quinta-feira, 7 de novembro de 2019

ainda em construção, quatro


Ele leu uma vez, parecia até futuro. A imagem de um rosto humano padrão (seja lá o que for isso) foi dividido em 867 pequenos pedaços e, distribuídos em respectivos 867 grupos de pesquisa e análise ao redor do mundo, para que cada um desenvolvesse um software de reconhecimento facial da parte enviada. Claro que, depois disso o grupo-mãe, americano, juntou todos esses softwares para se poder fazer o reconhecimento facial total. Ao menos o do tal rosto humano padrão.
          E agora o software estava em pleno funcionamento, graças aos empreendedores que fazem nossa vida cada vez melhor.
          Nisso ele pensava quando foi preso. Algo nesse processo dera obviamente errado, mas não saberia dizer se fora aquele específico grupo que cuidou da região em que ele tem um pequeno corte facial desde a longínqua infância. Não reconhecem, ninguém reconhece, mas aparentemente o pesquisador-chefe daquele grupo era um irresponsável, um sujeito sem ética e sem caráter, mas com o ego lá em cima (ou alguém duvida?). Parece que, ninguém irá dizer isso claramente, o que dirão é que computação não é uma ciência exata, é que... parece que esse grupo específico fez um trabalho que, gentilmente, poderíamos chamar de merda e que levou a falhas de reconhecimento dos rostos que tenham se afastado do padrão facial estabelecido pelas normas técnicas exaustivamente discutidas e aprovadas pelo Congresso norte-americano. Que tenham se afastado, ao menos, naquele pequeno espaço (dentre os 867 em que foram divididos o rosto padrão) que a esse grupo específico de pesquisa competia analisar.
          Claro também será que o pesquisador-mãe nunca será responsabilizado por algum erro no produto apresentado, quem ousaria contestá-lo? Justo ele que é o responsável pela distribuição do dinheiro, justo ele que analisa quem merece as bolsas ou quem entrará como co-autor nos inúmeros (ao menos 867) artigos que serão produzidos, justo ele que tem prêmios e é homenageado dia sim, outro também, quem ousaria responsabilizá-lo pelo que fosse? Claro que tais pessoas não são culpadas. São sim, as obsoletas criaturas que insistem em oferecer suas caras (com cicatrizes fora do padrão facial) a tapa, sem trocadilhos, por favor.
          Nada será dito nunca, é preciso preservar o deus-tecnologia, mas falhas ocorrerão e pessoas sofrerão consequências, mas essas serão baixas aceitáveis, sim bastante aceitáveis.
          Mas ele tinha sim uma pequena cicatriz que fugia ao padrão facial estabelecido no Vale do Silício e, azar, justamente naquela região designada ao grupo incompetente, melhor dizer inexperiente.
          Desculpe nossa falha, o software ainda está em construção...
          Tinha ido dar uma volta pelo bairro e, na volta, ao tentar entrar no prédio em que vivia há quinze anos, foi barrado pelo porteiro velho conhecido dele e com quem dividia, vez ou outra, uma mesa no bar da esquina tocando seus cavaquinhos preferidos.
          - Mas, João, por que não posso entrar? - ele ainda perguntou pelo interfone, do lado de fora do portão.
          - Seu Armando, é que o novo sistema de reconhecimento facial não está permitindo.
          - Novo sistema?
          - É, lembra que foi aprovado na última reunião? O senhor até votou a favor...
          - Votei, segurança em primeiro lugar. Mas abre o portão para eu entrar.
          - Não posso, Seu Armando, o sistema não reconheceu a sua face...
          - Mas você me conhece, João, moro aqui há tanto tempo
          - Verdade...
          - Então, abre aí...
          - Não posso, enquanto o sistema não me autorizar, eu tenho ordens de não abrir o portão.
          - Então vou dar um passo para trás, fingir que fui embora e volto a aparecer pra câmera. Seguro que ela irá me reconhecer.
          - Faz isso sim, Seu Armando!
          Ele ainda fez mais do que dar um passo para trás, foi até a esquina, respirou o ar friozinho da noite que chegava e voltou. Tentou abrir o portão e nada...
          - Pô, João, para de brincadeira, sou eu o Armando! - ele ainda insistiu no interfone.
          - Eu sei, Seu Armando, eu sei... mas não posso abrir, o sistema ainda não reconheceu o seu rosto.
          - Vou sorrir diferente e vejamos se agora ele reconhece. Um sorriso irônico, talvez... um sorriso arrogante, desses o sistema deve gostar, ou talvez um sorriso sensual...
          - Que é isso, Seu Armando, não me deixe mal... faz um sorriso normal.
          Mas nada, nada do sistema reconhecer a face do Armando. Nessa hora, ele vê chegando ao edifício um carro de polícia, mal sabia ele que era para prendê-lo. E só soube naquele instante que era um perigoso assaltante e que tinha cometido três crimes nas últimas quatro horas.
          Ao menos, era o que dizia o sistema de reconhecimento facial...

[[ continua na próxima semana...]]




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