quinta-feira, 29 de março de 2018

um sexteto de aldravias


quando
estou
com
preguiça
aldravias
escrevo

*************************

cada
vez
mais
quero
achar
menos

*************************

para
todo
sempre
é
muito
tempo

*************************

mergulha
em
si
feito
estrela
candente

*************************

entregue-
se
aos
delírios
mais
insanos

*************************

porém
a
vida
é
para
profissionais

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 [Aldravias. O movimento aldravista nasceu em 2000 em Mariana (MG). Seus poemas se caracterizam pela estrutura em seis versos univocabulares.]

quinta-feira, 22 de março de 2018

Predileto


Outro dia, enquanto escrevia à mão os rascunhos de um conto, tive dúvidas sobre a grafia de uma palavra. Tão distraído estava que, ao perceber que nenhuma linha tracejadinha vermelha se formou embaixo da duvidosa palavra, convenci-me da exatidão da escrita. 
Felizmente, notei logo o absurdo de minhas conclusões. 
Hora de parar, parei. 
Banho.
Café.
Um bom filme na T.V.
Um beijo carinhoso de quem agora chega. 
Uma folha de papel e uma caneta tinteiro.
E pronto, retornei ao meu mundo predileto. 


quinta-feira, 15 de março de 2018

Trinca de vinténs.

Peso da idade...

O Thio Therezo costumava dizer que só se sentiria realmente velho quando uma mulher grávida com filho no colo e com a perna engessada oferecesse o seu assento no Metrô para ele.
Pela cara com que o Thio voltou para casa ontem, pode até ser que esse dia tenha chegado...



Palavras exibidas.

Vez, em uma conversa amigável, o interlocutor do Thio Therezo disse, sem pestanejar, que "a moda é a expressão máxima da individualidade..." O Thio pensou, pensou e pensou, mas não conseguiu evitar de ter pena das palavras. Coitadas, elas se submetem a cada coisa para poderem aparecer... 





Palavras inibidas.

O Thio, naquele momento em que se soube quais eram os candidatos, só pensou, pensou e pensou, mas nada disse. 
Melhor assim!



quinta-feira, 8 de março de 2018

Arcabouços


            Algumas pessoas me escreveram preocupadas com o Thio Therezo, sobre como ele foi enrolado naquela história de embriaguez genética e foi, sem o querer, usado para livrar a cara de um sujeito que em qualquer lugar que não a República de Hygina teria sido considerado muito culpado. Mas, isso é mais do que comum naquela república...
            A bem da verdade, o Thio tentou, mesmo após o veredito do juiz, reestabelecer a verdade de seus sérios estudos. Mas foi impedido, pois em Hygina, só pode falar sobre questões legais quem tem o título reconhecido pela OAH (Ordem dos Advogados de Hygina) e, mesmo assim, há estritas limitações a respeito dos assuntos a serem tratados por cada um dos autorizados, pois a OAH rankeia os seus associados e só os da categoria máxima, os supremos, é que podem opinar sobre quaisquer questões que escolham, por exemplo. E nem precisam ser respeitosos ou educados em suas manifestações, mas isso é assunto de outra natureza.
            O Thio, por sua vez, não tem seus títulos reconhecidos na República de Hygina, nenhum deles, nem mesmo algum dos inúmeros títulos de doutor honoris causa que ele acumulou mundão afora. Rara a universidade dos top 100 que não concedeu a ele um desses títulos.
            Mas, em Hygina, o processo de reconhecimento é bem específico. A Constituição da República prevê que só a OAH pode autorizar alguém, cidadão ou estrangeiro, a falar sobre assuntos jurídicos internos, sob penas que vâo desde uma mera desqualificação pública até o esquartejamento seletivo, passando por multas altíssimas.
            Nessa direção, a OAH, tendo em mente o seu espírito republicano e a singular democracia que cerca a todos os seus habitantes, estabeleceu que qualquer cidadão pode entrar com um requerimento solicitando uma concessão de livre palavra. Feito o pedido, a OAH, então, por meio de sua Comissão de Ética e Assuntos Correlatos, analisa-o em todos os seus aspectos legais e morais, deferindo-o ou não. A lei é clara: se essa comissão não emitir um parecer em 60 dias, o pedido é deferido automaticamente. Tal salvaguarda existe para não permitir que abusos aconteçam, os hygienistas são muito sérios a respeito disso. No entanto, o conselho de supremos da OAH permite, a partir de uma justificativa detalhada, prorrogar de forma absolutamente extraordinária, esse prazo.
            Consta que o pedido do Thio Therezo deu entrada na OAH cerca de 17 anos atrás.
            Mas o ponto por trás disso, na realidade, é que o Thio escreveu um dia um tratado sobre a Constituição da República de Hygina. Primeiro texto escrito sob a égide da filosofia hygienista, essa constituição trouxe pérolas de fazer inveja aos inúmeros reinos que a cercavam, em vista de sua dubiedade. E, é claro, o Thio não perdeu a oportunidade de fazer um estudo acadêmico, em dois volumes, que versou não só sobre essa filosofia propriamente dita como também sobre como ela se refletiu no arcabouço buro-legislativo da famosa República.
            Nada mais apropriado para se entender isso que mencionar uma significativa frase constante na obra magna do mentor supremo da filosofia hygienista. Nessa monumental obra do pensamento humano (que traz o enigmático título de Manual de Sobrevivência), ele estabeleceu que “... os fazedores de leis devem se preocupar primariamente com dois aspectos: garantir o pleno emprego aos interpretadores da legislação e a ampla e inquestionável liberdade aos aplicadores da mesma...” Só assim, ele garantia, a paz, a pureza de espírito e as mãos limpas poderiam prevalecer na justa e harmoniosa sociedade em que viviam.
            Para a alegria dos pareceristas jurídicos, essa Constituição seguiu à risca os elevados ensinamentos do mentor supremo e, nela, abundam múltiplas e dúbias interpretações nas entrelinhas e nas entreletras. Nesse arcabouço de milhares de páginas, nem o ponto é um ponto realmente, quanto mais as vírgulas, essas sempre tem uma conveniente interpretação a depender dos envolvidos e do momento.
            Diga-se de passagem que foi por conta desse estudo feito pelo Thio, que ganhou uma merecida repercussão internacional e pelo qual a ele foram concedidos a maior parte de seus títulos de honoris causa em Direito, que foi editada, em caráter de urgência, uma PEC criando a OAH e dando-lhe as atribuições acima mencionadas.
            O Thio, por vezes, olha em direção à Hygina de nossa varanda e fica pensativo. Mas, discreto como ele é, não nos permite compartilhar suas inquietações desses momentos.

quinta-feira, 1 de março de 2018

Feijoada completa - parte II

[[ continuação da primeira parte publicada na semana passada]]





O Thio Therezo acordou naquela manhã sem muita disposição de trabalhar em algum de seus inúmeros projetos e, por isso, resolveu ler o jornal mais profundamente do que normalmente fazia. Chamou-lhe a atenção, e por isso leu a notícia até o final, a estória do motorista bêbado que, em alta velocidade, atropelou um ciclista no acostamento, matando-o na hora. Mesmo o motorista tendo escapulido da cena e argumentado que nem percebera que tinha atropelado alguém, o seu carro, parabrisa destroçado, foi identificado um par de horas depois e confiscado pela polícia. O teste sanguíneo do motorista, acordado então de um sono profundo, confirmou, sem dúvida palpável, o alto grau de embriaguez em que ele se encontrava. Como convém nesses casos, ele sequer passou sua bebedeira na cadeia. Até aí, mais uma das comuns notícias da República de Hygina e o Thio não prestou mais atenção a isso.
Quer dizer, até que um dia uma intimidação (ou seria uma intimação?) o recordou dessa notícia. O seu conhecimento era solicitado em uma ação que corria justamente contra aquele motorista. Esse tinha a seu favor alguns atenuantes como, por exemplo, o fato de estar dirigindo uma Ferrari ou mesmo o seu sobrenome em comum com algum dos mais notórios membros do poder principal da República de Hygina. Esses atenuantes, em situação normal, seriam mais do que suficientes para que ele fosse absolvido ou mesmo para que o processo prescrevesse em tempo recorde. Jurisprudência havia de sobra para tal.
No entanto, por conta de umas questões paralelas, a jurisprudência não bastaria, era preciso nesse caso dar uma satisfação à sociedade, era preciso também prudência. Com isso, a tendência era que o motorista bêbado fosse condenado, mesmo com os atenuantes, a uma pena exemplar para tais casos, isto é, a pagar uma cesta básica.
Muito tempo depois, o Thio soube de um famoso jantar, uma incompleta feijoada aliás, na casa do pai do motorista bêbado em que parentes indignados fizeram um juramento solene para não permitir de forma alguma que houvesse alguma condenação. Não permitiriam que algo assim prejudicasse pelo resto da vida aquele jovem de 40 anos. Seria preciso destruir a argumentação da acusação de que ele estava bêbado e em alta velocidade, mesmo contra todas as provas e evidências ao contrário.
A teoria do domínio do fato foi, depois de algum tempo, descartada, seria muito difícil convencer o juiz de que o verdadeiro responsável era o vendedor da Ferrari ao jovem ingênuo e bem intencionado. Também, a teoria da convicção estava descartada, em vista da desmoralização que outro juiz sofrera ao usá-la em um caso sem provas.
Aí entrava o Thio Therezo. Os advogados da defesa estavam contactando-o para que ele testemunhasse sobre a possibilidade de que o motorista não poderia ser responsabilizado por algo que deveria ser caracterizado como um mero determinismo genético. Todo aquele trabalho, aparentemente esquecido, feito com base no comportamento genético do primo de Itu, reaparecia em sua frente.
O Thio propôs submeter, antes de mais nada, o motorista ao teste que fora desenvolvido tempos antes. Isso mostraria, sem sombra de dúvida, se o mesmo era portador da mesma síndrome que acometia o seu primo de Itu. Recusado pelos advogados.
O Thio então propôs que ele testemunhasse pessoalmente sobre o seu estudo, queria esclarecer ao juiz todas as nuances de um tal comportamento e alertá-lo sobre a existência do teste. Ele se limitaria, como bom pesquisador que era, aos aspectos técnicos, os advogados poderiam ficar tranquilos quanto a isso, insistiu. Recusado pelos advogados.
O que esses queriam era que o Thio apenas respondesse de forma sucinta a seguinte questão: “É possível que haja outra pessoa que sofra da síndrome descrita pelo pesquisador além do caso estudado por ele?” Bastava isso.
O Thio então redigiu uma minuciosa resposta onde reconheceu essa possibilidade mas argumentou que a mesma era extremamente rara. Ao longo de 537 páginas, ele discorreu sobre isso, mostrando estudos atualizados e descrevendo em detalhes o teste que poderia ser feito visando detectar se alguém era portador ou não dessa anomalia genética. Ficou satisfeito com o seu detalhado trabalho.
Os advogados então resumiram para o juiz esse estudo em uma frase: “O especialista Dr. Thio Thereso (sic) reconhece ser possível que o jovem e inocente cidadão que ora defendemos pode estar sofrendo da síndrome da embriaguez injusta (nome proposto por nós para tal síndrome)”.
O juiz então proferiu sua sentença inocentando o jovem rapaz em vista do princípio da inerente dúvida quanto à sua responsabilidade no trágico acidente (a palavra acidente aparece grifada...). Já que existia a possibilidade de que o promissor jovem tivesse adquirido a condição similar à embriaguez por conta de um determinismo genético, não haveria responsabilidade a ser atribuída a ele. O juiz citou jurisprudências e mais jurisprudências para sua decisão e o rapaz segue agora cumprindo o seu tempo de liberdade, tudo dentro da lei.
Houve um segundo famoso jantar na casa do pai do motorista inocentado, esse o Thio não ficou sabendo e nem se sabe o cardápio, em que indignados parentes consideraram a possibilidade de se processar a família do ciclista morto por danos morais e pelo tempo perdido pela família com essa estória. Só a família sabia o que tinham sofrido com ataques injustos nas redes sociais. O juiz, presente, pediu a palavra e disse, sem contestação: “Pessoal, mais aí também já é demais...”. E propôs um brinde ao Thio.
E, melhor ainda, tudo dentro da lei.