Encontramos o Thio Therezo na
varanda olhando o céu escuro, porém sem nuvens a ocultar estrelas e planetas.
Era um daqueles dias em que desejar um feliz Natal já se tornara extemporâneo
mas, ainda, com a vívida expectativa com a chegada de um novo ano, como se isso
fosse mudar algo.
Ele nos viu chegar, acho que gostou de
ter a nossa companhia por lá naquele momento. Finalmente, disse:
- Que ano, cara! que ano... não
acaba nunca!
Um olhou para o outro e não havia o
que responder...
- ... e ainda mais, ano bissexto...
um interminável dia a mais...
Nos ajeitamos nas poucas cadeiras de
nossa varanda e ele nos contou uma estória, uma de suas estórias que tanto
gostávamos de escutar. Contou-nos sobre aquele final de ano que ele passou na
sua republiqueta predileta, a Republiqueta de Hygina, lugar onde tinha tantos
amigos e parentes distantes. Estava lá ele junto com um grupo em um
observatório e tinham descoberto indícios de um novo planeta, restava pouco
para fazerem os cálculos e as observações finais para a certeza definitiva. O
Thio contava isso olhando para a escuridão bem à frente de nossa varanda. E
tudo daria certo se algo inusitado não tivesse atrapalhado os planos de todos
eles.
Sabíamos que o Thio nos contaria o
que aconteceu de qualquer maneira, mas nessas horas é importante mostrar
interesse, e o fizemos.
- Thio, mas tão perto assim da
descoberta desse novo planeta... o que aconteceu? - eu perguntei.
Ele ainda olhou o céu e contou-nos.
Disse que meses antes de sua chegada ao observatório o presidente daquele
país tinha morrido e o vice assumira. Rumores, nunca confirmados, indicavam que
o presidente tinha sido envenenado pela oposição que não tinha se conformado
com a derrota na última eleição.
- Mas apesar de muitos estarem
convictos dessa hipótese de envenenamento e, também, da efetiva participação do vice na
trama, nada foi confirmado e a vida seguiu. De início, aquele vice até que era
conveniente à oposição que virara situação...
Ouvíamos atentos ao Thio... e ele
nos contou que, com o tempo, e nem foi tanto tempo assim, a oposição que virara
situação com a morte do presidente resolveu não esperar a próxima eleição e
começou a queimar politicamente o vice que se tornara presidente. De vaso
decorativo ele tinha passado a mordomo decorativo mas estava pondo as
manguinhas de fora, o que não agradara ao grupo que o apoiara inicialmente. O
que salvava temporariamente o vice de morrer supostamente envenenado era uma
regra da constituição. Se algo acontecesse ao vice, morte ou renúncia, ainda
naquele ano, teria que haver uma nova eleição. Caso a morte ou até a improvável
renúncia acontecesse a partir do primeiro dia do ano seguinte o congresso da
republiqueta elegeria indiretamente um novo presidente, opção preferida daquela oposição ruim de votos...
- ... mas o vice tornado presidente
tinha outros planos... - o Thio continuou a contar - No dia 29 de dezembro, ele
renunciou... assim, do nada...
Silêncio... e eu falei para que a
estória continuasse:
- ... e aí chamaram novas
eleições...
- ãh? - o Thio estava absorto com a
escuridão do céu à sua frente.
- eu perguntei se chamaram novas
eleições...
- ah... não...
- não? como assim, não estava na
constituição? houve um golpe?
- golpe? não, foi tudo dentro da
lei, ao menos essa foi a versão oficial. O STF deles reinterpretou o calendário
e chegaram à conclusão de que aquele dia 29 de dezembro pertencia de fato ao
ano que iria iniciar e não ao que estava a acabar e, portanto, de acordo com a
constituição, o congresso escolheria um novo presidente... tudo legal...
O Thio então nos contou que a
polícia federal deles, a mando de um juiz-promotor que habitava aquele país,
foi até o observatório onde ele e seus colegas pesquisadores estavam pesquisando, foram em busca
de uma declaração científica que suportasse a decisão do STF, mesmo que essa fosse
obtida coercitivamente. Qualquer coisa... algo como a ação de raios beta que
interferiram no funcionamento celeste e que teria atrasado, ou adiantado, o
calendário, tanto faz, escreve qualquer merda aí que depois a gente acerta
isso... as pessoas aqui acreditam em tudo que os iluminados dizem mesmo...
Nem seria preciso dizer que eles se
recusaram a assinar isso. Na confusão que se formou, o Thio e mais dois
colegas, um deles um primo distante, conseguiram escapar e, naquela
mesma noite, nosso querido Thio saiu clandestino do país. Certo é que ele fugiu
fantasiado de Galileu, o que chamou um pouco a atenção no aeroporto, mas, dadas
as festas de finais de ano, aquela era uma fantasia perfeitamente aceitável. Os outros amigos
do Thio foram presos e todos os dados do novo planeta sumariamente destruídos.
Enquanto esperava por um dos voos para
voltar para casa, já em outro continente, o Thio soube que, após a decisão do
STF deles, o congresso, no mesmo dia, elegeu e empossou um ex-presidente que
tinha saído pelas portas dos fundos e que voltava sem ter tido um voto popular
sequer.
O Thio acabara de contar a sua
estória e ficamos todos olhando o céu.
- Querem saber? O planeta fica
naquela direção, ainda iremos mostrar que ele existe e está lá... essa
escuridão que vocês estão vendo há de acabar...
Olhávamos para onde ele apontava
quando repetiu:
- Essa escuridão há de acabar...
Nessas horas, não há muito a se
falar. Estávamos cada um agora entretido com o seu próprio sonho de planeta a
ser descoberto, cada um com o seu...
- Ei, garoto - o Thio falou
finalmente - vai buscar o tabuleiro para jogarmos uma partida, uma última antes
que esse ano finalmente acabe.