quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Minhocão II

            Estamos nos enganando nesta cidade, benzinho. Você gosta de sair e passear por estas ruelas fétidas e cinzentas talvez com aquela ingênua esperança de que algo irá mudar em nosso absurdo quotidiano deste apartamento de 30 metros quadrados e carros passando à altura de nossos ouvidos.  O máximo que conseguirá, digo para seu desespero, será ser atropelado, que é a pior das mortes, o símbolo supremo de que algo deu errado em nossa civilização.  Você dirá que eu sinto prazer em te dizer isto, em te aporrinhar com esta provocação, e que sentirei muito prazer quando isto acontecer.  Sorrio então, você se aborrece, nos aborrecemos mutuamente.
            Você sai, mas logo estará de volta. Sai, mas antes você olhará a televisão que está em seu volume máximo, quem consegue escutar algo com todos estes carros passando à altura de nossos apartamentos ? Olhará a TV, me direcionará aquele seu olhar irônico, vingança às minhas observações, nem precisará mais dizer que eu irei morrer de câncer tanta a radiação que recebo. Convivência é isto, saber de cor todas as agressões do companheiro, estamos nos enganando nesta merda de cidade, definitivamente estamos.
            Você sai e eu sigo assistindo a televisão, o que há para se fazer em um sábado modorrento ? Acabo dormindo, uma estranha paz me faz dormir, sonho com nuvens coloridas, estranho isto. Sei lá quanto tempo dormi, mas quando acordo, um incrível silêncio me rodeia, a TV desligada e você à porta da cozinha terminando um sanduíche. Quanto tempo aí me espreitando ?  Parece que quer me dizer algo, tem o olhar triste você, mas o máximo que faz é deitar-se no sofá, cabeça em minhas coxas. Minha mão, automaticamente, lhe faz um cafuné. 



[[Em meu livro de contos Gambiarra e outros paliativos emocionais (publicado em 2007 pela Editora Arte Pau Brasil) há quatro versões do conto Minhocão. Semana passada eu publiquei aqui a primeira. Essa é a segunda.]] 

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