Eu sempre quis ter um cachorro com nome de cachorro. Sim,
cachorro com nome de cachorro, pois caso contrário ele próprio pode se
confundir e achar que não é um cachorro e o que menos queremos ter por perto é
um cachorro que pensa que não é cachorro.
Por isso, o labrador que trouxe para casa se chama Fanta.
Não só por conta de sua cor, mas também porque, esses dias estou muito paciente
com minhas lembranças, lembrei-me de uma foto minha de criança, sentado em uma
mureta tomando uma Fanta, a original, a de laranja.
Sim, minhas lembranças ainda me invadem a mente de forma
desordenada desde o dia em que tive aquele, para usar um termo técnico,
piripaque, o que me levou a passar alguns dias desacordado no hospital. Veio-me
repentinamente à mente essa história da foto com a Fanta, logo estava
recordando de momentos de minha infância em que gostaria, queria, precisava,
urgia ter uma companhia, um cachorro que fosse, obediente às minhas
necessidades. Um cachorro que não competisse comigo, um cachorro com nome de
cachorro para evitarmos confusões. Claro que, então, o próximo passo é voltar
ao presente e olhar ao redor e sentir a falta de algo em casa.
Olhar ao redor e ver minha tia que, desde que voltei do
hospital, finge se ocupar de mim, olhá-la e vê-la na realidade mais preocupada
com o desenrolar da novela na TV. Olhar ao redor e ver minha tartaruga
Esperança a andar sem destino pela casa procurando sei lá o quê, ou o gato que
sabe cafunezar me dar atenção só quando ele próprio necessita de uma.
Um cachorro, é o que me falta aqui, uma estabanada mas
feliz companhia para os meus dias.
Fanta é um bebê labrador e ficará comigo um ano para,
depois disso, retornar ao lugar de onde veio e ser então treinado como cão-guia.
Ao assinar a papelada do Fanta estabelecendo essas condições, e outras mais, o
instrutor me disse que o meu principal compromisso nesse período é fazê-lo ser
sociável, passear com ele em todos os lugares possíveis, shopping, metrô,
parques e ônibus, vivenciá-lo com grupos de pessoas os mais variados. Em suma,
ele precisa aprender a ser sociável e se comportar em todo ambiente possível.
- Então, seremos dois a aprender... – respondi, com meu
sorriso de canto. Mas tive que explicar que era uma ironia, as pessoas não
percebem mais ironias nesses tempos bicudos, parece que precisamos explicar
tudo em detalhes. Explicar tudo direitinho, que o instrutor já estava a ponto
de me negar a companhia do Fanta depois dessa minha observação.
Logo percebi que Fanta e eu tínhamos os mesmos gostos
literários, pois muitos dos livros que devorei sentado em minha poltrona
predileta também os seriam por ele em seguida. Tive que agilizar minhas
leituras para poder encontrar intactos na manhã seguinte os livros que lia pela
noite. Quanto à sociabilidade dentro de nosso pequeno universo, é fácil de
descrever. Com a tartaruga Esperança, parece que tudo foi mais fácil, eu só
tinha que, de tempos em tempos, desvirá-la para permitir que ela pudesse
retornar sua insana e constante procura por algo, a mim indefinido, naquela
casa.
Por sua parte, quando em minha presença, havia uma
disputa entre o gato que sabe cafunezar e Fanta, queriam ambos se impor, queriam
se mostrar a mim e, nesse aspecto, o gato saía vencedor, seus dentes à mostra e
suas unhas intimidavam o labrador e esse ia cuidar de sua vida. Mas eu
presenciei, à distância e mais de uma vez, eles rolarem ao chão e se morderem
amistosamente como amigos que são de fato. Se a palavra era socializar, Fanta
ia bem, aprendia os limites das amizades e da convivência grupal, aprendia a
obediência a quem se impunha na vida.
Mas nada que eu pudesse fazer adiantou para criar um
vínculo entre a minha tia e o Fanta. Seu olhar torto quando me viu pela
primeira vez com o cachorro não mudou nos poucos dias em que ela ainda morou lá
em casa. Nunca entendi a repulsa, pois Fanta era um bebê que fazia muita festa
a ela e, outro sinal de sua sociabilidade, ignorava seus olhares tortos.
Mas não teve jeito, ela não o aceitou e, com essa
rejeição, o Fanta aprendia rapidamente mais um dos fatores da socialização.
Se foi o Fanta, se foi o excesso de silêncio entre nós, ou
se foi a sensação de dívida paga, sei lá, o que aconteceu de fato foi que a tia
um dia me disse que iria embora, achava que eu já estava recuperado do
piripaque para voltar a viver sozinho e que ela precisava retomar a sua rotina
anterior. A prima, sua filha única, tinha escrito dizendo que logo voltaria e
ela precisava cuidar disso.
Arrumando suas poucas coisas, ela deixou claro que se eu
ainda sentisse que precisava dela, ela ficaria, parente é parente. Eu respondi
que não precisava, mas ela insistiu, agora fechando a mala, que se eu
precisasse, bastava avisar que ela viria sem titubear... Após chamar o taxi,
ainda me perguntou se eu queria que ela ficasse mais alguns dias...
- Obrigado, tia, por tudo...- fui sincero, estava
realmente agradecido, poucas vezes tinha sentido na minha vida alguém me ajudando
de fato.
Mas, por algum motivo, claro ficou que ela saiu triste e
decepcionada de minha casa, senti também que se tinha alguma aliada para que
houvesse alguma esperança, além da tartaruga, de conexão entre a prima e eu,
ela ia embora no banco traseiro daquele taxi. Assim é, aprende-se a perder mais
do que a ganhar.
E
a vida, toca-se do jeito que der.
Minha rotina voltou ao que era antes mais rapidamente do
que eu imaginara, e, sentia, já era hora de voltar a buscar companhia. Claro
que a primeira pessoa que me veio a mente foi ela, ela que fora quem me socorreu
do piripaque à porta do elevador, que me levou ao hospital, que me fez
companhia nos primeiros momentos, que ainda apareceu por lá algumas vezes, para
depois sumir pouco antes de minha tia aparecer e declarar-se dona da situação.
Assim que retornei à casa, liguei a ela e agradeci, a
gratidão sincera é algo que tenho aprendido das quedas que sofro. Ficamos de
nos encontrar logo, ela parecia estar ocupada quando atendeu mas foi gentil. Não
voltei a ligar enquanto a minha tia estava morando comigo, como fazer isso sem
correr o risco de ser mal interpretado? Certeza que, se isso acontecesse, logo
perderia qualquer chance com a minha prima. Lembro que, ainda no hospital, a
tia me perguntou quem era aquela moça que me salvara e minha resposta a
convenceu de que não a conhecia direito e ficou por isso. Assim deixemos então.
Mas agora, o taxi com a tia virando a esquina, pensei
nela e em como me agradaria ter o seu gemido de novo penetrando meus ouvidos...
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