Eram
os anos setenta e eu estudava no Costa Manso. O Costa é um dos colégios
públicos do Itaim, à época tinha alunos das últimas quatro séries do então chamado
primeiro grau e as três séries do segundo grau, mas agora só tem o Ensino
Médio. Fiquei lá sete anos, o ciclo completo que o Costa oferecia então.
Mas
eram os anos setenta e estávamos, eu ao menos, confusos naquela época de ditadura,
e pouca idade pra poder entender o que se passava, cheguei lá nem dez anos
tinha. Mas foram longos e excelentes anos de muita aprendizagem.
Muitas
memórias e vez ou outra ainda encontro colegas daquele tempo, amigos que depois
perdi contato. Um deles, descubro, é pai de um ex-aluno de Iniciação Científica
(e agora de Mestrado) aqui no IME, mundo pequeno esse, mas pra lá de
interessante.
E
outro dia reencontrei, pelo Face, a irmã de um outro amigo dos tempos do Costa.
Esse colega, Cláudio, foi companhia constante por longo tempo,
junto a outro, esse Márcio. Um dia, nós três, noite já, voltávamos sei lá de
onde, talvez do Ibirapuera onde íamos ver o Costa jogar Handebol (o Márcio
jogava no time, nós dois só torcíamos). Voltávamos para casa, tranquilos, no
meio de uma das ruas que saía da Av. Santo Amaro, onde o ônibus nos deixava,
quando passamos por um grupo e ouvimos, vindo deles, “passou um bando de bunda moles...” seguidos de risos. Márcio e eu
engolimos em seco, mas o Cláudio retrucou “e
outros ficaram para trás...” Penso nisso e como saímos ilesos dessa
situação, certeza que ao menos uns tabefes iriamos levar. Um par de elementos
desse grupo ainda veio atrás da gente e o Cláudio, quem mandou abrir a boca?,
levou alguns chutes na tal bunda mole. Sorte que só ficou nisso e seguimos sem
mais problemas a não ser o gasto excessivo de batidas cardíacas.
Eram
tempos difíceis esses tais anos setenta, ainda mais para um jovem como eu ainda
perdido de tudo, tímido e inseguro. E nem sei por que essas lembranças me vêem
à mente agora nesses novos tempos difíceis. Na realidade, peguei o papel para
escrever sobre outra coisa, algo puxa algo e assim vou me dispersando.
Mas
volto agora ao que queria dizer.
Lembro
de muitos de meus professores do Costa, mas uma agora me vem à lembrança, pois
a lição que guardo dela demorei um pouco a aprender. Éramos crianças demais e
eu, como sempre, lerdo demais... A meu favor, posso até dizer que poucos
perceberam realmente a lição naquele momento e quem o percebeu, sei lá, talvez
já tenha até esquecido nesses tempos de pós-esperança que vivemos.
Era
uma professora de português e nos deu aula por pouco tempo, não lembro dela ter
ficado depois do que aprontamos com ela.
Estranho,
quanto mais penso mais me decepciono comigo naquele dia. Mas voltemos um pouco.
Essa professora tinha um método todo especial de ensinar e, lembro, uma das
atividades dada a nós, alunos, era irmos entrevistar artistas, pessoas de certo
renome, e depois compartilharmos isso com os colegas (ao meu grupo, coube
entrevistar o pianista Gilberto Tinetti, coisa que fizemos com muito entusiasmo
e eu, particular interesse, pois ainda tocava piano naqueles dias). De resto,
muita conversa, muita discussão, como deveria ser.
Nem
sei como começou, mas começou. Houve uma reação por parte de colegas a essa
maneira de ensinar e um grupo resolveu fazer uma “greve” um dia, o que
significava que faltaríamos coletivamente à aula dela e assim ficou combinado. Essa
atitude mostraria o quanto o grupo não se satisfazia com os seus métodos
didáticos. Detalhes? não me lembro e tampouco como eu entrei nisso. Só um
colega da sala toda, poupo o nome dele aqui, não concordava com isso e faltou
naquele dia depois de tentar nos convencer da bobagem que fazíamos. Todos os
outros seguimos para o pátio na hora da aula.
Sei
lá, lá sei, mas na minha cabeça, naquela época, parecia que naquele ato nós
estávamos sendo rebeldes, imagina afrontar assim o sistema e fazer uma greve em
pleno regime militar. Mas, idiotice, fazer greve justamente contra quem estava
tentando nos ensinar algo que seguramente não caberia em uma aula de Educação
Moral e Cívica.
Penso
nisso quando vejo pessoas rasgando uma faixa a favor da Educação, tantos anos
depois.
Muito
confuso, tudo muito confuso. O bom que o Costa tinha um diretor mais que
decente. Percebeu logo o que se passava realmente e nossa única punição foi
voltar mais cedo para casa após um sermão e um conselho para pensarmos direito
no que tínhamos feito. Sei lá quantos de nós seguimos tal conselho, eu sim,
pois penso frequentemente na idiotice que foi seguir um bando de colegas
naquele ato, agora sei, ridículo. Quando eu, hoje, dou aula sei que, mesmo
inconscientemente, me inspiro mais nela do que no professor de francês que nos
apavorava e nos obrigava a cantar a Marselhesa de pé sem sabermos do que se
tratava, só faltava batermos continência à bandeira francesa.
Às
vezes, cruzo com um ou outro colega daqueles tempos, mas não me recordo de ter
conversado com qualquer um deles sobre aquele dia. Vergonha, talvez, ou talvez
a certeza de que nem todos guardaram essa lembrança como algo importante,
coisas de nossas mentes.
Mas
a meu favor tenho algo. Eu, ao contrário do único colega que não fez greve
naquele dia e que até admirei por isso em certo momento, eu não votei nem
votarei nunca em mitos-entusiastas-da-tortura-e-enviados-por-deuses, de forma
alguma, desculpa que for. Isso, acho, aquela minha professora de português
talvez tenha me ajudado a aprender e, por isso, sou grato a ela.