quinta-feira, 24 de outubro de 2019

ainda em construção, dois


          Saiu de casa, ainda garoava, mas como o aplicativo de tempo indicava um brilhante sol nem se preocupou pois certamente poderia dispensar o guarda-chuva e sua roupa úmida indicará apenas uma sensação relativa, nada relacionado à realidade garantida pelo aplicativo. Sensação térmica, sensação de umidade, sensação de infelicidade. Aproveitou para checar quantos passos tinha dado no dia anterior e recebeu de seu celular uma bronca por não ter se esforçado tanto nos últimos dias. Respondeu com um palavrão, ao que o Siri disse que não comentaria sua fala.
          Riu da gentileza da tal inteligência artificial.
          Chamou um uber, recusado, outro, outra recusa. O terceiro veio, mas demorou, talvez se atrase ao seu compromisso.
          Já dentro do carro ele recebeu o primeiro dos inúmeros telefonemas do dia que não se completam, que só irritam e quando se completam, irritam mais ainda. Algum sistema em alguma nuvem (cinzenta, claro) tem registrado que, já que ele comprou um apartamento um dia, então está disponível a todos, literalmente todos, os corretores de imóveis do país para escutar suas ofertas e, talvez, comprar imóveis à batelada. Impossível sair de uma lista de corretores quando se entra nela. Tampouco ele conseguiu se livrar das ligações não rastreáveis da BIBO, da Olá e da Obscura...
          Não deixe de sorrir, sua conexão é muito importante para nós.
          O uber o deixou frente à concessionária de automóveis, as notas dadas mutuamente por ele e pelo motorista indicam que não houve empatia entre os dois. O que aconteceu realmente naquele curto trajeto o frio sistema de notas não indica nem indicará. Só que ele continuará com suas dificuldades para chamar ubers. É preciso melhorar suas pontuações, mais algo a se preocupar no dia a dia.
          Para retirar o carro recém comprado, o vendedor quis que ele preenchesse um formulário. Número de filhos, se tinha casa própria, quantos aspiradores de pó, televisores, carros, renda familiar. Frente ao papel contendo essas perguntas, recusou-se a responder. Pagara o carro a vista, por que necessitavam desses dados? O vendedor não entendeu a recusa, nunca entendem, nunca entendem porque recusar passar informações aos donos das concessionárias, por que a recusa em dizer o limite do cartão de crédito ou quantos cachorros você tem em casa, ou quantas viagens você faz por ano, se há parentes mais ricos na sua família e quantos e como contactá-los... São só questões... são só exposições de intimidade... são só dados que já são públicos... nunca entendem a sua recusa.
          O seu perfil está ainda em constante construção.
          Dois minutos depois de deixar o seu número celular com o vendedor da concessionária, uma mensagem dizendo que, por conta da compra do carro, ele tinha ganho a possibilidade de fazer uma viagem a Disney com desconto. Serve Paris? Serve Amsterdam? Serve Bacurau?
          O carro, aprende ele com o gentil e entusiasmado atendente, apita, em vários tons e intensidades, por todos os possíveis lugares e mais variados motivos, é para te disciplinar a fazer tudo conforme o manual estabelecido por alguém que não conhece e nunca conhecerá. Posso desligar esse apito? ele pergunta. Não, é de fábrica, é para o seu bem-estar, é para a sua segurança... Mas o carro vem sem protetor de carter, essencial comprar um, diz o vendedor. Mas o carro vem sem essa proteção de pintura, sem proteção lateral, sem tapetinho, todos essenciais, esse líquido ajuda a preservar os bancos, quer pagar mais uma fortuna por ele? Parece tão essencial que já te ofereceram três vezes, inclusive por e-mail. Ele passa quase uma hora dizendo não, dizendo não, tentando ser simpático. Mas os apitos disciplinadores, vem todos.
          Ah, vem sem gasolina também... melhor parar nesse posto da esquina do primo do dono da concessionária, melhor parar pois talvez não consiga rodar mais do que isso... Mas vem com um baita laço vermelho na capota, isso sim, acompanhado de um formulário de satisfação...
          Sincronizou o waze no computador de bordo, o mesmo que recomendou uma série de rádios para ele ouvir. Nenhuma de seu gosto, aliás. Reprogramou. De onde vem essa gente que programa o carro?
          Abastecido, o carro pode agora rodar a longa volta que ele escolheu para se acostumar com o novo veículo. Como rodava devagar, muito devagar, aproveitando seu dia e pensando, o waze foi alimentado com sua baixa velocidade e indicou aos outros motoristas um possível tráfego lento por certas vias levando mais e mais pessoas a evitarem esse caminho até que só sobrou ele wazendo na via e retroalimentando o suposto congestionamento. Olhava pela janela e nenhum carro, só o seu vagaroso andar, mas o waze avermelhava sua via. A moça de doce voz refazia e refazia os caminhos que ele insistia em não cumprir. Qualquer hora até ela perde a paciência.

[[ continua na próxima semana...]]




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