Se há algo de que sinto
falta é de cartas, e cartas seladas! Claro, poderia escrevê-las e enviá-las,
apesar de tanta dificuldade atual de se encontrar selos e agências de correio.
Quando preciso enviar algo, tenho que desviar de meu caminho, buscar uma agenciazinha
meio que escondida, cheia e sem graça...
Mas do que adiantaria
escrever e enviar cartas se não for para receber respostas? Num mundo em que o
zapzap domina e se você não responde imediatamente vira um pária, escrever e
esperar por uma resposta parece algo totalmente fora de propósito.
Pode ser, pode até ser... mas
que sinto falta, isso sinto! E só se sente falta de algo quando a tivemos de
forma importante em algum momento. E isso eu tive, nos quase cinco anos que
vivi fora do Brasil, em duas etapas.
Lembro dos anos em que vivi
na Inglaterra, eras pré-históricas. Existia um e-mail institucional em que
conversávamos, de forma bem precária, com colegas da região, mas, como no
Brasil nem isso tinha chegado (só chegaria quando eu já estava de retorno e
mesmo assim restrito às universidades e bem precário), eu me deliciava, e como!,
com as cartas que, ida e volta, levavam os seus vinte dias...
Claro que havia telefone, e
usávamos sim, mas era caro para as finanças de um bolsista que contava as
moedinhas... e quando sobravam, elas eram direcionadas para pequenas viagens, livros ou
aquele filmezinho na cinemateca, a depender da quantidade ä disposição.
Lembro que, todo dia, antes
do almoço, o porteiro da faculdade em Liverpool, onde eu estava para o doutorado,
vinha distribuir as cartas entre as salas de alunos e professores. Era um
bonachão e, quando chegava, eu já via de longe nas suas mãos a carta com margem
verde e amarela. Mas ele fazia todo um mise-en-scène,
como se procurasse uma carta para mim, só para depois, com sua inesquecível cara
de espanto, surpreender-se com uma verde-amarela. Daí, ele a aproximava do
nariz, cheirava e dizia que era uma carta de uma mulher apaixonada, me
entregava e saía todo contente da vida, me deixando lá também contente e
ansioso. Os teoremas, os cálculos, as conjecturas e todo o mar de hipóteses que
eu tentava decifrar naqueles anos todos de insanidade, tudo isso que esperasse
o seu momento para voltar às minhas preocupações! Era agora a hora de ler a
carta e já começar a pensar na resposta.
Eu nunca disse ao porteiro que,
na grande maioria das vezes, eram cartas de minha mãe...
Sinal dos tempos, ele se
aposentou um ano antes do término de meus estudos por lá, fizemos festa e tudo
e eu tive ainda mais dificuldades em entender o seu forte sotaque scouse, ele que se divertia bebendo e falando,
falando e bebendo. Ele me contava estórias e eu sorria, sem entender, e ele
parecia se contentar com isso. Tudo bem, o importante nem era se entender,
mesmo... Depois dele, mudaram o esquema de distribuição de cartas e tínhamos
que procurá-las em um escaninho da secretaria.
Qual era o nome do porteiro
mesmo? Tudo se perde nessa memória ingrata...
Lembro de uma carta que
enviei do Canadá, anos depois, para o meu irmão que se casava, distante de onde
eu estava. Foi escrita na catedral de Montréal em um daqueles momentos que
ficam presentes para sempre dentro da gente sem sabermos bem o porquê. As
entrelinhas das cartas devem saber...
O meu primeiro conto
chama-se Postal e é o primeiro do meu
primeiro livro, o que ganhou como prêmio, na V Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, a sua publicação.
Qualquer hora eu anuncio a segunda edição desse livro, mas é significativo pra
mim que tenha sido esse o tema de meu primeiro escrito. Fala de rotina e de
perdas, esse conto.
Outro dia, já em 2016, fui
enviar um par de livros meus para uma amiga. Fui ao correio e disse que eram
livros, a moça que me atendeu me deu o preço e abriu o pacote. Junto aos livros
eu tinha incluído um cartaozinho com uma frase gentil à amiga. A atendente
disse que não poderia enviar como livros, pois havia um cartão. Retirei o
cartão e disse para enviar como livros. Ela abriu de novo o envelope, tirou um dos livros e viu que havia uma dedicatória. Com dedicatória, não posso enviar como livro,
ela disse, terá que ser correio normal... Voltei com o cartão e enviamos como
correio normal, e não especial como livros (enviar como livro, mais do que ser
mais barato, mostra a importância que eles deveriam merecer...). Uma
dedicatória fazendo toda essa diferença. São os novos tempos... padrões,
padrões... mercadorias apenas...
Ao final, saí de lá contente
com o fato de que a atendente não tenha tido a curiosidade de ler as besteiras
que escrevo. Se fizesse, talvez até me impedisse de enviá-las pelo correio, ou
só com uma sobretaxa realmente expressiva. Sinal dos tempos, vigiados em tudo o que fazemos...