Em tempos tão tecnológicos e
virtualmente excitantes deveria surpreender a violência dos braços, a
arrogância das palavras de ordem, a pressão das algemas, os socos no estômago e
os tapas na cara. Mas, qual-o-quê, nada disso assusta nesses nossos tempos
estranhos. Ao contrário, há até torcida uniformizada (com camisetas emprestadas
de times nacionais) urrando por mais e mais violência.
Ele foi preso bem em frente de seu prédio com todo o escândalo usual
dessas horas. Com direito a celulares filmando as ações, com direito a selfies
sorridentes que posteriormente serão postados nos faces da moda. Com direito
até a matéria no jornal da noite. Só não teve direito a respeito ou justiça.
Nada adiantou ele dizer que era
inocente, pois quem acreditaria que o sistema de reconhecimento facial teria
falhado? Certamente não os fardados que foram acionados de forma automática
pelo sistema instalado no prédio em que ele morava e que indicou uma tentativa agressiva de invasão domiciliar, ainda bem que frustada pela agilidade do porteiro que a
impediu de forma enérgica (ou ao menos assim constaria no relatório policial).
Ele até teria a possibilidade, teórica
por assim dizer, de se defender das acusações, mas qual delegado, qual juiz, quais juízes de segunda, terceira ou mesmo supremas instâncias, iria(m) contra um
relatório produzido automaticamente pela inteligência artificial que geria o
sistema de reconhecimento facial? Mais fácil aceitar que a tecnologia não erra
e tocar a vida, ainda mais que ele não tinha parentes no sistema judicial, ou
em outra elite qualquer, a quem recorrer.
Se o relatório aponta que ele esteve
em três assaltos, quem poderia contestá-lo? Seguramente não o próprio ele que
garantia que, à hora dos assaltos, estava ele na concessionária retirando seu
novo carro, ou rodando com ele ou mesmo a bordo do computador planejando sua
próxima viagem. Tudo devidamente registrado por outros sistemas visuais ou de
localização e armazenados em nuvens.
A bem da verdade, teve até uma
instância de julgamento onde essas questões foram levadas a sério e até um
levantamento foi feito com câmeras de ruas que comprovavam a veracidade da
narrativa do pobre coitado do réu que, até hoje, se arrepende de ter saído de
casa naquele momento em que alguma pane levou o sistema recém instalado de seu
prédio a não reconhecê-lo mais como morador que era.
Mas, voltando, a justiça, naquela
instância já intermediária, reconhecer que ele teria razão traria consequências
claramente desagradáveis. Por um lado, indicaria que houve algum erro nas
investigações/julgamentos preliminares e isso é inaceitável em se tratando de
um réu sem padrinhos. Coorporativismo iba áles, esse é o lema. Por outro, soube-se ao longo do
processo, o dono da franquia do sistema de reconhecimento facial no Brasil era
primo de uma importante figura da república e seguramente algum interesse
financeiro deveria haver em garantir a idoneidade do sistema.
O pobre do coitado do réu, sem padrinhos
e mero cidadão de escalão inferior, foi finalmente condenado e até com uma
certa inusual agilidade. Dizem que a rapidez em que o processo foi julgado
trouxe um aumento das cotações da tal franquia, mas isso, imputam os
especialistas, nada teria a ver com as calças.
Ele cumpriria sua pena enquanto o seu
perfil seguia sendo aperfeiçoado, mesmo ainda em construção. Sairia da prisão
com dificuldades em retomar sua vida, mas isso, dirá a justiça, foi totalmente
sua culpa.
Mas a tecnologia, a tecnologia seguiria
iba áles.
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