Estamos nos
enganando nesta cidade. Cada vez que saio para dar uma volta por estas ruelas
cinzentas e fétidas sei que na realidade estou apenas dando uma pausa para a
nossa vida, para o absurdo quotidiano daquele apartamento de 30 metros quadrados
e carros passando à altura de nossas janelas. Você não sai, diz que lhe dá nos
nervos ver todo o cinza da vizinhança, o lixo, os crimes, sentir o fedor e
morrer atropelada. Digo que vou sair e você retruca que morrer atropelado é a
pior das mortes, é o símbolo supremo de que algo deu errado em nossa
civilização e segue falando. E digo que só vou dar uma volta, e nos aborrecemos
mutuamente.
E eu saio e
você seguirá assistindo a sua televisão. Nos velhos tempos, eu ainda lhe
provocaria dizendo que você vai morrer de câncer, tamanha a radiação que recebe
da televisão e receberia como resposta que é mais digno morrer desta forma
que... E seguiríamos discutindo sobre a melhor maneira de morrer e por horas
criaríamos várias teorias sobre as várias coisas, por isso gostávamos tanto um
do outro. Naqueles tempos ainda exercitávamos nossas mentes neste jogo
estúpido. Mas hoje não. Hoje eu saio e você segue assistindo a sua
televisão. Ambos já meio surdos devido
àquele zumbido irritante e constante em nossa vida por conta destes carros
todos que passam à altura de nossas janelas.
Definitivamente, estamos nos enganando nesta cidade. Saio, mas logo
estarei de volta.
Saio, uma
pequena volta e já estou sentado em um boteco não muito longe de você. Nesta
tarde modorrenta de sábado, ainda as pessoas estão trancadas em casa se
ensurdecendo. E eu tomando uma cerveja solitária neste barzinho, acompanhado
apenas pelo dono que se distrai mexendo nos poucos copos limpos e assistindo a
um jogo de futebol sem muito interesse. Pergunto o placar e sua resposta não me
esclarece em nada, quem se importa ?
Por um fresta entre os prédios consigo
ver o Minhocão mas é só. Ouço os carros passando a uma distância segura de
minha crescente surdez. Estamos nos enganando neste fim de mundo. De repente,
minha atenção se volta para um barulho de tiros, tudo acontece tão rápido nesta
cidade, um carro importado seguindo devagarinho até bater na parede, dois
garotos correndo, um grito de morte vindo do carro. Curioso, corro para lá e já
não estou só, a rua se enche repentinamente.
Olhando o cara morto no carro, minha
mente se enche de lembranças, conheço-o ? de onde ? de qual dos mundos que já
vivi nesta cidade ?
Prudentemente, saio dalí e volto para
casa convencido que sim, que ele foi parte de minha vida, de meus problemas com
Andréia e de tudo o mais. De estarmos
nos enganando nesta cidade, definitivamente.
Abro a porta e entro, escuto a
televisão ligada em um daqueles programas barulhentos de sempre e você deitada
no sofá, roncando de boca aberta pateticamente. Vim preparado para lhe contar
algo mas parece que isto terá que esperar. Não importa, estamos nos machucando
mutuamente neste apartamento mas talvez você gostasse de saber que o seu amante
acabou de levar um tiro. Mas talvez preferisse saber por outra pessoa. Desligo
a televisão e vou à cozinha ver se consigo algo para comer.
[[Essa é a terceira versão do conto Minhocão das quatro que aparece em meu livro Gambiarra e outros paliativos emocionais (publicado em 2007 pela Editora Arte Pau Brasil). As duas primeiras foram publicadas nas últimas semanas.]]
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