- iba áles a
todos!
- iba áles...
– o baixo tom da resposta até que surpreendeu alguns naquela pavilhão, mas
provavelmente menos do que terem visto quem seria o palestrante da noite. Na
chamada daquela sessão havia mistério quanto a quem falaria a todos, qual testemunho
ouviriam eles e assim que o dito cujo foi chamado e subiu ao palco trocas de
olhares surpresos percorreram silenciosamente o recinto. Mesmo sem entusiasmo,
mas obedientes como deveriam ser nesses novos tempos, ninguém foi visto de boca
fechada na resposta ao usual cumprimento.
- eu sei que
sou um abençoado – o jovem começou sua fala – desde quando criança sei disso. Desde
o dia em que fui salvo enquanto meus parças sucumbiram. Desde o dia em que
soube qual missão teria que cumprir.
O silêncio
persistia, nem pensamento ousava se manifestar, vai que ele é mesmo abençoado e
percebe o desconforto alheio. Melhor esperar, melhor guardar para si o que não
se deve compartilhar nesses tempos de tantas pseudo-verdades.
- conto, conto
como foi e vocês poderão julgar o que digo, poderão ver que tenho razão. Assim é,
assim deve ser, assim todos aceitarão.
- conto
sim... era menor, quatorze, treze, talvez doze anos, meus parceiros com meses a
mais ou a menos do que eu, três éramos naquele dia. Queríamos o que a vitrine
mostrava, o que lá reluzia, dinheiro não havia, centavo sequer, a noite naquela
rua é escura, o guarda dorme cedo, uma ação rápida, uma pequena carreira, o
buraco no terreno baldio quase na esquina de baixo, fácil fácil. Mas algo
errado, os outros dois não escapam, tiros, o buraco, eu com a sacola, os outros
dois não escapam, sangue, gritos, os outros dois não escapam...
Ele parou de
contar a história, abaixa os olhos, todos abaixam.
- eu sabia
que era abençoado, dos três só eu voltei a acordar, só eu voltei a dormir, só
eu pude aproveitar o que havia na sacola, no que tínhamos conseguido com tanto
esforço, com dedicação, mérito todo nosso. Foi aí que percebi que tinha sido
protegido, e se assim foi, foi porque havia algo especial em mim. Foi uma
revelação... iba áles!
- iba áles –
responderam sem convicção os ouvintes.
- não posso
deixar de confessar que aquilo mudou a minha vida, dias pensando, dias refletindo,
o que aquilo significava? O choro dos familiares de meus parças, o caixão que
por pouco não era branco, sonhos arrebentados, por que só a mim as balas não atingiram?
Eu olhava a sacola com tudo o que tínhamos conquistado naquele dia e pouco fazia
sentido a mim. Dias se passaram, vocês não têm noção do quanto isso mexeu
comigo. Semanas, um, quase dois meses...
Ele olhava
por cima de todos, parecia refletir só para si, deram-lhe um copo d’água e ele
prosseguiu.
- o fato de
ter sobrevivido é um sinal, sinal é de que alguém, em algum lugar, está velando
por mim, me protegendo, me guiando para o meu sucesso, pois sou dedicado no que
faço, planejo meus atos com cuidado, sou abençoado sim mas tenho mérito. Iba áles!
- iba áles!
- foi aí que
percebi, aquilo que estava na sacola não me pertencia, quer dizer, não me
pertencia tudo o que estava na sacola. Parte fiz por merecer, isso é claro, mas
parte deve ser dado a quem de direito, a quem me protegeu naquele momento,
direta ou indiretamente. Dividi ao meio o que havia na sacola e doei metade pra
uma associação de uma comadre minha, muito justo, ela ajuda com o que pode as
pessoas que têm necessidade.
A menina, lá
no meio da plateia, de repente se despertou para algo. Foi ele, foi ele, agora
tinha a certeza, reconheceu a voz finalmente, que o rosto, coberto estava, a
voz que a humilhou enquanto humilhado era também o seu frágil corpo. Foi ele, essa
voz, mas como se atrever a falar? Justo ele que é o palestrante da noite, justo
ele que tem a confiança dos doutores que nos protegem, que nos comandam. Só
chorou, só restou chorar, em silêncio que ali não podia se manifestar
diferente.
- e assim é,
meus amigos, nada que tenho conseguido, que venho conquistando é só meu, mesmo
com todo o mérito que sei que tenho, mas seria egoísmo não reconhecer a ajuda
que vem sei lá de onde. Na realidade sei de onde, tenho minhas crenças, cada vez
mais forte. E por isso retribuo, com toda a minha fé e humildade. Pago meus dízimos
regularmente, acho justo, sei que é por isso que sobrevivo, sei que é por isso
que tenho tido sucesso, nem um tiro levei, nem uma acusação contra mim prosperou,
nem uma noite na cadeia, sequer na delegacia. Sei reconhecer que abençoado sou.
Iba áles, queridos!
- iba áles –
a resposta veio mais forte dessa vez, menos a menina que cobria sua boca
tentando esconder seus choros e vergonha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário