quinta-feira, 5 de maio de 2016

Chuvas - IV


[[Esse é mais um conto de meu primeiro livro, “Contos que conto”, que estou republicando aqui]].


Chuvas - Melancolia


Os barulhos noturnos da cidade me excitam, penso nisto naquele momento em que a única coisa que queremos é curtir aquele momento após o gozo abraçados um ao outro e a não querer saber de mais nada a não ser aquele momento, a não querer saber do lugar onde se está, e o lugar é um motel, um daqueles inúmeros e impessoais motéis em que passei algumas noites de minha vida e a não querer saber nem o dia em que estamos, e o dia em que estamos é um dia de Natal, um daqueles inúmeros natais pelos quais passamos em nossas vidas e a não querer saber nem muitos detalhes sobre a pessoa que está ao nosso lado, e eu sei, sei muito sobre esta japonesinha que está ao meu lado, sei como fazê-la sorrir, sei os carinhos que ela gosta, só não soube amá-la com toda a intensidade que ela merece e a não querer saber nem de onde vem todo este barulho neste motel quase vazio (e isto só me faz concluir que a maioria das pessoas que frequentam estes motéis é católica) e o barulho vem em parte da forte chuva que cai e em parte da festa que fazem as pessoas que têm de trabalhar justo numa noite destas e o barulho são risos e gargalhadas e provavelmente há crianças por perto pois eu as ouço e o barulho é parte um grito longínquo, um gato, carros, um tiro e...
            Agora ela está a dormir e eu me sinto sozinho, sozinho neste imenso motel a querer saber onde, que diabos, foi parar toda a segurança que eu tinha momentos atrás, a querer saber por que é que me deprimo tanto ao saber que estamos sozinhos aqui, ao ouvir esta chuva que cai, ao ouvir estes barulhos que assustam, ao ouvir os risos que me fazem sentir mais sozinho, a sentir esta imensa solidão que não tem cura e a saber que é noite de Natal e que porra que é que isto tem a ver com a minha solidão?
            Vou à janela e de lá só consigo ver um pouco da cidade, de suas luzes embaraçadas pela chuva que ainda cai. O mundo me parece tranquilo e parado, morto, solitário.
            Solidão, passo um tempo a olhá-la dormir, vou à janela, ao banheiro, sento e vejo o cardápio, risos e gritos, chuvas, examino o cardápio, um silêncio repentino e a minha solidão, tristeza e um cachorro late. Em nenhum lugar por onde passei eu consegui esquecer esta minha solidão, penso. E neste motel, noite de Natal, junto a ela, acho que deixei um pouco de mim, de minha pequena e já no fim esperança. Fecho os olhos.
            Ela agora se mexe e parece acordar e me olha interrogando porque é que eu estava sentado nesta cadeira longe do meu lugar que é o lado esquerdo da cama e me convida para ir deitar com ela e eu não posso recusar este belo sorriso que ela tem e que agora me mostra e vou até ela tentando sorrir também enquanto ouço os barulhos da noite, a chuva e os gritos e os risos e deito e penso que estes barulhos às vezes me excitam. Às vezes me assustam.

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