Estamos nos
enganando nesta cidade, benzinho. Você gosta de sair e passear por estas ruelas
fétidas e cinzentas talvez com aquela ingênua esperança de que algo irá mudar
em nosso absurdo quotidiano deste apartamento de 30 metros quadrados e carros
passando à altura de nossos ouvidos. O
máximo que conseguirá, digo para seu desespero, será ser atropelado, que é a
pior das mortes, o símbolo supremo de que algo deu errado em nossa civilização. Você dirá que eu sinto prazer em te dizer
isto, em te aporrinhar com esta provocação, e que sentirei muito prazer quando
isto acontecer. Sorrio então, você se
aborrece, nos aborrecemos mutuamente.
Você sai,
mas logo estará de volta. Sai, mas antes você olhará a televisão que está em
seu volume máximo, quem consegue escutar algo com todos estes carros passando à
altura de nossos apartamentos ? Olhará a TV, me direcionará aquele seu olhar
irônico, vingança às minhas observações, nem precisará mais dizer que eu irei
morrer de câncer tanta a radiação que recebo. Convivência é isto, saber de cor
todas as agressões do companheiro, estamos nos enganando nesta merda de cidade,
definitivamente estamos.
Você sai e eu sigo assistindo a
televisão, o que há para se fazer em um sábado modorrento ? Acabo dormindo, uma
estranha paz me faz dormir, sonho com nuvens coloridas, estranho isto. Sei lá
quanto tempo dormi, mas quando acordo, um incrível silêncio me rodeia, a TV
desligada e você à porta da cozinha terminando um sanduíche. Quanto tempo aí me
espreitando ? Parece que quer me dizer
algo, tem o olhar triste você, mas o máximo que faz é deitar-se no sofá, cabeça
em minhas coxas. Minha mão, automaticamente, lhe faz um cafuné.
[[Em meu livro de contos Gambiarra e outros paliativos emocionais (publicado em 2007 pela Editora Arte Pau Brasil) há quatro versões do conto Minhocão. Semana passada eu publiquei aqui a primeira. Essa é a segunda.]]
Nenhum comentário:
Postar um comentário