- iba áles a todos – ouviram todos os presentes a voz vinda
do pequeno palanque.
- iba áles – responderam todos os presentes em um firme,
mas desanimado, uníssono.
- hoje eu gostaria de falar sobre as quedas.
(lá vem ele com essa estória, de tanto repetir...)
- é bom que se diga, que se enfatize, que se repita até ser
parte de nossas entranhas, até sentirmos em nossa respiração, até evaporar em
nosso suor...
(e lá
vem...)
- nem
todos que caem do céu são anjos. são não...
(o moço bonito que eu vi cair não era anjo, certeza que
não)
- vocês, por vezes...
(mas bem que poderia ser, bonito que era, barbudo)
- ... acredito que muitos já devem ter presenciado isso,
uma queda dos céus, uma queda de...
(era, talvez, um anjo machucado)
-... de alguém vindo do céu, ou nisso é preciso acreditar. o
céu está sim escondido por essas árvores
todas, frondosas, elas escondem um esplendoroso céu azul e límpido,
(escondem mesmo, queria tanto ver!)
- pois o supremo assim o quis, acima dessas árvores,
acreditem, dessas árvores que é tudo que alcança nossos olhos, acima disso
tudo, dessa pretensa escuridão, há o céu que não vemos, azul e límpido, iba
áles!
- iba áles – foi a resposta uníssona de todos que agora
olhavam para o céu e só viam o teto do galpão.
- repito: céu azul e límpido! assim quis o supremo.
(deve ser lindo, não?)
- e só os escolhidos podem ver, os escolhidos e os anjos,
só eles merecem esse prazer.
(e agora é a hora dele falar da chuva)
- e há os que acreditam que chove! mas como é possível chover
se o céu é azul e límpido? sem nuvens não há chuva, garanto-vos!
(e de onde vem essa água que constantemente nos molha?)
- mas afinal de onde vem essa água que constantemente nos
molha?
(é punição)
- é um sinal que temos que aceitar.
(é punição)
- aceitar, pois assim o supremo quis...
(num gosto, não)
- assim o supremo quis, e se quis, devemos aceitar. e uma
vontade supremal não é algo ruim não, apesar de muitos acharem que é!
(mas encharca até a alma)
- não é! é algo bem pensado pelo supremo para que nos
lembremos dele todos os dias, para que ele seja sentido em nossa pele constantemente.
(encharca, esfria até a alma)
- só que alguns não aceitam isso, querem subverter a ordem
estabelecida e que deve ser obedecida.
(são as árvores chorando, isso eu acho)
- não podemos ter esses pensamentos ruins!
(um dia vou querer ver acima dessas árvores)
- por isso caem, por isso eles caem...
(o moço bonito caiu, barbudo era)
- no fundo, eles sabem que estamos certos, e que seus
pensamentos anormais o fazem sofrer, o próprio peso da consciência o fazem
cair.
(mas é tão levinha minha consciência, flutua gostosa no ar)
- caem e se estrupiam todos no chão duro.
(não vou cair quando subir lá, o moço bonito caiu mas eu
não)
- impuros, vermelhos...
(e o trovão que escutei antes da caída...)
- e o barulho que muitos ouvem, ou dizem ouvir, antes de
ver o corpo caindo é apenas imaginação, ficção de quem não quer aceitar a
realidade, ignorar os desejos do supremo, zombar de suas regras...
(era um barulho crescente)
- porque
a vergonha, meus caros, a vergonha é silenciosa.
(parecia
que vinha de longe, como um motor...)
- imaginação pura! isso era, sim senhor...
(mas era tão bonito o moço que caiu do céu, barbudo)
- a
consciência cai em silêncio, podem crer!
(e o
barulho tão real)
- e, lembrem-se disso, a imaginação vai contra nossos
princípios!
(por isso imagino escondido, ninguém nem percebe)
- o supremo percebe tudo, não se esqueçam disso.
(percebe
nada)
- é
impossível enganá-lo.
(que
eu o diga...)
- iba áles a todos, e sigam na paz supremal!
- iba áles – foi a resposta que ecoou longamente naquela
noite triste e escura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário