Alguma nuvem por aí deve ter registrado todos os passos dele naquele dia, coordenadas exatas em horários precisos. Deve ter tais dados por conta do serviço de localização de seu smartphone, visto que ele não se desgruda dele. Ou não, em vista de tantos coletores de dados espalhados por todos os lugares. O fato é que a nuvem sabe tudo, deve saber até o peso exato do número dois matinal daquele dia. Sabe quantos passos ele deu ao longo do dia, quantos degraus subiu, que pensamentos teve, quem xingou, a quem sorriu, por quem sua pressão arterial sobe, que companhias evitou na hora do almoço.
Mas nada disso adiantou muito quando
ele foi preso. Mas isso foi mais tarde.
Ele ainda passaria horas à frente do
computador depois que voltou para casa, já meio da tarde. Férias a serem
programadas, visto que logo é janeiro, entrou em um site de compra de passagens.
A nuvem então alertou todos os seus parceiros e, simultânea e freneticamente,
apareceram e-mails, mensagens, zapzapeses e ligações oferecendo viagens,
hotéis, aluguéis de carros e passeios magníficos não só para o local que ele planejara
visitar mas também para todas as possíveis localizações do universo que possa
ser visitado por alguém com o seu perfil. Barganhas, descontos, milhagens. E
tudo isso vindo de um bocado de empresas, algumas que nunca tinha ouvido falar
antes, outras que apareceriam e desapareceriam na mesma velocidade, até empresas
tradicionais. Outras oferecendo os indefectíveis aplicativos, promoções não
faltariam neles.
Como há empresas e empreendedores nesse
nosso mundinho! É, ele é feito de intermediários.
Na dúvida de tantas opções que não
paravam de pipocar na tela de seu computador, no face, no twitter, no cantinho
da tela, pelo celular, resolveu então adiar suas decisões por alguns dias. Não
que o que foi oferecido por tantos e tantos mensageiros seja ruim, mas ele é
dos que perdem rapidamente o interesse diante de tanta pasteurização, de tantos
guias michelãs dizendo onde comer e o que e como e quando. O que visitar, o que
selfisizar, o que publicar no face para inveja de seus amigos. É, podemos dizer
assim, ele é um daqueles pobres coitados que preferem férias sem tanto planejamento
prévio, a surpresa ao virar a esquina, o restaurante improvisado, goste ou não
da comida, o caminho percorrido a pé, o metrô na hora do rush, a praça cheia da
cor local no final de semana, que a vida é assim, aprendeu ao longo dos anos,
incoerente e surpreendente.
Mas sorria, ignóbil, seu perfil está
sendo preparado para melhor guiar seus passos.
Tentou relaxar fazendo algo que vez ou
outra ele faz: busca o seu livro na internet, o livro que escreveu há tanto
tempo e que encalhou. Prazeres, o livro ainda está disponível na livraria, na
compra virtual, em alguns sebos encontra até algum exemplar assinado (deve ser um
dos inúmeros livros que enviou para divulgação e que foi vendido junto a outros tantos quilos de papel pelo
destinatário). Prazeres, isso sim, bastou procurar o livro em um site e logo
todos os outros apresentam ofertas dele, aparecem no meio da rolagem do face,
no cantinho da tela, em mensagens do celular. Sabe que só ele estará vendo o seu
livro em tanto destaque, mas, qual-o-quê, prazeres, prazeres não se descartam.
Mais
tarde, seria preso. Mais tarde, porém...[[ continua na próxima semana...]]
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