quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Minhocão III

            Estamos nos enganando nesta cidade. Cada vez que saio para dar uma volta por estas ruelas cinzentas e fétidas sei que na realidade estou apenas dando uma pausa para a nossa vida, para o absurdo quotidiano daquele apartamento de 30 metros quadrados e carros passando à altura de nossas janelas. Você não sai, diz que lhe dá nos nervos ver todo o cinza da vizinhança, o lixo, os crimes, sentir o fedor e morrer atropelada. Digo que vou sair e você retruca que morrer atropelado é a pior das mortes, é o símbolo supremo de que algo deu errado em nossa civilização e segue falando. E digo que só vou dar uma volta, e nos aborrecemos mutuamente.
            E eu saio e você seguirá assistindo a sua televisão. Nos velhos tempos, eu ainda lhe provocaria dizendo que você vai morrer de câncer, tamanha a radiação que recebe da televisão e receberia como resposta que é mais digno morrer desta forma que... E seguiríamos discutindo sobre a melhor maneira de morrer e por horas criaríamos várias teorias sobre as várias coisas, por isso gostávamos tanto um do outro. Naqueles tempos ainda exercitávamos nossas mentes neste jogo estúpido. Mas hoje não. Hoje eu saio e você segue assistindo a sua televisão.  Ambos já meio surdos devido àquele zumbido irritante e constante em nossa vida por conta destes carros todos que passam à altura de nossas janelas.  Definitivamente, estamos nos enganando nesta cidade. Saio, mas logo estarei de volta.
            Saio, uma pequena volta e já estou sentado em um boteco não muito longe de você. Nesta tarde modorrenta de sábado, ainda as pessoas estão trancadas em casa se ensurdecendo. E eu tomando uma cerveja solitária neste barzinho, acompanhado apenas pelo dono que se distrai mexendo nos poucos copos limpos e assistindo a um jogo de futebol sem muito interesse. Pergunto o placar e sua resposta não me esclarece em nada, quem se importa ?
Por um fresta entre os prédios consigo ver o Minhocão mas é só. Ouço os carros passando a uma distância segura de minha crescente surdez. Estamos nos enganando neste fim de mundo. De repente, minha atenção se volta para um barulho de tiros, tudo acontece tão rápido nesta cidade, um carro importado seguindo devagarinho até bater na parede, dois garotos correndo, um grito de morte vindo do carro. Curioso, corro para lá e já não estou só, a rua se enche repentinamente. 
Olhando o cara morto no carro, minha mente se enche de lembranças, conheço-o ? de onde ? de qual dos mundos que já vivi nesta cidade ?
Prudentemente, saio dalí e volto para casa convencido que sim, que ele foi parte de minha vida, de meus problemas com Andréia e de tudo o mais.  De estarmos nos enganando nesta cidade, definitivamente.
Abro a porta e entro, escuto a televisão ligada em um daqueles programas barulhentos de sempre e você deitada no sofá, roncando de boca aberta pateticamente. Vim preparado para lhe contar algo mas parece que isto terá que esperar. Não importa, estamos nos machucando mutuamente neste apartamento mas talvez você gostasse de saber que o seu amante acabou de levar um tiro. Mas talvez preferisse saber por outra pessoa. Desligo a televisão e vou à cozinha ver se consigo algo para comer. 



[[Essa é a terceira versão do conto Minhocão das quatro que aparece em meu livro Gambiarra e outros paliativos emocionais (publicado em 2007 pela Editora Arte Pau Brasil). As duas primeiras foram publicadas nas últimas semanas.]] 

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