quinta-feira, 30 de maio de 2019

Tempos de Costa

          Eram os anos setenta e eu estudava no Costa Manso. O Costa é um dos colégios públicos do Itaim, à época tinha alunos das últimas quatro séries do então chamado primeiro grau e as três séries do segundo grau, mas agora só tem o Ensino Médio. Fiquei lá sete anos, o ciclo completo que o Costa oferecia então.
          Mas eram os anos setenta e estávamos, eu ao menos, confusos naquela época de ditadura, e pouca idade pra poder entender o que se passava, cheguei lá nem dez anos tinha. Mas foram longos e excelentes anos de muita aprendizagem.
          Muitas memórias e vez ou outra ainda encontro colegas daquele tempo, amigos que depois perdi contato. Um deles, descubro, é pai de um ex-aluno de Iniciação Científica (e agora de Mestrado) aqui no IME, mundo pequeno esse, mas pra lá de interessante.
          E outro dia reencontrei, pelo Face, a irmã de um outro amigo dos tempos do Costa.
Esse colega, Cláudio,  foi companhia constante por longo tempo, junto a outro, esse Márcio. Um dia, nós três, noite já, voltávamos sei lá de onde, talvez do Ibirapuera onde íamos ver o Costa jogar Handebol (o Márcio jogava no time, nós dois só torcíamos). Voltávamos para casa, tranquilos, no meio de uma das ruas que saía da Av. Santo Amaro, onde o ônibus nos deixava, quando passamos por um grupo e ouvimos, vindo deles, “passou um bando de bunda moles...” seguidos de risos. Márcio e eu engolimos em seco, mas o Cláudio retrucou “e outros ficaram para trás...” Penso nisso e como saímos ilesos dessa situação, certeza que ao menos uns tabefes iriamos levar. Um par de elementos desse grupo ainda veio atrás da gente e o Cláudio, quem mandou abrir a boca?, levou alguns chutes na tal bunda mole. Sorte que só ficou nisso e seguimos sem mais problemas a não ser o gasto excessivo de batidas cardíacas.
          Eram tempos difíceis esses tais anos setenta, ainda mais para um jovem como eu ainda perdido de tudo, tímido e inseguro. E nem sei por que essas lembranças me vêem à mente agora nesses novos tempos difíceis. Na realidade, peguei o papel para escrever sobre outra coisa, algo puxa algo e assim vou me dispersando.
          Mas volto agora ao que queria dizer.
          Lembro de muitos de meus professores do Costa, mas uma agora me vem à lembrança, pois a lição que guardo dela demorei um pouco a aprender. Éramos crianças demais e eu, como sempre, lerdo demais... A meu favor, posso até dizer que poucos perceberam realmente a lição naquele momento e quem o percebeu, sei lá, talvez já tenha até esquecido nesses tempos de pós-esperança que vivemos.
          Era uma professora de português e nos deu aula por pouco tempo, não lembro dela ter ficado depois do que aprontamos com ela.
          Estranho, quanto mais penso mais me decepciono comigo naquele dia. Mas voltemos um pouco. Essa professora tinha um método todo especial de ensinar e, lembro, uma das atividades dada a nós, alunos, era irmos entrevistar artistas, pessoas de certo renome, e depois compartilharmos isso com os colegas (ao meu grupo, coube entrevistar o pianista Gilberto Tinetti, coisa que fizemos com muito entusiasmo e eu, particular interesse, pois ainda tocava piano naqueles dias). De resto, muita conversa, muita discussão, como deveria ser.
          Nem sei como começou, mas começou. Houve uma reação por parte de colegas a essa maneira de ensinar e um grupo resolveu fazer uma “greve” um dia, o que significava que faltaríamos coletivamente à aula dela e assim ficou combinado. Essa atitude mostraria o quanto o grupo não se satisfazia com os seus métodos didáticos. Detalhes? não me lembro e tampouco como eu entrei nisso. Só um colega da sala toda, poupo o nome dele aqui, não concordava com isso e faltou naquele dia depois de tentar nos convencer da bobagem que fazíamos. Todos os outros seguimos para o pátio na hora da aula.
          Sei lá, lá sei, mas na minha cabeça, naquela época, parecia que naquele ato nós estávamos sendo rebeldes, imagina afrontar assim o sistema e fazer uma greve em pleno regime militar. Mas, idiotice, fazer greve justamente contra quem estava tentando nos ensinar algo que seguramente não caberia em uma aula de Educação Moral e Cívica.
          Penso nisso quando vejo pessoas rasgando uma faixa a favor da Educação, tantos anos depois.
          Muito confuso, tudo muito confuso. O bom que o Costa tinha um diretor mais que decente. Percebeu logo o que se passava realmente e nossa única punição foi voltar mais cedo para casa após um sermão e um conselho para pensarmos direito no que tínhamos feito. Sei lá quantos de nós seguimos tal conselho, eu sim, pois penso frequentemente na idiotice que foi seguir um bando de colegas naquele ato, agora sei, ridículo. Quando eu, hoje, dou aula sei que, mesmo inconscientemente, me inspiro mais nela do que no professor de francês que nos apavorava e nos obrigava a cantar a Marselhesa de pé sem sabermos do que se tratava, só faltava batermos continência à bandeira francesa.
          Às vezes, cruzo com um ou outro colega daqueles tempos, mas não me recordo de ter conversado com qualquer um deles sobre aquele dia. Vergonha, talvez, ou talvez a certeza de que nem todos guardaram essa lembrança como algo importante, coisas de nossas mentes.
          Mas a meu favor tenho algo. Eu, ao contrário do único colega que não fez greve naquele dia e que até admirei por isso em certo momento, eu não votei nem votarei nunca em mitos-entusiastas-da-tortura-e-enviados-por-deuses, de forma alguma, desculpa que for. Isso, acho, aquela minha professora de português talvez tenha me ajudado a aprender e, por isso, sou grato a ela.


quinta-feira, 23 de maio de 2019

as nuvens amortecem a queda




A Sangre Editorial publicou recentemente uma coleção de livretos com 32 páginas cada, numerados e feitos de forma artesanal. Fico contente em fazer parte dessa coleção com o meu "as nuvens amortecem a queda" que contém contos curtos e aldravias. Se alguém se interessar em ter um exemplar, numerado e autografado, basta me escrever (flavioucoelho@gmail.com). Enquanto isso, apreciem as nuvens que, talvez, amorteçam as quedas:


  







     

quinta-feira, 16 de maio de 2019

iba áles, onze (parte II)


Prezado Editor-Chefe da Revista,
         
          Agradeço inicialmente a gentil carta da semana passada em que  comunica a aceitação de meu artigo em sua prestigiosa revista. Fico muito feliz em poder divulgar esse meu trabalho nela.
Acredito que os editores da Revista ficarão muito satisfeitos em saber que eu incorporei a maioria das sugestões feitas (e enviadas em um arquivo em anexo) ao meu estudo. Realmente, elas me foram muito úteis para um melhor esclarecimento dos pontos levantados no artigo. Agradeço aos pareceristas por essa imensa contribuição.
          Há, porém, um ponto a considerar com relação à objeção levantada quanto à utilização da palavra “esquerdo” para se referir a um dos hemisfério do cérebro (em contraposição ao hemisfério direito). Não só ela está sedimentada como termo usual na área da neurociência, e por isso não seria razoável se tentar substituí-lo sem um profundo motivo para tal, como também não me parece ser um termo inadequado, mesmo nos estranhos tempos em que atualmente vivemos. Por essa razão, preferi manter a terminologia usada na área até o presente momento.
          Também, mantive minha dedicatória ao Paulo Freire, nosso educador.
          Despeço-me na expectativa de que essa versão de meu trabalho seja considerada aprovada para publicação na conceituada Revista. Com todo o meu apreço,

                                                                    Thio Therezo

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Prezado Sr. Therezo,

          Foi com uma imensa decepção que constatamos que nossas principais sugestões não foram incorporadas ao seu estudo que, diga-se de passagem, é de péssima qualidade.
          Não só por não alcançar os padrões mínimos de nosso periódico mas também por não atender às normas da BNI, comunicamos oficialmente que a Revista não irá publicar o seu pobre estudo. Em consideração, também foi levado o fato de se dedicar um estudo pretensamente científico a um sujeito banido explicitamente pela BNI.
          Gostaríamos que também chegasse à vossa atenção que, após uma longa reunião, o conselho editorial da Revista resolveu denunciá-lo junto ao MEC e entidades profissionais por ideologização acadêmica. Esperamos sinceramente que seja aberta uma séria sindicância que conclua por uma punição exemplar, servindo de alerta assim aos maus elementos que cercam os estudos acadêmicos.
          Por fim, solicitamos que não nos envie qualquer correspondência e fique ciente que se o fizer tal atitude será tratada com o devido rigor da lei vigente.

                                                             Editor-Chefe da Revista

quinta-feira, 9 de maio de 2019

iba áles, onze


Prezado Dr. Therezo,

          Antes de mais nada, gostaríamos de agradecer a sua preferência em publicar o seu último estudo em nossa revista científica. Ficamos realmente muito honrados com essa escolha.
          Como de praxe, o seu artigo foi enviado a dois pareceristas para análise e muito nos alegra dizer que ambos consideram o seu trabalho de excelente qualidade e merecedor de divulgação em um periódico de importância como o nosso. Em anexo, o prezado colega irá encontrar um documento com pequenos acertos necessários, mormente decorrentes de erros de digitação.
          No entanto, cabe-nos enfatizar um pequeno ponto que, aparentemente, passou desapercebido ao nobre colega pois temos a certeza de seu necessário conhecimento da recém publicada BNI pelo MEC. Temos também a convicção de que o renomado colega não irá se opor a realizar pequenas e irrelevantes modificações intentando com isso se adequar plenamente às normas contidas na BNI.
          Logo na introdução de seu excelente artigo aparece a frase “... analisar o mito dos hemisférios do cérebro...”. Entendemos a sua preocupação em desmistificar certos conceitos arraigados na neurociência, mas acreditamos que a palavra usada (mito) vem carregada, nessa frase específica, de uma conotação negativa, o que não é condizente com a terminologia atualmente utilizada nas redes sociais. Sugerimos, simplesmente, substituir a palavra “mito” por outra de igual valor mas que não propicie o surgimento de qualquer polêmica online quanto a possíveis mitos que lá transitam e habitam.
          Mas talvez isso seja apenas a ponta do iceberg dos problemas que vemos com relação aos termos utilizados em seu pertinente trabalho. Não interprete, caro colega, nossos comentários como críticas à metodologia de seus estudos, mais do que correta e igualmente inovadora para se dizer o mínimo, nem tampouco reparos às conclusões a que chegou ao final dele. Suas conclusões, enfatizamos, merecem todo o nosso apreço por propiciar, isso sim, uma rica e profunda discussão em relevantes questões em nosso ambiente acadêmico.
          Nosso ponto é que, ao longo do texto, você se refere às características positivas de cada um dos hemisférios do cérebro. Nada há a objetar quanto a essas características no que se refere ao hemisfério direito do cérebro, inclusive incentivamos um maior aprofundamento em suas descrições. Quanto ao outro hemisfério, é preciso, porém, um cuidado nas palavras utilizadas, mormente as de cunho positivo, visando a devida adequação à Base Nacional Ideológica acima referida. É base dessa Base evitar que certos conceitos ideológicos voltem a interferir no bom andamento do ensino e da pesquisa nesse país e temos a certeza de que o reputado colega sabe a qual termos estamos nos referindo E, convenhamos, as mudanças que estamos sugerindo não são nada que um pesquisador premiado e maduro como o colega tenha dificuldades em realizar. Por isso, deixamos a seu inteiro encargo essas, digamos assim, adaptações à BNI.
          Apenas, e apenas isso, como sugestão gostaríamos de indicar um possível caminho, o da conceitualização dos dois hemisférios do cérebro a partir de referências espaciais. Ao invés de se utilizar as palavras “direito” e a outra, sugerimos nomear os dois hemisférios do cérebro como sendo “o hemisfério direito” e “o hemisfério direito no referencial invertido” o que, a nosso ver, pode bem caracterizar os dois lados estudados sem imputarmos em confusões desnecessárias ou impingirmos questões ideológicas a nossos estudantes. Com isso, evitamos nomear algo que a BNI reputa como extremamente nocivo à nova sociedade e relacioná-lo a valores positivos.
          Por fim, sugerimos repensar a dedicatória de seu trabalho.
          Certos de seu entendimento e na imensa expectativa de recebermos logo uma versão revisada desse importantíssimo estudo, despedimo-nos atenciosamente enfatizando todo o nosso apreço por sua vitoriosa carreira,

                                                                       Editor-Chefe da Revista

quinta-feira, 2 de maio de 2019

iba áles, dez


          - iba áles a todos!
          - iba áles... – o baixo tom da resposta até que surpreendeu alguns naquela pavilhão, mas provavelmente menos do que terem visto quem seria o palestrante da noite. Na chamada daquela sessão havia mistério quanto a quem falaria a todos, qual testemunho ouviriam eles e assim que o dito cujo foi chamado e subiu ao palco trocas de olhares surpresos percorreram silenciosamente o recinto. Mesmo sem entusiasmo, mas obedientes como deveriam ser nesses novos tempos, ninguém foi visto de boca fechada na resposta ao usual cumprimento.
          - eu sei que sou um abençoado – o jovem começou sua fala – desde quando criança sei disso. Desde o dia em que fui salvo enquanto meus parças sucumbiram. Desde o dia em que soube qual missão teria que cumprir.
          O silêncio persistia, nem pensamento ousava se manifestar, vai que ele é mesmo abençoado e percebe o desconforto alheio. Melhor esperar, melhor guardar para si o que não se deve compartilhar nesses tempos de tantas pseudo-verdades.
          - conto, conto como foi e vocês poderão julgar o que digo, poderão ver que tenho razão. Assim é, assim deve ser, assim todos aceitarão.
          - conto sim... era menor, quatorze, treze, talvez doze anos, meus parceiros com meses a mais ou a menos do que eu, três éramos naquele dia. Queríamos o que a vitrine mostrava, o que lá reluzia, dinheiro não havia, centavo sequer, a noite naquela rua é escura, o guarda dorme cedo, uma ação rápida, uma pequena carreira, o buraco no terreno baldio quase na esquina de baixo, fácil fácil. Mas algo errado, os outros dois não escapam, tiros, o buraco, eu com a sacola, os outros dois não escapam, sangue, gritos, os outros dois não escapam...
          Ele parou de contar a história, abaixa os olhos, todos abaixam.
          - eu sabia que era abençoado, dos três só eu voltei a acordar, só eu voltei a dormir, só eu pude aproveitar o que havia na sacola, no que tínhamos conseguido com tanto esforço, com dedicação, mérito todo nosso. Foi aí que percebi que tinha sido protegido, e se assim foi, foi porque havia algo especial em mim. Foi uma revelação... iba áles!
          - iba áles – responderam sem convicção os ouvintes.
          - não posso deixar de confessar que aquilo mudou a minha vida, dias pensando, dias refletindo, o que aquilo significava? O choro dos familiares de meus parças, o caixão que por pouco não era branco, sonhos arrebentados, por que só a mim as balas não atingiram? Eu olhava a sacola com tudo o que tínhamos conquistado naquele dia e pouco fazia sentido a mim. Dias se passaram, vocês não têm noção do quanto isso mexeu comigo. Semanas, um, quase dois meses...
          Ele olhava por cima de todos, parecia refletir só para si, deram-lhe um copo d’água e ele prosseguiu.
          - o fato de ter sobrevivido é um sinal, sinal é de que alguém, em algum lugar, está velando por mim, me protegendo, me guiando para o meu sucesso, pois sou dedicado no que faço, planejo meus atos com cuidado, sou abençoado sim mas tenho mérito. Iba áles!
          - iba áles!
          - foi aí que percebi, aquilo que estava na sacola não me pertencia, quer dizer, não me pertencia tudo o que estava na sacola. Parte fiz por merecer, isso é claro, mas parte deve ser dado a quem de direito, a quem me protegeu naquele momento, direta ou indiretamente. Dividi ao meio o que havia na sacola e doei metade pra uma associação de uma comadre minha, muito justo, ela ajuda com o que pode as pessoas que têm necessidade.
          A menina, lá no meio da plateia, de repente se despertou para algo. Foi ele, foi ele, agora tinha a certeza, reconheceu a voz finalmente, que o rosto, coberto estava, a voz que a humilhou enquanto humilhado era também o seu frágil corpo. Foi ele, essa voz, mas como se atrever a falar? Justo ele que é o palestrante da noite, justo ele que tem a confiança dos doutores que nos protegem, que nos comandam. Só chorou, só restou chorar, em silêncio que ali não podia se manifestar diferente.
          - e assim é, meus amigos, nada que tenho conseguido, que venho conquistando é só meu, mesmo com todo o mérito que sei que tenho, mas seria egoísmo não reconhecer a ajuda que vem sei lá de onde. Na realidade sei de onde, tenho minhas crenças, cada vez mais forte. E por isso retribuo, com toda a minha fé e humildade. Pago meus dízimos regularmente, acho justo, sei que é por isso que sobrevivo, sei que é por isso que tenho tido sucesso, nem um tiro levei, nem uma acusação contra mim prosperou, nem uma noite na cadeia, sequer na delegacia. Sei reconhecer que abençoado sou. Iba áles, queridos!
          - iba áles – a resposta veio mais forte dessa vez, menos a menina que cobria sua boca tentando esconder seus choros e vergonha.