quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Se for o, obediência

[[ Mais um conto da série "O que você pediria?"]]

            Eu sempre quis ter um cachorro com nome de cachorro. Sim, cachorro com nome de cachorro, pois caso contrário ele próprio pode se confundir e achar que não é um cachorro e o que menos queremos ter por perto é um cachorro que pensa que não é cachorro.
            Por isso, o labrador que trouxe para casa se chama Fanta. Não só por conta de sua cor, mas também porque, esses dias estou muito paciente com minhas lembranças, lembrei-me de uma foto minha de criança, sentado em uma mureta tomando uma Fanta, a original, a de laranja.
            Sim, minhas lembranças ainda me invadem a mente de forma desordenada desde o dia em que tive aquele, para usar um termo técnico, piripaque, o que me levou a passar alguns dias desacordado no hospital. Veio-me repentinamente à mente essa história da foto com a Fanta, logo estava recordando de momentos de minha infância em que gostaria, queria, precisava, urgia ter uma companhia, um cachorro que fosse, obediente às minhas necessidades. Um cachorro que não competisse comigo, um cachorro com nome de cachorro para evitarmos confusões. Claro que, então, o próximo passo é voltar ao presente e olhar ao redor e sentir a falta de algo em casa.
            Olhar ao redor e ver minha tia que, desde que voltei do hospital, finge se ocupar de mim, olhá-la e vê-la na realidade mais preocupada com o desenrolar da novela na TV. Olhar ao redor e ver minha tartaruga Esperança a andar sem destino pela casa procurando sei lá o quê, ou o gato que sabe cafunezar me dar atenção só quando ele próprio necessita de uma.
            Um cachorro, é o que me falta aqui, uma estabanada mas feliz companhia para os meus dias.
            Fanta é um bebê labrador e ficará comigo um ano para, depois disso, retornar ao lugar de onde veio e ser então treinado como cão-guia. Ao assinar a papelada do Fanta estabelecendo essas condições, e outras mais, o instrutor me disse que o meu principal compromisso nesse período é fazê-lo ser sociável, passear com ele em todos os lugares possíveis, shopping, metrô, parques e ônibus, vivenciá-lo com grupos de pessoas os mais variados. Em suma, ele precisa aprender a ser sociável e se comportar em todo ambiente possível.
            - Então, seremos dois a aprender... – respondi, com meu sorriso de canto. Mas tive que explicar que era uma ironia, as pessoas não percebem mais ironias nesses tempos bicudos, parece que precisamos explicar tudo em detalhes. Explicar tudo direitinho, que o instrutor já estava a ponto de me negar a companhia do Fanta depois dessa minha observação.
            Logo percebi que Fanta e eu tínhamos os mesmos gostos literários, pois muitos dos livros que devorei sentado em minha poltrona predileta também os seriam por ele em seguida. Tive que agilizar minhas leituras para poder encontrar intactos na manhã seguinte os livros que lia pela noite. Quanto à sociabilidade dentro de nosso pequeno universo, é fácil de descrever. Com a tartaruga Esperança, parece que tudo foi mais fácil, eu só tinha que, de tempos em tempos, desvirá-la para permitir que ela pudesse retornar sua insana e constante procura por algo, a mim indefinido, naquela casa.
            Por sua parte, quando em minha presença, havia uma disputa entre o gato que sabe cafunezar e Fanta, queriam ambos se impor, queriam se mostrar a mim e, nesse aspecto, o gato saía vencedor, seus dentes à mostra e suas unhas intimidavam o labrador e esse ia cuidar de sua vida. Mas eu presenciei, à distância e mais de uma vez, eles rolarem ao chão e se morderem amistosamente como amigos que são de fato. Se a palavra era socializar, Fanta ia bem, aprendia os limites das amizades e da convivência grupal, aprendia a obediência a quem se impunha na vida.
            Mas nada que eu pudesse fazer adiantou para criar um vínculo entre a minha tia e o Fanta. Seu olhar torto quando me viu pela primeira vez com o cachorro não mudou nos poucos dias em que ela ainda morou lá em casa. Nunca entendi a repulsa, pois Fanta era um bebê que fazia muita festa a ela e, outro sinal de sua sociabilidade, ignorava seus olhares tortos.
            Mas não teve jeito, ela não o aceitou e, com essa rejeição, o Fanta aprendia rapidamente mais um dos fatores da socialização.
            Se foi o Fanta, se foi o excesso de silêncio entre nós, ou se foi a sensação de dívida paga, sei lá, o que aconteceu de fato foi que a tia um dia me disse que iria embora, achava que eu já estava recuperado do piripaque para voltar a viver sozinho e que ela precisava retomar a sua rotina anterior. A prima, sua filha única, tinha escrito dizendo que logo voltaria e ela precisava cuidar disso.
            Arrumando suas poucas coisas, ela deixou claro que se eu ainda sentisse que precisava dela, ela ficaria, parente é parente. Eu respondi que não precisava, mas ela insistiu, agora fechando a mala, que se eu precisasse, bastava avisar que ela viria sem titubear... Após chamar o taxi, ainda me perguntou se eu queria que ela ficasse mais alguns dias...
            - Obrigado, tia, por tudo...- fui sincero, estava realmente agradecido, poucas vezes tinha sentido na minha vida alguém me ajudando de fato.
            Mas, por algum motivo, claro ficou que ela saiu triste e decepcionada de minha casa, senti também que se tinha alguma aliada para que houvesse alguma esperança, além da tartaruga, de conexão entre a prima e eu, ela ia embora no banco traseiro daquele taxi. Assim é, aprende-se a perder mais do que a ganhar.
            E a vida, toca-se do jeito que der.
            Minha rotina voltou ao que era antes mais rapidamente do que eu imaginara, e, sentia, já era hora de voltar a buscar companhia. Claro que a primeira pessoa que me veio a mente foi ela, ela que fora quem me socorreu do piripaque à porta do elevador, que me levou ao hospital, que me fez companhia nos primeiros momentos, que ainda apareceu por lá algumas vezes, para depois sumir pouco antes de minha tia aparecer e declarar-se dona da situação.
            Assim que retornei à casa, liguei a ela e agradeci, a gratidão sincera é algo que tenho aprendido das quedas que sofro. Ficamos de nos encontrar logo, ela parecia estar ocupada quando atendeu mas foi gentil. Não voltei a ligar enquanto a minha tia estava morando comigo, como fazer isso sem correr o risco de ser mal interpretado? Certeza que, se isso acontecesse, logo perderia qualquer chance com a minha prima. Lembro que, ainda no hospital, a tia me perguntou quem era aquela moça que me salvara e minha resposta a convenceu de que não a conhecia direito e ficou por isso. Assim deixemos então.
            Mas agora, o taxi com a tia virando a esquina, pensei nela e em como me agradaria ter o seu gemido de novo penetrando meus ouvidos...

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Princípios

            Devido ao indiscutível conhecer jurídico do Thio Therezo, mais que frequentemente ele é convidado a dar palestras nos mais inesperados lugares. Não que o convite do Instituto de Doutrinação Política (idepê) de Brasília fosse estranho por conta do assunto que solicitaram ao Thio, mas sim por conta da óbvia divergência política que se criou ao longo dos anos entre eles, idepê e Thio.
            O Thio não se incomoda com divergências, nunca se incomodou. Ele é daqueles que acreditam que é possível sim uma convivência pacífica mesmo nessas circunstâncias, até mesmo com interlocutores de grupos como, por exemplo, o tal emebelê (Movimento Bem Legal), e olha que divergências abundam e muito entre eles.
Além do mais, por sua vez, o Thio fora muito bem tratado nesse contato inicial do idepê e que culminou com o convite para uma palestra sobre os princípios jurídicos vigentes nesses tempos de pós-verdades. Viagem paga, carro esperando no aeroporto, almoço agendado no principal restaurante da capital para depois da palestra, um bom cachê.
            Mas tão logo chegou ao idepê, sentiu um clima diferente daquele das trocas de telefonemas. Gentis que fossem as palavras e as atitudes, o fato de quererem saber de antemão o que o Thio falaria constrangeu o encontro entre ele e os diretores do instituto. Mas o Thio, mesmo tímido que é, tirou de letra esse pequeno contratempo.
            O que o surpreendeu de certa maneira foi saber que, devido a um inesperado pequeno problema técnico, sua palestra não seria transmitida ao vivo como era o costume para esse tipo de eventos. Mas, garantiram-lhe, ela seria gravada e disponibilizada depois para quem quisesse assistir. Se foi resultado do mesmo problema técnico ou de outro talvez, o fato é que tal palestra nunca apareceu na página do idepê e, inclusive, nem menção a ela pode ser encontrada lá. Silêncio total...
            O Thio costuma dizer que sua palestra gravada, assim como os anúncios dela e possíveis repercussões, tinham sido arquivados em uma nuvem e, sabe-se lá, choveu inesperadamente, trovejou, uma garoa que fosse e tudo se perdeu em algum lugar misterioso bem longe dali... uma poça cibernética abrigando sua fala e ideias...
            Mas, mesmo sem a transmissão direta, a palestra aconteceu e o Thio falou dos tais princípios jurídicos para um público restrito e inquieto. Listou-os em três categorias:
(i)            princípios gerais: da impessoalidade; da razoabilidade; da inocência presumida...
(ii)          princípios específicos: da convicção, da desnecessidade de provas, da teoria do domínio do desejo...
(iii)         princípio supremo.
Tudo ia bem até ele chegar ao enunciado do princípio supremo, o que deve se sobrepor a todos os outros, sem exceção, sem contestação, o que é supremo, supremo deve ser considerado, supremo é!
Quando o Thio, depois de um pigarreio, enunciou o supremo princípio ao cada vez mais restrito grupo de ouvintes, a luz do auditório falhou, devido talvez ao mesmo inesperado problema técnico de antes, a câmera deixou de funcionar, e tudo teve que ser suspenso. Até um discreto alerta de incêndio foi posteriormente reportado à imprensa.
            Nem precisa ser dito que o almoço com a diretoria do idepê foi silencioso. Não por conta do Thio que contou inúmeras de suas estórias enquanto saboreava um bom vinho e degustava o que os gregos antigos chamavam de boa convivência . Como se apreciar a vida e a companhia de pessoas interessantes, mesmo que com ideias discordantes, fosse um grande sacrifício, os diretores do idepê presentes não viam a hora de despachar o Thio de volta a São Paulo.
            Quando o Thio chegou em casa, todos estávamos curiosos para saber o que se passara. Ele sorriu, tirou do bolso a folha em que anotara o princípio supremo, amassou-a e lá se foi ao lixo o único indício de que alguma vez houvera uma palestra do Thio no idepê (além das poças cibernéticas que provavelmente ainda resistem da chuva que caiu sei lá onde...).
            Quer dizer... tão logo o Thio saiu da sala, nós os sobrinhos intrépidos de Itu resgatamos  a folha. Desamassamos e sabe-se lá se ainda tem algum interesse. Em todo o caso, fotografamos a folha e aqui a exibimos, talvez haja alguém que o queira estudá-lo no futuro.