quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Feijoada completa - parte I


Um grande amigo do Thio Therezo, que foi um dos presidentes da Ponte Preta, certa vez decretou que uma feijoada só é completa se tiver uma ambulância na porta.
            Pois bem. As feijoadas que o Thio organizou por muito tempo naqueles sábados modorrentos não só pediam uma ambulância na porta como também disponibilizavam, na mesinha do café, dois potes. Um com Rosuvastatina Cálcica pra quem exagerou no torresminho e outro com Glifage 500 pros formigões da festa. Engovs e quetais eram oferecidos já na entrada.
            Mas o que sempre chamou a atenção ao final desses famosos sábados era o olhar distante, a voz embargada e a cara de bêbado cansado que nosso primo de Itu exibia invariavelmente no meio da tarde. Não que essa expressão apenas ele demonstrasse, longe disso, tais olhares e vozes e caras eram corriqueiros entre os participantes. Também pudera! Com a completa feijoada, o que se esperar então?
A estranheza vinha do fato de que o primo não bebia nada além de água mineral, comia com moderação o seu feijãozinho com farofa e couve, evitava as carnes mais gordurosas, uma laranjinha pra acompanhar e só. Mas a cara de quem tomou todas era inevitável e isso intrigava o anfitrião. Um dia, o Thio trouxe, de brincadeira e ao final da comilança, um daqueles aparelhinhos de medir teor alcoólico. Logo, uma competição começou entre os presentes que conseguiam a proeza de abrir os olhos, em meio a gargalhadas gerais e vômitos esparsos.
O primo de Itu, claro, ganhou de lavada, com o aparelho batendo recordes após o seu sopro! Nem adiantou os seus protestos de que não tinha bebido nada, de que sequer gostasse de bebida alcoólica, ainda mais de cerveja ou de caipirinha que eram as que mais o Thio oferecia nessas homenagens a Baco. Nada que falasse adiantou e ele ficou, desde então, conhecido como o grande bebedor da família. Não que muitos lembrassem de alguma coisa depois da festa, muito menos daquela em que uma ambulância não foi suficiente, mas bastou um que espalhasse o boato...
O Thio, porém, lembrava bem das circunstâncias e, tão logo sua ressaca passou, ele tentou investigar esse mistério: como alguém que não bebe nada poderia ficar embriagado daquele jeito? O Thio, sabemos todos, não descansava enquanto não conseguisse explicações racionais a qualquer coisa de estranho que o circundasse.
Anos de investigações e o Thio descobriu que, por um defeito em seu DNA, o primo de Itu metabolizava álcool a partir de uma inusitada combinação do feijão preto utilizado na feijoada com a laranja que vinha do pequeno pomar que o Thio mantinha em seu quintal e que era o seu xodó. A embriaguez era, então, consequência de uma característica genética que afligiria o primo e não de um suposto e imprudente exagero alcoólico.
Entusiasmado com suas descobertas, o Thio prosseguiu nos estudos e conseguiu provar essa tese, trabalho publicado com louvor na melhor revista científica da área. Prêmios levou por suas descobertas, até um IgNobel foi-lhe dado pela prestigiosa Harvard.
Posteriormente, animado com o sucesso de sua pesquisa, ele supervisionou um estudo, teses de doutorados incluídas, que levou ao teste para identificação de outros portadores desse determinismo genético. No entanto, apesar de muitos terem se submetido a esse preciso e indolor teste, nenhuma outra pessoa foi identificada como portadora dessa anomalia genética e o assunto foi sendo esquecido. Restou o registro nos anais da academia científica.
Quanto ao primo, esse evitou desde então a explosiva mistura e viveu sóbrio até morrer de tédio em sua casa no interior.


[[A segunda parte dessa estória será publicada na semana que vem.]]

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