quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Minhocão IV

            Estamos nos enganando nesta cidade, benzinho. Cada vez que saio para dar uma volta por estas ruelas cinzentas e fétidas sei que na realidade estou apenas dando uma pausa para a nossa vida, para o absurdo quotidiano daquele apartamento de 30 metros quadrados e carros passando à altura de nossos ouvidos. Você não sai, você nunca sai, diz que lhe dá nos nervos ver todo o cinza da vizinhança, o lixo, os crimes, sentir o fedor e a possibilidade de morrer atropelada em uma destas tantas esquinas da cidade, que esquina é o que não falta nela. Digo que vou sair e você retruca que morrer atropelado é a pior das mortes, é o símbolo supremo de que algo deu errado em nossa civilização e segue falando. E digo que só vou dar uma volta, e nos aborrecemos mutuamente.
            E eu saio e você seguirá assistindo a sua televisão. Nos velhos tempos, eu ainda lhe provocaria dizendo que pior que morrer atropelado, é morrer de câncer, tamanha a radiação que você recebe da televisão e receberia como resposta que é muito mais digno morrer desta forma que...  E seguiríamos discutindo sobre a melhor maneira de morrer e por horas criaríamos várias teorias sobre as várias coisas, por isso gostávamos tanto um do outro. Naqueles tempos ainda exercitávamos nossas mentes neste jogo estúpido. Mas hoje não. Hoje eu saio e você segue assistindo a sua televisão.  Ambos já meio surdos devido àquele zumbido irritante e constante em nossa vida por conta destes carros todos que passam à altura de nossas janelas.  Definitivamente, estamos nos enganando nesta cidade, benzinho. Saio, mas logo estarei de volta.
            Saio, percorro lentamente estas ruas vazias, não muito longe de você. Nesta tarde modorrenta de sábado, ainda as pessoas estão trancadas em casa se ensurdecendo. Vez ou outra eu escuto o barulho sincronizado e irritante das televisões ligadas nos mesmos canais de sempre, naqueles mesmos programas de sempre, naquelas vozes de sempre.  Um sábado é igual a outro sábado qualquer nesta parte da cidade.  Ou será que é a televisão que passa sempre o mesmo programa ? Sim, querida, estamos definitivamente nos enganando nesta beira do viaduto, os carros passam na altura de nossos ouvidos, ensurdecendo-nos aos poucos, de forma implacável.  E nos aborrecendo mutuamente, de forma implacável.
            Só tem um dia do ano em que vemos vida neste viaduto, milhares de pessoas celebrando e correndo em busca de um novo ano que, dizem, está ali ao final do viaduto, depois daquela curva como se fosse o final de um grande arco-íris. E nós, o prédio todo, todos os infelizes moradores daqueles apartamentos de 30 metros quadrados, neste dia nem no reconhecemos. Gritamos, brincamos, jogamos água nos corredores, celebramos também o único dia em que é proibido por lei não se ter esperanças, em que se corre em direção ao novo.  E me pego de novo, com estes meus pensamentos, parado em uma esquina, alguns caixotes misturados a outros lixos empilhados frente à loja que foi a última a fechar hoje nesta região. De agora a segunda, só os poucos botecos estarão abertos, onde pessoas como eu tomarão suas cervejas solitárias, acompanhadas pelos donos de botecos que se distraem mexendo nos poucos copos limpos e assistindo a jogos de futebol sem nenhum interesse. Alguém perguntará o placar e suas respostas, seus desinteresses, não esclarecerão nada. Quem se importa, afinal ?
            Ainda na esquina, levanto os olhos e, por uma fresta entre os prédios consigo ver o Minhocão, mas é só.  Ouço os carros passando a uma distância segura de minha crescente surdez, como tem carro nesta cidade !  Distraído, tento atravessar a rua mas um carro, importado, vindo de sei lá onde, quase me atropela. Recuo instantaneamente e penso na pior das mortes. Nos últimos tempos, tenho redobrado minha atenção para não lhe dar este gostinho, a pior das mortes, o símbolo supremo de que algo deu errado em nossa civilização, mas hoje... Estava nisto quando percebo que o carro parou, saiu de lá um cara todo arrumado e que vem agora em minha direção. Não quero encrenca, viro o rosto, finjo que não é comigo, atravesso a rua e sigo em frente. Por trás, ouço ele dizer:
            - Vitor ?
            É instintivo, viro-me. Vitor sou eu, ou melhor, sou um dos tantos desta cidade maldita.
            - Vitor ?  - ele repete.
            - Sim... – fico olhando-o sem reconhecer, com uma cara de abobalhado, deve ter a ver com a crescente surdez.
            - Você não está se lembrando de mim, não é ?
            Sorrio amarelo e ele me dá um tempo para que eu me lembre dele, sorrindo, fazendo caretas, uma eternidade esta tortura, será que eu não posso cuidar de minha vida enquanto você cuida da sua ? quem realmente se importa se nos reconhecemos e nos abraçamos e ponto final ? o que realmente iria mudar em minha vida se eu te reconhecer neste momento ? E ficamos nesta, ele tentando me fazer lembrar de algo que sei lá se é importante e eu pouco me lixando e pensando em como seria bom estar sentado em um bar, com uma cerveja, sem ninguém me aporrinhando, e esta situação ridícula só é interrompida pela voz que vem de uma televisão do apartamento bem aqui na esquina anunciando os comerciais...
            - Lembra ? Colegas do segundo grau...
            Não lembrava, e quem se importa ? Seria muito deselegante mandá-lo passear ? O que me segura realmente aqui, escutando-o ? Deve ter algo a ver com alguma coisa que me ensinaram quando era criança, mas o que realmente ? divago mas não escapo...
            A próxima meia hora foi um turbilhão de lembranças por um lado e respostas monossilábicas por outro, uma verborrágica e exaustiva sessão de nostalgia.  Será que ele vai querer me vender alguma coisa ao final desta conversa ? Fomos tomar uma cerveja, o que não foi de todo mal, eu convido em nome dos velhos tempos, ele me disse com uma euforia despropositada. E prosseguia lembrando de tanta coisa que eu pensava já ter soterrado, estes fantasmas que pensei terem desaparecido. Até que:
            - E a Andréia, você se lembra ?
            Opa ! Fingi desinteresse, mas apurei meus ouvidos e ele continuou, tem gente que não precisa de interlocutor, apenas alguém presente fingindo escutá-lo para não parecer que é um louco falando sozinho.
            - Ela continua gostosa, cara, gostosa mesmo...  a gente tem se encontrado às vezes, você precisa ver só o que ela é capaz de fazer.  Sabe, Vitor ? – ele chegou mais perto - pouca gente sabe mas fui eu que tirei a virgindade dela, foi uma loucura... Foi, cara... no segundo ano. Depois ela começou a dar pra todo mundo, todo o colégio a conheceu... mas eu...
            Todo ? Menos eu, quero dizer, não naquela época.  Sabe aquela garota do colégio que dá para todo mundo e para você ela diz eu te gosto como um irmão ? Sim, isto era Andréia e eu... Quer dizer, isto até, quase dez anos depois, quando começarmos a viver juntos.
            - ... mas eu fui o primeirão !
            Ele levantou o copo para um brinde, que eu distraído fingi não acompanhar. Brindava o que realmente, o escroto ?
            - Ah! Vem cá ! Você mora por aqui, não é ?
            - Hã hã...
            - É que a Andréia disse que mora por aqui também, você não sabe onde, sabe ? A gente sempre se encontra perto da Paulista, tenho um flatzinho por lá, sabe como é, né ? E neste final de semana, a patroa viajou e eu pensei... por que não comer a Andréia hoje ?  Ela sempre reclamou da solidão, que vivia sozinha por estas bandas, lugarzinho feio por sinal...
            É, lugarzinho feio... ao que parece, a única coisa bonita dever ser o seu carro importado não é ? aquele que a gente consegue ver daqui, quer dizer, eu vejo, você está de costas e nem consegue ver o par de garotos que agora o está rodeando com cuidadoso interesse.
            - Você sabe onde ela se esconde, sabe ? – ele insistia – dou um banho de loja nela e vamos pras baladas.
            Olho para ele com desdém mas sem dizer palavra. Ele finaliza sua cerveja, pede a conta. Percebo agora que os garotos se afastaram e que tem dois marmanjos escondidos na esquina, de espreita. Ele, de costas, nada percebe, paga a conta, se despede e vai. Eu deveria ter dito algo a ele mas, justamente no momento que ele sai do bar, minha boca estava ocupada com a espuma de minha cerveja e depois, bom... depois foi tarde demais.  Tarde e rápido demais.  Um grito, um tiro, dois caras correndo sujou sujou. Curioso, corro para lá e já não estou só, a rua se encheu repentinamente. Toda aquela gente ao lado do corpo, estamos nos enganando nesta cidade.
De repente, minha mente se enche de lembranças. Agora sim, vem tudo muito claro, agora me recordo bem do escroto colega do segundo grau. Prudentemente, saio dali e volto para casa convencido que sim, que ele foi parte de minha vida, a parte invisível de meus problemas com Andréia e tudo o mais. De estarmos nos enganando nesta cidade, definitivamente isso.
            Abro a porta e entro, escuto a televisão ligada em um daqueles programas barulhentos de sempre e você deitada no sofá, roncando de boca aberta pateticamente. Vim preparado para lhe contar algo mas parece que isto terá que esperar. Não importa, estamos nos machucando mutuamente neste apartamento, mas talvez você gostasse de saber que o seu amante acabou de levar um tiro. Mas talvez preferisse saber por outra pessoa, a gente nunca foi muito bom de confidências mesmo. Desligo a televisão e vou à cozinha procurar algo para comer.




[[Essa é a última versão do conto Minhocão das quatro que aparece em meu livro Gambiarra e outros paliativos emocionais (publicado em 2007 pela Editora Arte Pau Brasil). As outras foram publicadas nas semanas passadas.]] 

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