quinta-feira, 1 de março de 2018

Feijoada completa - parte II

[[ continuação da primeira parte publicada na semana passada]]





O Thio Therezo acordou naquela manhã sem muita disposição de trabalhar em algum de seus inúmeros projetos e, por isso, resolveu ler o jornal mais profundamente do que normalmente fazia. Chamou-lhe a atenção, e por isso leu a notícia até o final, a estória do motorista bêbado que, em alta velocidade, atropelou um ciclista no acostamento, matando-o na hora. Mesmo o motorista tendo escapulido da cena e argumentado que nem percebera que tinha atropelado alguém, o seu carro, parabrisa destroçado, foi identificado um par de horas depois e confiscado pela polícia. O teste sanguíneo do motorista, acordado então de um sono profundo, confirmou, sem dúvida palpável, o alto grau de embriaguez em que ele se encontrava. Como convém nesses casos, ele sequer passou sua bebedeira na cadeia. Até aí, mais uma das comuns notícias da República de Hygina e o Thio não prestou mais atenção a isso.
Quer dizer, até que um dia uma intimidação (ou seria uma intimação?) o recordou dessa notícia. O seu conhecimento era solicitado em uma ação que corria justamente contra aquele motorista. Esse tinha a seu favor alguns atenuantes como, por exemplo, o fato de estar dirigindo uma Ferrari ou mesmo o seu sobrenome em comum com algum dos mais notórios membros do poder principal da República de Hygina. Esses atenuantes, em situação normal, seriam mais do que suficientes para que ele fosse absolvido ou mesmo para que o processo prescrevesse em tempo recorde. Jurisprudência havia de sobra para tal.
No entanto, por conta de umas questões paralelas, a jurisprudência não bastaria, era preciso nesse caso dar uma satisfação à sociedade, era preciso também prudência. Com isso, a tendência era que o motorista bêbado fosse condenado, mesmo com os atenuantes, a uma pena exemplar para tais casos, isto é, a pagar uma cesta básica.
Muito tempo depois, o Thio soube de um famoso jantar, uma incompleta feijoada aliás, na casa do pai do motorista bêbado em que parentes indignados fizeram um juramento solene para não permitir de forma alguma que houvesse alguma condenação. Não permitiriam que algo assim prejudicasse pelo resto da vida aquele jovem de 40 anos. Seria preciso destruir a argumentação da acusação de que ele estava bêbado e em alta velocidade, mesmo contra todas as provas e evidências ao contrário.
A teoria do domínio do fato foi, depois de algum tempo, descartada, seria muito difícil convencer o juiz de que o verdadeiro responsável era o vendedor da Ferrari ao jovem ingênuo e bem intencionado. Também, a teoria da convicção estava descartada, em vista da desmoralização que outro juiz sofrera ao usá-la em um caso sem provas.
Aí entrava o Thio Therezo. Os advogados da defesa estavam contactando-o para que ele testemunhasse sobre a possibilidade de que o motorista não poderia ser responsabilizado por algo que deveria ser caracterizado como um mero determinismo genético. Todo aquele trabalho, aparentemente esquecido, feito com base no comportamento genético do primo de Itu, reaparecia em sua frente.
O Thio propôs submeter, antes de mais nada, o motorista ao teste que fora desenvolvido tempos antes. Isso mostraria, sem sombra de dúvida, se o mesmo era portador da mesma síndrome que acometia o seu primo de Itu. Recusado pelos advogados.
O Thio então propôs que ele testemunhasse pessoalmente sobre o seu estudo, queria esclarecer ao juiz todas as nuances de um tal comportamento e alertá-lo sobre a existência do teste. Ele se limitaria, como bom pesquisador que era, aos aspectos técnicos, os advogados poderiam ficar tranquilos quanto a isso, insistiu. Recusado pelos advogados.
O que esses queriam era que o Thio apenas respondesse de forma sucinta a seguinte questão: “É possível que haja outra pessoa que sofra da síndrome descrita pelo pesquisador além do caso estudado por ele?” Bastava isso.
O Thio então redigiu uma minuciosa resposta onde reconheceu essa possibilidade mas argumentou que a mesma era extremamente rara. Ao longo de 537 páginas, ele discorreu sobre isso, mostrando estudos atualizados e descrevendo em detalhes o teste que poderia ser feito visando detectar se alguém era portador ou não dessa anomalia genética. Ficou satisfeito com o seu detalhado trabalho.
Os advogados então resumiram para o juiz esse estudo em uma frase: “O especialista Dr. Thio Thereso (sic) reconhece ser possível que o jovem e inocente cidadão que ora defendemos pode estar sofrendo da síndrome da embriaguez injusta (nome proposto por nós para tal síndrome)”.
O juiz então proferiu sua sentença inocentando o jovem rapaz em vista do princípio da inerente dúvida quanto à sua responsabilidade no trágico acidente (a palavra acidente aparece grifada...). Já que existia a possibilidade de que o promissor jovem tivesse adquirido a condição similar à embriaguez por conta de um determinismo genético, não haveria responsabilidade a ser atribuída a ele. O juiz citou jurisprudências e mais jurisprudências para sua decisão e o rapaz segue agora cumprindo o seu tempo de liberdade, tudo dentro da lei.
Houve um segundo famoso jantar na casa do pai do motorista inocentado, esse o Thio não ficou sabendo e nem se sabe o cardápio, em que indignados parentes consideraram a possibilidade de se processar a família do ciclista morto por danos morais e pelo tempo perdido pela família com essa estória. Só a família sabia o que tinham sofrido com ataques injustos nas redes sociais. O juiz, presente, pediu a palavra e disse, sem contestação: “Pessoal, mais aí também já é demais...”. E propôs um brinde ao Thio.
E, melhor ainda, tudo dentro da lei.

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