quinta-feira, 2 de maio de 2019

iba áles, dez


          - iba áles a todos!
          - iba áles... – o baixo tom da resposta até que surpreendeu alguns naquela pavilhão, mas provavelmente menos do que terem visto quem seria o palestrante da noite. Na chamada daquela sessão havia mistério quanto a quem falaria a todos, qual testemunho ouviriam eles e assim que o dito cujo foi chamado e subiu ao palco trocas de olhares surpresos percorreram silenciosamente o recinto. Mesmo sem entusiasmo, mas obedientes como deveriam ser nesses novos tempos, ninguém foi visto de boca fechada na resposta ao usual cumprimento.
          - eu sei que sou um abençoado – o jovem começou sua fala – desde quando criança sei disso. Desde o dia em que fui salvo enquanto meus parças sucumbiram. Desde o dia em que soube qual missão teria que cumprir.
          O silêncio persistia, nem pensamento ousava se manifestar, vai que ele é mesmo abençoado e percebe o desconforto alheio. Melhor esperar, melhor guardar para si o que não se deve compartilhar nesses tempos de tantas pseudo-verdades.
          - conto, conto como foi e vocês poderão julgar o que digo, poderão ver que tenho razão. Assim é, assim deve ser, assim todos aceitarão.
          - conto sim... era menor, quatorze, treze, talvez doze anos, meus parceiros com meses a mais ou a menos do que eu, três éramos naquele dia. Queríamos o que a vitrine mostrava, o que lá reluzia, dinheiro não havia, centavo sequer, a noite naquela rua é escura, o guarda dorme cedo, uma ação rápida, uma pequena carreira, o buraco no terreno baldio quase na esquina de baixo, fácil fácil. Mas algo errado, os outros dois não escapam, tiros, o buraco, eu com a sacola, os outros dois não escapam, sangue, gritos, os outros dois não escapam...
          Ele parou de contar a história, abaixa os olhos, todos abaixam.
          - eu sabia que era abençoado, dos três só eu voltei a acordar, só eu voltei a dormir, só eu pude aproveitar o que havia na sacola, no que tínhamos conseguido com tanto esforço, com dedicação, mérito todo nosso. Foi aí que percebi que tinha sido protegido, e se assim foi, foi porque havia algo especial em mim. Foi uma revelação... iba áles!
          - iba áles – responderam sem convicção os ouvintes.
          - não posso deixar de confessar que aquilo mudou a minha vida, dias pensando, dias refletindo, o que aquilo significava? O choro dos familiares de meus parças, o caixão que por pouco não era branco, sonhos arrebentados, por que só a mim as balas não atingiram? Eu olhava a sacola com tudo o que tínhamos conquistado naquele dia e pouco fazia sentido a mim. Dias se passaram, vocês não têm noção do quanto isso mexeu comigo. Semanas, um, quase dois meses...
          Ele olhava por cima de todos, parecia refletir só para si, deram-lhe um copo d’água e ele prosseguiu.
          - o fato de ter sobrevivido é um sinal, sinal é de que alguém, em algum lugar, está velando por mim, me protegendo, me guiando para o meu sucesso, pois sou dedicado no que faço, planejo meus atos com cuidado, sou abençoado sim mas tenho mérito. Iba áles!
          - iba áles!
          - foi aí que percebi, aquilo que estava na sacola não me pertencia, quer dizer, não me pertencia tudo o que estava na sacola. Parte fiz por merecer, isso é claro, mas parte deve ser dado a quem de direito, a quem me protegeu naquele momento, direta ou indiretamente. Dividi ao meio o que havia na sacola e doei metade pra uma associação de uma comadre minha, muito justo, ela ajuda com o que pode as pessoas que têm necessidade.
          A menina, lá no meio da plateia, de repente se despertou para algo. Foi ele, foi ele, agora tinha a certeza, reconheceu a voz finalmente, que o rosto, coberto estava, a voz que a humilhou enquanto humilhado era também o seu frágil corpo. Foi ele, essa voz, mas como se atrever a falar? Justo ele que é o palestrante da noite, justo ele que tem a confiança dos doutores que nos protegem, que nos comandam. Só chorou, só restou chorar, em silêncio que ali não podia se manifestar diferente.
          - e assim é, meus amigos, nada que tenho conseguido, que venho conquistando é só meu, mesmo com todo o mérito que sei que tenho, mas seria egoísmo não reconhecer a ajuda que vem sei lá de onde. Na realidade sei de onde, tenho minhas crenças, cada vez mais forte. E por isso retribuo, com toda a minha fé e humildade. Pago meus dízimos regularmente, acho justo, sei que é por isso que sobrevivo, sei que é por isso que tenho tido sucesso, nem um tiro levei, nem uma acusação contra mim prosperou, nem uma noite na cadeia, sequer na delegacia. Sei reconhecer que abençoado sou. Iba áles, queridos!
          - iba áles – a resposta veio mais forte dessa vez, menos a menina que cobria sua boca tentando esconder seus choros e vergonha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário