quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Estética


          Primeiro a gente vai assistir a um daqueles filmes. Um clássico do cinema iraniano, por exemplo, onde nada acontece a não ser a interminável imagem imóvel em preto e branco. Amigos insones e aparentemente desinteressados carregando bolsas de pano contendo manifestos amarelados que nunca leram ou entenderam nos acompanham nessa empreitada.
          Às vezes, ao invés, procurávamos uma daquelas peças alternativas dirigidas pelo velho magro de olhar arrogante e cabelos grandes e cinzentos, consistindo de, também intermináveis, cenas orgiásticas e interações ininteligíveis com o público que só está lá para, singelamente, pagar o mico. O gordinho aqui é um dos alvos prediletos, junto com o pescoçudo de olhar inteligente e cabelo desgrelhado da quinta fileira.
          Daí, vamos ao nosso restaurante vegan predileto... Sempre achei que comer aquelas comidas se constituía em um ato de contrição, pura auto punição. E pecados deve haver aos montes, assim aprendi na catequese e assim constato depois da intragável n-ésima garfada.
          Por vezes, uma cerveja de trigo integral no barzinho da esquina antes de voltar para casa na companhia de casais amigos, onde repetiremos até a exaustão nossas discussões de variadas filosofias. Alternativamente, nossa vida social terminaria em um sarau de poesia alternativa ou em uma daquelas performances urbanas cuja principal diversão era simplesmente teorizar o arbitrário de nossa vida tacanha.
          Por fim, fazemos nosso amor apressado, silencioso e de pernas fechadas no sofá de seu apartamento. Mas gozávamos satisfeitos sempre, sempre foi bom assim e nem pensamos em mudar.
          Boa noite, querida, amanhã é domingo e dia de andar de bicicleta na recém inaugurada ciclovia...


[[Esse conto apareceu em meu livro Conto&Vinténs publicado pela Editora A Girafa em 2012.]]

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Bognerstrasse, II

[[a seguir, a parte final do conto Bognerstrasse (publicado inicialmente no livro Gambiarra e outros paliativos emocionais, Editora Arte PauBrasil, 2007).]]

          Resolveu ir a pé para casa.  Não era perto e era tarde da noite mas foi assim mesmo.   Os barulhos da noite o assustam mas mais ainda o que acontecia.  Não pôde dormir: o que estava acontecendo?  Para ela, era continuação, e para ele, novidade.

          Voltou lá nos dias seguintes e a cada dia foi aprendendo coisas novas com ela, e era cada vez mais difícil sair de lá, frio que estivesse, madrugada que fosse.  Lá que agora era a sua vida, não em outro lugar, lá que era a sua estória.  E que também não era, não sabia nada dela, por muitas vezes ficou à espreita para vê-la chegar, sair, aonde trabalha?  Uma vez, seguiu-a, procurou-a em outros lugares, procurava-a em algum lugar de seu passado, de seu quotidiano, deveria ter algo dela em algum lugar lá.   Aos poucos, foi vivendo uma outra estória, foi aceitando-a com tranquilidade e muita felicidade.

          A cada dia que a encontrava lá, pedia instruções de como lá voltar, de como fazer amor do jeito que ela gostava, do que ela gostava, de tudo o mais, tudo conforme aquele jogo gostoso que a eles tanto agradavam, era tudo novidade, mesmo quando não fosse, repetiram-se várias vezes seus momentos juntos, a exaustão não existia.  Foi lá que voltou a sentir tantos sentimentos, e com essa sua nova rotina de ir lá, de esperar ser chamado na marquise da loja, de subir em silêncio a escada, daqueles poucos e infinitos momentos, foi sentindo que sim era lá a sua estória, e se desligando pouco a pouco do que ainda possuía fora daquele quarto, longe daquela janela, longe da misteriosa velha que requeria silêncio...

          Era como se fosse uma vida paralela que já existia e que só agora ele participava efetivamente.  Onde estivemos todo este tempo? ele quis saber um dia.

- Estivemos sempre aqui, que pergunta sem nexo.

          - Não foi isto que eu quis dizer.
         
Ficaram um instante em silêncio.  Suas mãos procuraram pela pêra, a que se esquece sonhando em uma fruteira.  Após comê-la tranquilamente, cortando-a fatia a fatia, ela estava agora pensativa ao seu lado fingindo se concentrar em sua taça de café, ele voltou a falar:

- Você nunca sentiu vontade de romper com tudo e começar uma vida nova?
         
- Você não está feliz aqui comigo? - ela perguntou, primeira vez a sério.

- Não é isto.  Nunca fui tão feliz – sorriu para ela, fez aquela cara de por favor não me interprete mal, abraçou-a por trás, beijou-lhe a nuca, seguiu - perguntava em teoria.  Ter outra vida, com alguém que se ama, outra vida mas com a mesma pessoa, outras... - parou de falar de repente, na realidade não estava sabendo se expressar.
         
- Não te entendo.
         
- Também não sei.  Penso muito numa estória que ouvi recentemente.  Um dia durante o regime militar, um cara desapareceu.  Como ele esteve trabalhando em um sindicato, acharam que ele era um dos tantos desaparecidos.  A família dele o procurou por muito tempo mas, ao final, todos  se resignaram.  Receberam uma indenização do Estado não faz muito tempo, uma destas indenizações para as famílias de desaparecidos.
         
Ela ficou em silêncio, mal sabia ele que isto a incomodava muito. Deveria saber, tanto tempo juntos, aonde ele queria chegar com aquela conversa, ela se perguntava tentando esconder a tristeza e a incerteza que agora cresciam dentro de si.  Mas ele não percebia o seu desconforto.

          - Recentemente, a imprensa o descobriu.  Está vivo, tem família em outra cidade, outra vida, outra estória.  Ele simplesmente resolveu desaparecer, mudar totalmente de vida, cortar os vínculos.  Outra estória, uma quebra total...
         
Ficaram um tempo em silêncio, ele não sabia o quanto essa estória a machucava e ela não entendendo bem o que se passava. Aos poucos, ele foi percebendo que fora longe demais, esse é o perigo de não se conhecer totalmente com quem se vive.  Por fim, ela disse:
         
- Eu não seria capaz disso não. Gosto muito de meus vínculos - disse acariciando-o e recebendo um sorriso de passagem como retorno. Mas ele estava confuso ainda, e insistiu.
         
- Mas você acha isso possível, se quebrar todos os vínculos com a própria estória e começar outra? – ele ainda não tinha percebido o terreno que estava entrando.
         
- Não sei...
         
- Esse não conseguiu.
         
- Se a imprensa não o tivesse descoberto.
         
- Fico pensando nessa estória, a única que merece ser contada...
         
- A hora e a vez de Augusto Matraga.
         
- Como?
         
- A hora e...
         
- É! Quer dizer, é diferente, sei lá...  lá houve uma mudança, não uma quebra, a estória é uma só com dois momentos.
         
Por um longo tempo ficaram quietos, cada um com seus segredos, seus medos, suas vontades, suas estórias, suas incertezas. Por fim, ele olhou para ela e sorriu e perceberam que agora estavam de volta àquele quarto. Refizeram o amor, era o que restava depois desta conversa.  Um amor estranho, pela primeira vez silencioso demais.  E dessa vez, primeira vez, ela não teve que explicar-lhe como se veriam de novo, ele já tinha aprendido, e nem ele perguntou se poderia ficar, o frio, a madrugada já avançada.  No caminho para casa, era cada vez mais longe, ele se distraiu e se perdeu, demorou um tempinho para achar o caminho da casa em que morara nos últimos dez anos, mais do que dez anos, ou quase isto, pensou tentando encontrar a rua exata.


No dia seguinte, telefonou a ela diretamente em seu lugar de trabalho, nunca fizera isto e ela estranhou e ele se desculpou e ela sorriu, gostava de sua imprevisibilidade, e resolveram almoçar juntos, ela poderia escapar um pouquinho que fosse de seu trabalho, ele poderia se encontrar com ela, estava meio que de folga naqueles dias.  Ela propôs o pequeno restaurante onde eles se conheceram e onde foram inúmeras vezes, foi lá que recebeu seu primeiro beijo, passou-lhe rapidamente pela cabeça.  Na velha mesa de sempre? ele perguntou jocosamente, ela respondeu que sim contente por ele se lembrar.  Antes de sair de casa, ele ainda procurou no guia o tal restaurante, mal se lembrava o nome, maldizendo profundamente a sua falta de memória.  Ainda bem que ela gosta...

          Após um par de semanas, ela teve que viajar e ele, depois de alguns dias, foi se encontrar com ela quando o trabalho dela já tinha terminado e eles podiam aproveitar para passear um pouco naquela cidade distante.  Ela insistiu que reservassem quartos separados no hotel, dormiram juntos todos os dias é certo, ele mal entrou em seu quarto (só ia para lá, de manhãzinha, trocar de roupa e desarrumar a sua cama para a arrumadeira ter algum serviço, era preciso lutar contra o desemprego, justificava-se sorrindo de tudo aquilo...) e, ao final, pagariam as suas diárias em dinheiro.

          Em um desses dias da viagem, ela lembrou-lhe no meio de um passeio que precisava ligar para casa e, dito isto, afastou-se um pouco.  De longe, ele a via junto ao telefone, olhar baixo, conversando, rindo e ele, já a uma distância que não o permitia ouvi-la, resolveu se distanciar ainda mais, preferia nem vê-la, por não entender o que acontecia, tudo isto fora surpresa a ele.  Enquanto ela telefonava, ele foi abordado por um velhinho que o especulou, parecia desconfiar que alguém estivesse visitando aquela parte da cidade que nunca atraía turistas, ele próprio não sabia muito bem o que estavam fazendo ali, para ele era apenas a companhia dela que importava.  Quando ela tinha se afastado para telefonar, o fez como se pedisse desculpas, ele fizera uma cara estranha naquele instante é certo e ela não pôde evitar de perceber, não era de censura, era de surpresa.  Não mencionaram nada pelo resto do dia, porém a conversa entre eles demorou a engrenar novamente.  De noite, depois do jantar, ele se desculpou convincentemente e foi ao seu quarto no hotel e lá ficou um tempo, deitado, olhando o teto.  Teria muitas coisas a pensar, e poderia fazê-las todas naquele seu silêncio, mas não o fez, apenas fechou os olhos e deixou tudo vagar por sua mente, preferia que seu pensamento fluísse sem a tola necessidade de se chegar a conclusões doloridas e desnecessárias, pensamentos que iam e vinham.  Meia hora depois, estava no quarto dela, já a acariciar aquele corpo branco, beijando seus seios, seus cabelos negros, falando do que sempre se falavam nestes momentos, a repetição das lembranças aprofundando os vínculos...

          Mas já era outra estória agora, eles se viam menos, não com menos paixão é certo, e ele foi se acostumando com aquelas presenças extras em suas vidas, as pessoas que repentinamente começaram a fazer parte de seus pensamentos, evitando falar diretamente nisto.  Por vezes, ela falava e contava novidades e se aprofundava nelas e ele escutava com bastante atenção e interesse, era ela que importava, em seu todo, com todas as suas estórias.  Mas ele propriamente evitava perguntar qualquer coisa, seria como se estivesse se metendo em outra estória, que não era a dele, a deles.  É! de certa forma parecia a ele que eles dois apenas existiam quando podiam se ver e se tocar e se amar, já não era o que fora, não que fosse ruim, era diferente apenas.  Em outros momentos, não existia, nem ela, nem a marquise, nem a escada e muito menos a velha e ele foi se acostumando com aquela estranha reviravolta em sua vida.

          Um dia, ele ficou esperando pelo sinal debaixo daquela marquise, um chuvisco chato o incomodando, por mais tempo do que estava acostumado.  Ela demorava a aparecer, demorava, demorava, não apareceu e ele se foi, parecia até que o apartamento estava deserto, escuro, janelas fechadas, parecia que ninguém vivia lá.  Sem muita convicção, voltou outros dias e sempre ficou esperando e nada aconteceu, um dia até teve esperanças de vê-la quando a luz do quarto se acendeu mas ele ficou esperando que ela, alguém que fosse, aparecesse na janela para dar o sinal que o permitiria reviver aquela estória, aquele sorriso de passagem.  Depois de meia hora, a luz se apagou e ele desistiu afinal. Voltou para casa a pé, tentou dormir mas qual-o-quê, a lua iluminava o seu quarto sem cortina e ele insoniou a noite toda.

          Um dia, por fim, muitas esperas depois, viu-se indo em direção à entrada da casa, a porta já estava aberta, um vulto já se distanciava em direção à escada... atrasou-se consideravelmente na subida da escada, ela ia muito à frente, parecia interminável e ela mais e mais adiante.  Tac tac tac... subia a escada e se distanciava dela mais e mais, parecia nunca acabar, nunca alcançar...

Chegou afinal ao quarto, a porta estava entreaberta, ouviu o seu ruído lá dentro, uns passos muito distantes, como se o quarto fosse quilométrico.  Ao entrar, pareceu vê-la no outro extremo do quarto mas depois que acostumou sua vista percebeu que era só uma sombra, a sombra de algo que entrava pela janela.  Foi avançando pelo quarto e não a via, tropeçou na cama, alguém a havia mexido, estava fora do lugar usual.  O vento fez a porta bater e ouviu passos no corredor...

          Foi até a janela, não tinha se acostumado com aquele quarto, não sabia onde se ligava a luz, o silêncio o incomodava e ele buscava um lugar que o tranquilizasse.  A janela ainda estava entreaberta, e ele espreitou por seu vão.  Ainda chuviscava e seus olhos buscaram naturalmente a marquise, o vão à frente da vitrine que ele tão bem conhecia, ainda chuviscava fino e no vão uma pessoa esperava ansiosamente e olhava justamente para a janela na qual ele estava agora, mas não percebia a sua presença lá.  Ficou imóvel, não podia acreditar no que via, em quem via ali debaixo da marquise, esperando o sinal, aquele sinal que tanto ansiou por aqueles anos todos, a estória, a única, que merece ser contada.  Apesar da distância, pôde ver o olhar daquela pessoa que tanto conhecia, o olhar triste de quem espera um sinal...

         
...lembrou-me do riso que eu tinha...


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Em janeiro, estarei em Lisboa, para o lançamento de meu livro "outros tantos" (PENALUX):




Todos estão convidados!!! 

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Bognerstrasse I

Alguém sorriu de passagem...


          Em uma dessas tardes quaisquer de um desses dias quaisquer, sentado em uma dessas inúmeras praças quaisquer daquela cidade, sentindo-se um desses seres viventes quaisquer, ele pensou em como era bom estar assim tranquilo, em seu canto, vendo a vida passar, as pessoas passarem, o sol se pondo lentamente, pensando na única estória que vale a pena contar, a única que vale a pena escrever.  Sentindo-se de bem com a vida, de como era bom estar ali naquele canto que definiu como seu e saber que nada mais importava, e saber que, mesmo sozinho, estava bem acompanhado.

          A vida passa sim, e como! e no meio dessa passagem inútil e apressada, contamos muitas estórias e as vivemos todas elas e as relembramos várias vezes, por dias até, as contamos todas para todas aquelas pessoas que queremos bem e sim, sempre as queremos muito bem.  Todos os dias, sim, as noites todas, os momentos todos, as estórias todas, mesmo as que não merecem ser contadas, mesmo as que não são exatamente aquela que agora pensava com tanto gosto, a que merecia ser contada, aquela, a única.  Até o dia em que se está sentado em um parque, sentado no encosto do banco com os pés displicentemente pousados no assento, vendo a vida passar, vendo os passantes por cima, e ela passa por você e sorri de passagem e vocês sorriem um para o outro e ela segue sem você sem importar que era apenas um sorriso, quem se importaria em querer mais que um sorriso naquele final de tarde tranquilo, quem não se satisfaria com apenas um sorriso, belo sorriso daquela mulher a combinar com o sol que agora se põe (o sol na sombra se esquece).  Você feliz e contente da vida por causa desse sorriso, desse lento pôr de sol, de todas suas relembranças e estórias todas, e nem percebe que ela, que tinha te jogado um sorriso de passagem, com teus cabelos negros e jeito mediterrâneo, parou logo adiante e nem percebe que ela parece sim te esperar logo adiante, te espera sorrindo aquele sorriso de passagem (alguém sorriu de passagem em uma cidade estrangeira... cantarolou distraído), e só vai perceber isso séculos depois, uma eternidade que só não é maior porque a realidade insiste muitas vezes em ter uma contagem de tempo distinta da nossa.  Independentemente desses detalhes todos, que a ele pouco importavam naquele momento de final de tarde, frente ao belo pôr de sol e naquela praça cheia de crianças de bem com a vida, ela ainda te espera sorrindo aquele suave sorriso, parada, olhando-te à distância.  Como era bela assim parada, olhando em sua direção, até parece que te espera, ele finalmente pensa, bem cuidadosamente para não perturbar aquele momento, qualquer pensamento impertinente poderia destruir todo aquele cenário que construíra para si.

- O que aconteceu? ela pergunta. Vai ficar parado aí muito tempo?

E você ainda olha para os lados a confirmar que aquela jovem fala com você, te sorri amavelmente, te espera impacientemente.  A certeza de que ela está efetivamente falando com você, você só a terá quando fizer um sinal a ela, meio que surpreendido, perguntado se é com você mesmo que...

 - Deixa de palhaçada, vamos embora que estamos atrasados.

Definitivamente era com você que ela falava, não havia mais dúvida, o sorriso, de passagem que seja, era para você sim.  Mesmo assim, ganhar tempo era importante, do que ela estava falando afinal...

- Estamos? Atrasados para que? - Instintivamente, ele se levanta, o sol já se pôs, e a segue mesmo sem saber para onde, mesmo sem saber por que.  Ela nem o esperou chegar perto e retomou sua caminhada, passos largos e seguros, que ele teve que se apressar para alcançá-la.

- Atrasados sim! E você sempre se esquecendo da hora. Vamos logo.

O carinho com que ela disse isso a ele, sorrindo, e sim o beijo suave que acompanhou o suave sorriso, o fez se convencer a segui-la.  Não sabia por que a acompanhava, nem para onde mas o sorriso dela, a sua mão pegada à dela, o seu total descompromisso com a vida naquela tarde, a única estória que merece ser contada.  Até parecia que ele, hoje, era outra estória.

          E foram juntos, ela em um passo firme, segura de si, sempre falando, sempre carinhosa, e ele ainda confuso e calado, mas feliz, mais feliz.  Na entrada do metrô, ele lhe deu um beijo de leve no rosto, surpreendendo-a, como se fosse um beijo de despedida, como se cada um naquele momento fosse para o seu lado, algo singelo nascendo entre eles mas ainda não explícito (e quem quiser pode até imaginar a estação de metrô naquela famosa praça de Munique, frente àquele famoso relógio, agora mudo, não de noite, mas no meio da tarde, o sol ainda batendo, muita gente ao redor...).

          Chegaram ao que, para ele, era o apartamento dela, olhava tudo com disfarçada curiosidade, tentando se achar um pouco naquele lugar totalmente desconhecido.  Conversaram como bons amigos que eram, jantaram, fizeram amor.  Para ele, o amor primeiro, a primeira vez, a lenta descoberta do outro, o gozo prolongado, sincero; a ela não era a novidade, e sim a gentileza, que importava, os carinhos demorados, o toque leve, o arrepiar, e seguramente nenhum deles se decepcionou naquele dia, naquela noite. Como é bom o amor tranquilo, ele pensava nisto, olhar disperso em algum ponto do teto de gesso, sentindo o que todos sentimos depois do gozo, depois da troca cúmplice de olhares e carinhos suaves, pensava nisso e naquilo sem compromissos, no exato momento que ela lhe disse que já era hora de ir.  Pegou-o de surpresa, quer dizer que não poderei dormir aqui?

          - Já discutimos isto tantas vezes - ela murmurou, até meio triste - também não queria que você fosse assim, mas...
         
Já discutimos? ele pensou sem se lembrar de nada. Tentou o truque que sempre funcionava.
         
- Está frio, essa noite...
         
- Você bem sabe que eu o queria aqui, mas...
         
A sua tentativa de sedução, porém, não a convenceu e ele começou a se vestir, estava agora se sentindo inseguro ali, já era outro momento.  E ela se encolhia cada vez mais em seus lençóis, desviando o olhar, o olhar triste de quem fica, o que fica sempre sofre mais, o que se vai tem o caminho a percorrer, o que fica, fica com o silêncio.  Ele ousou olhá-la, ela tinha o jeito tranquilo, o olhar forte, parecia mais forte que ele, apesar da tristeza daquele momento, algum momento teria a oportunidade de dizer isto, e ela com certeza discordaria dessa sua opinião, apenas por cortesia.

          - Não faça muito barulho quando sair - ela disse quebrando o silêncio, precisava dizer algo para espantar a tristeza - senão a velha acorda.
         
- Claro, a velha... - ele não sabia muito o que dizer – deve estar dormindo agora, não é?  - brincou e com isso arrancou um sorriso de passagem, primeiro dela e correspondido por ele, voltara a sorrir, ainda encolhida nos lençóis, doía tanto ter que ir embora e deixar aquele sorriso para trás - Como nos vemos de novo? -  arriscou perguntar, se é que iremos nos ver de novo, arriscou pensar.
         
Ela pareceu surpresa mas sorriu, como poderia deixar de sorrir de sua pretensa ingenuidade, sim nos veríamos, pensou ela, você não escaparia tão fácil, disse baixinho, para o deleite de ambos... e ele bem sabia que deveria esperar na rua dos fundos até ela aparecer na janela, um sinal e ele iria para a frente da casa, esperar por ela para abrir a porta, subir em silêncio e no escuro, segui-la até o quarto e ... (e só agora que ele se tocou que também dessa vez, subiram em silêncio e no escuro, deve ser para não incomodar a velha, quem quer que ela seja...).  Mas ela não se incomodou em explicar-lhe como se fosse a primeira vez, e era a milésima, gostava de seu jeito inconsequente de ser.  Sorrindo, venceu o frio, levantou-se enrolada nos lençóis, o que o impedia de vê-la totalmente nua, levou-o até a janela e disse:
         
- Está vendo aquela loja?
         
Não, não a via, nem estava prestando atenção, como poderia? olhava sim para ela, sua pele macia e branca, seus cabelos negros e desarrumados, ela era tão especial, seu jeito seguro de ser.  Nem a escutava, sentia o seu cheiro, tentava imaginá-la de novo, ainda não havia explorado todos os detalhes de seu corpo, iria conseguir algum dia, pensava.  E ela sabia disto tudo, que ele a olhava e a desejava, mas mesmo assim continuou a explicação, milésima vez, feliz da vida e ele, primeira vez que escutava, tentava memorizar sem parecer que prestava atenção.
         
- Você fica ali, esperando, debaixo daquela marquise, está vendo? naquele escuro perto da vitrine.  Quando eu chegar, venho até a janela, dou um sinal e você vai para a frente da casa me esperar – deu um belo sorriso.

- Eu dou a volta e você abre a porta, é isso? - estava sorrindo, ambos aliás, como é bom o amor tranquilo!

          - É isso!- os seus olhos pediam para ele insistir em ficar.
         
- Sem barulho para não acordar a velha, não é? - os seus olhos também.

- Em total silêncio para não acordar a velha – repetiram em uníssono e os dois gargalharam admirados pelo estranho entrosamento.

          - É! É isso que eu gosto em você.  É sempre novidade, é sempre a primeira vez - sua mão acariciava agora o rosto dele, olhos profundos nos seus.
         
Ele sorriu e pensou: ainda bem que ela gosta.

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[[essa é a primeira parte de um conto chamado Bognerstrasse publicado no meu livro Gambiarra e outros paliativos emocionais, pela Arte PauBrasil, 2007. A parte final será publicada na próxima semana]]


Em janeiro, estarei em Lisboa, para o lançamento de meu livro "outros tantos" (PENALUX):




Todos estão convidados!!! 

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

outros tantos, um tantinho mais...


Lançamento do "outros tantos" em Lisboa agora em janeiro: 


Espero por vocês lá! 



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Um tantinho mais de "outros tantos":


outros tantos, PENALUX, 2019

“Leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consistência: são esses os grandes valores literários, aqueles que merecem ser preservados, definiu Italo Calvino, um dos maiores escritores italianos. Não a toa, cada um deles dá titulo às seções deste livro. Os contos de Flavio Ulhoa Coelho são um mergulho nessas virtudes. Começamos com a leveza – despojamento e sutileza, tanto de linguagem quanto de estrutura – e não estamos mais abandonados. É na companhia dela que viajamos dentro do bonde 53 não para um lugar, mas para outro tempo – um em que cabem desejo, café recém-passado e pão quentinho. Passamos por olhares flutuantes, sofremos, nos reencontramos nos olhares futurantes e somos lembrados de que, encontro ou desencontro, só o final, essa mínima parte, muda. É também uma celebração da leveza o humor de Negro y Blanco em que tudo está posto, porém ainda assim o mistério persiste – um convite à imaginação do leitor, convite esse que perpassa todo o livro. Está no absurdo do homem que carrega uma maleta cheia de dedos em uma “missão secreta” em O carregador de dedos, na saudade rubra e triste de Natal, vermelho, na mudança de ponto de vista em Adocão, na dolorida homenagem ao pai em Nove de Julho. É contando com um leitor ativo, inteligente, que essas histórias se realizam."

Isabela Noronha, escritora e professora da pós-graduação Formação de
Escritores do Instituto Vera Cruz, em São Paulo













SERVIÇO

“Outros tantos”, contos. Autor: Flávio Ulhoa Coelho.. Editora Penalux, 198 págs., R$ 38,00, 2019, ISBN 978-85-5833-531-7
Disponível em:
https://www.editorapenalux.com.br/loja/outros-tantos
E-mail: vendas@editorapenalux.com.br

Ou diretamente com o autor no e-mail: flavioucoelho@gmail.com 
(com direito a dedicatória e a um outro livro do autor, à escolha: Gambiarra e outros paliativos emocionais (contos), Contos&Vinténs (contos), Guarda-Trecos (infantil), Pigarreios (romance) ou as nuvens amortecem a queda (contos) ). 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Retrospectiva 2K19




as nuvens amortecem a queda
Coleção 32, Sangre Editorial
Abril de 2K19









outros tantos
PENALUX
setembro de 2K19

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 16 de janeiro, Universidade de Coimbra.


23 de janeiro, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa: 
Breve história das notações algébricas


27 de janeiro, Palácio Baldaya, Lisboa, conversa com Raul Tomé.


9 de abril, palestra no CAEM/IME-USP: 
De onde afinal vem todos esses números?


16 de abril, Segundo Congresso de História da Ciência, FFLCH-USP: 
Nicholas Bourbaki: um matemático múltiplo


13 de agosto, "Conferências Breves", Centro Maria Antônia da USP: 
A matemática está em toda parte






14 de setembro, lançamento de "outros tantos, Livraria da Vila, São Paulo



11 de novembro, palestra para o grupo Filosofísica,  IFSC-USP:
"Ars Magna, 1545"