - Santidade, não quero atrapalhar...
       - Vem, assim você me auxilia com um sermão que terei que dar amanhã...
       Claro está que o Thio, mesmo com todo o seu conhecimento e sensibilidade, está longe de poder ajudar o Papa em qualquer coisa, o Papa estava apenas sendo delicado com o seu amigo de longa data. Mas, o chá do Vaticano, ah! o chá do Vaticano, isso o Thio não recusaria, não estava insano... Dizem que as folhas desse chá são plantadas em pequenas quantidades nas terras especiais de um escondido e longínquo convento de freiras surdo-mudas e, quem o tomou, jamais o esquecerá.
        É o que dizem... sei lá!


[[Essa semana o meu blog completa um ano e eu queria agradecer o apoio e a gentileza dos que me acompanham nesse espaço!]]

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Chuvas - IV


[[Esse é mais um conto de meu primeiro livro, “Contos que conto”, que estou republicando aqui]].


Chuvas - Melancolia


Os barulhos noturnos da cidade me excitam, penso nisto naquele momento em que a única coisa que queremos é curtir aquele momento após o gozo abraçados um ao outro e a não querer saber de mais nada a não ser aquele momento, a não querer saber do lugar onde se está, e o lugar é um motel, um daqueles inúmeros e impessoais motéis em que passei algumas noites de minha vida e a não querer saber nem o dia em que estamos, e o dia em que estamos é um dia de Natal, um daqueles inúmeros natais pelos quais passamos em nossas vidas e a não querer saber nem muitos detalhes sobre a pessoa que está ao nosso lado, e eu sei, sei muito sobre esta japonesinha que está ao meu lado, sei como fazê-la sorrir, sei os carinhos que ela gosta, só não soube amá-la com toda a intensidade que ela merece e a não querer saber nem de onde vem todo este barulho neste motel quase vazio (e isto só me faz concluir que a maioria das pessoas que frequentam estes motéis é católica) e o barulho vem em parte da forte chuva que cai e em parte da festa que fazem as pessoas que têm de trabalhar justo numa noite destas e o barulho são risos e gargalhadas e provavelmente há crianças por perto pois eu as ouço e o barulho é parte um grito longínquo, um gato, carros, um tiro e...
            Agora ela está a dormir e eu me sinto sozinho, sozinho neste imenso motel a querer saber onde, que diabos, foi parar toda a segurança que eu tinha momentos atrás, a querer saber por que é que me deprimo tanto ao saber que estamos sozinhos aqui, ao ouvir esta chuva que cai, ao ouvir estes barulhos que assustam, ao ouvir os risos que me fazem sentir mais sozinho, a sentir esta imensa solidão que não tem cura e a saber que é noite de Natal e que porra que é que isto tem a ver com a minha solidão?
            Vou à janela e de lá só consigo ver um pouco da cidade, de suas luzes embaraçadas pela chuva que ainda cai. O mundo me parece tranquilo e parado, morto, solitário.
            Solidão, passo um tempo a olhá-la dormir, vou à janela, ao banheiro, sento e vejo o cardápio, risos e gritos, chuvas, examino o cardápio, um silêncio repentino e a minha solidão, tristeza e um cachorro late. Em nenhum lugar por onde passei eu consegui esquecer esta minha solidão, penso. E neste motel, noite de Natal, junto a ela, acho que deixei um pouco de mim, de minha pequena e já no fim esperança. Fecho os olhos.
            Ela agora se mexe e parece acordar e me olha interrogando porque é que eu estava sentado nesta cadeira longe do meu lugar que é o lado esquerdo da cama e me convida para ir deitar com ela e eu não posso recusar este belo sorriso que ela tem e que agora me mostra e vou até ela tentando sorrir também enquanto ouço os barulhos da noite, a chuva e os gritos e os risos e deito e penso que estes barulhos às vezes me excitam. Às vezes me assustam.