Saiu de casa, ainda garoava, mas como
o aplicativo de tempo indicava um brilhante sol nem se preocupou pois certamente
poderia dispensar o guarda-chuva e sua roupa úmida indicará apenas uma sensação
relativa, nada relacionado à realidade garantida pelo aplicativo. Sensação
térmica, sensação de umidade, sensação de infelicidade. Aproveitou para checar
quantos passos tinha dado no dia anterior e recebeu de seu celular uma bronca
por não ter se esforçado tanto nos últimos dias. Respondeu com um palavrão, ao que
o Siri disse que não comentaria sua fala.
Riu da gentileza da tal inteligência
artificial.
Chamou um uber, recusado, outro, outra
recusa. O terceiro veio, mas demorou, talvez se atrase ao seu compromisso.
Já dentro do carro ele recebeu o
primeiro dos inúmeros telefonemas do dia que não se completam, que só irritam e quando se completam, irritam mais ainda. Algum sistema em
alguma nuvem (cinzenta, claro) tem registrado que, já que ele comprou um apartamento
um dia, então está disponível a todos, literalmente todos, os corretores de
imóveis do país para escutar suas ofertas e, talvez, comprar imóveis à batelada.
Impossível sair de uma lista de corretores quando se entra nela. Tampouco ele conseguiu se livrar das ligações não rastreáveis da BIBO, da Olá e da Obscura...
Não deixe de sorrir, sua conexão é
muito importante para nós.
O uber o deixou frente à
concessionária de automóveis, as notas dadas mutuamente por ele e pelo motorista
indicam que não houve empatia entre os dois. O que aconteceu realmente naquele
curto trajeto o frio sistema de notas não indica nem indicará. Só que ele
continuará com suas dificuldades para chamar ubers. É preciso melhorar suas
pontuações, mais algo a se preocupar no dia a dia.
Para retirar o carro recém comprado, o
vendedor quis que ele preenchesse um formulário. Número de filhos, se tinha
casa própria, quantos aspiradores de pó, televisores, carros, renda familiar.
Frente ao papel contendo essas perguntas, recusou-se a responder. Pagara o carro a vista, por
que necessitavam desses dados? O vendedor não entendeu a recusa, nunca entendem,
nunca entendem porque recusar passar informações aos donos das concessionárias,
por que a recusa em dizer o limite do cartão de crédito ou quantos cachorros você
tem em casa, ou quantas viagens você faz por ano, se há parentes mais ricos na
sua família e quantos e como contactá-los... São só questões... são só exposições
de intimidade... são só dados que já são públicos... nunca entendem a sua recusa.
O seu perfil está ainda em constante construção.
O seu perfil está ainda em constante construção.
Dois minutos depois de deixar o seu número
celular com o vendedor da concessionária, uma mensagem dizendo que, por conta da
compra do carro, ele tinha ganho a possibilidade de fazer uma viagem a Disney
com desconto. Serve Paris? Serve Amsterdam? Serve Bacurau?
O carro, aprende ele com o gentil e entusiasmado atendente, apita, em vários
tons e intensidades, por todos os possíveis lugares e mais variados motivos, é para
te disciplinar a fazer tudo conforme o manual estabelecido por alguém que não
conhece e nunca conhecerá. Posso desligar esse apito? ele pergunta. Não, é de
fábrica, é para o seu bem-estar, é para a sua segurança... Mas o carro vem sem
protetor de carter, essencial comprar um, diz o vendedor. Mas o carro vem sem
essa proteção de pintura, sem proteção lateral, sem tapetinho, todos
essenciais, esse líquido ajuda a preservar os bancos, quer pagar mais uma
fortuna por ele? Parece tão essencial que já te ofereceram três vezes,
inclusive por e-mail. Ele passa quase uma hora dizendo não, dizendo não,
tentando ser simpático. Mas os apitos disciplinadores, vem todos.
Ah, vem sem gasolina também... melhor parar
nesse posto da esquina do primo do dono da concessionária, melhor parar pois
talvez não consiga rodar mais do que isso... Mas vem com um baita laço vermelho
na capota, isso sim, acompanhado de um formulário de satisfação...
Sincronizou o waze no computador de bordo,
o mesmo que recomendou uma série de rádios para ele ouvir. Nenhuma de seu gosto,
aliás. Reprogramou. De onde vem essa gente que programa o carro?
Abastecido, o carro pode agora rodar a longa
volta que ele escolheu para se acostumar com o novo veículo. Como rodava
devagar, muito devagar, aproveitando seu dia e pensando, o waze foi alimentado com
sua baixa velocidade e indicou aos outros motoristas um possível tráfego lento
por certas vias levando mais e mais pessoas a evitarem esse caminho até que só
sobrou ele wazendo na via e retroalimentando o suposto congestionamento. Olhava
pela janela e nenhum carro, só o seu vagaroso andar, mas o waze avermelhava sua
via. A moça de doce voz refazia e refazia os caminhos que ele insistia em não
cumprir. Qualquer hora até ela perde a paciência.
[[ continua na próxima semana...]]
[[ E não é que o meu livro "outros tantos" ganhou um book trailer? Quem quiser assistir, basta clicar AQUI. E quem quiser comprá-lo tem essas opções: (i) site da Editora PENALUX; (ii) Livraria da Vila; (iii) Lojas Americanas; (iv) diretamente com o autor (com direito a um outro livro do autor) no e-mail: flavioucoelho at gmail.com ]]
Nenhum comentário:
Postar um comentário