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a seguir, a parte final do conto Bognerstrasse (publicado inicialmente no livro Gambiarra e outros paliativos emocionais, Editora Arte PauBrasil, 2007).]]
Resolveu ir a pé para casa. Não era perto e era tarde da noite mas foi
assim mesmo. Os barulhos da noite o
assustam mas mais ainda o que acontecia.
Não pôde dormir: o que estava acontecendo? Para ela, era continuação, e para ele,
novidade.
Voltou lá nos dias seguintes e a cada
dia foi aprendendo coisas novas com ela, e era cada vez mais difícil sair de
lá, frio que estivesse, madrugada que fosse.
Lá que agora era a sua vida, não em outro lugar, lá que era a sua
estória. E que também não era, não sabia
nada dela, por muitas vezes ficou à espreita para vê-la chegar, sair, aonde
trabalha? Uma vez, seguiu-a, procurou-a
em outros lugares, procurava-a em algum lugar de seu passado, de seu
quotidiano, deveria ter algo dela em algum lugar lá. Aos poucos, foi vivendo uma outra estória, foi
aceitando-a com tranquilidade e muita felicidade.
A cada dia que a encontrava lá, pedia
instruções de como lá voltar, de como fazer amor do jeito que ela gostava, do
que ela gostava, de tudo o mais, tudo conforme aquele jogo gostoso que a eles
tanto agradavam, era tudo novidade, mesmo quando não fosse, repetiram-se várias
vezes seus momentos juntos, a exaustão não existia. Foi lá que voltou a sentir tantos
sentimentos, e com essa sua nova rotina de ir lá, de esperar ser chamado na
marquise da loja, de subir em silêncio a escada, daqueles poucos e infinitos
momentos, foi sentindo que sim era lá a sua estória, e se desligando pouco a
pouco do que ainda possuía fora daquele quarto, longe daquela janela, longe da
misteriosa velha que requeria silêncio...
Era como se fosse uma vida paralela
que já existia e que só agora ele participava efetivamente. Onde estivemos todo este tempo? ele quis
saber um dia.
-
Estivemos sempre aqui, que pergunta sem nexo.
- Não foi isto que eu quis dizer.
Ficaram
um instante em silêncio. Suas mãos
procuraram pela pêra, a que se esquece sonhando em uma fruteira. Após comê-la tranquilamente, cortando-a fatia
a fatia, ela estava agora pensativa ao seu lado fingindo se concentrar em sua
taça de café, ele voltou a falar:
- Você
nunca sentiu vontade de romper com tudo e começar uma vida nova?
- Você
não está feliz aqui comigo? - ela perguntou, primeira vez a sério.
- Não é
isto. Nunca fui tão feliz – sorriu para
ela, fez aquela cara de por favor não me interprete mal, abraçou-a por trás,
beijou-lhe a nuca, seguiu - perguntava em teoria. Ter outra vida, com alguém que se ama, outra
vida mas com a mesma pessoa, outras... - parou de falar de repente, na
realidade não estava sabendo se expressar.
- Não te
entendo.
- Também
não sei. Penso muito numa estória que
ouvi recentemente. Um dia durante o
regime militar, um cara desapareceu.
Como ele esteve trabalhando em um sindicato, acharam que ele era um dos
tantos desaparecidos. A família dele o
procurou por muito tempo mas, ao final, todos
se resignaram. Receberam uma
indenização do Estado não faz muito tempo, uma destas indenizações para as
famílias de desaparecidos.
Ela
ficou em silêncio, mal sabia ele que isto a incomodava muito. Deveria saber,
tanto tempo juntos, aonde ele queria chegar com aquela conversa, ela se
perguntava tentando esconder a tristeza e a incerteza que agora cresciam dentro
de si. Mas ele não percebia o seu
desconforto.
- Recentemente, a imprensa o
descobriu. Está vivo, tem família em
outra cidade, outra vida, outra estória.
Ele simplesmente resolveu desaparecer, mudar totalmente de vida, cortar
os vínculos. Outra estória, uma quebra
total...
Ficaram
um tempo em silêncio, ele não sabia o quanto essa estória a machucava e ela não
entendendo bem o que se passava. Aos poucos, ele foi percebendo que fora longe
demais, esse é o perigo de não se conhecer totalmente com quem se vive. Por fim, ela disse:
- Eu não
seria capaz disso não. Gosto muito de meus vínculos - disse acariciando-o e
recebendo um sorriso de passagem como retorno. Mas ele estava confuso ainda, e
insistiu.
- Mas
você acha isso possível, se quebrar todos os vínculos com a própria estória e
começar outra? – ele ainda não tinha percebido o terreno que estava entrando.
- Não
sei...
- Esse
não conseguiu.
- Se a
imprensa não o tivesse descoberto.
- Fico
pensando nessa estória, a única que merece ser contada...
- A hora
e a vez de Augusto Matraga.
- Como?
- A hora
e...
- É!
Quer dizer, é diferente, sei lá... lá
houve uma mudança, não uma quebra, a estória é uma só com dois momentos.
Por um
longo tempo ficaram quietos, cada um com seus segredos, seus medos, suas
vontades, suas estórias, suas incertezas. Por fim, ele olhou para ela e sorriu
e perceberam que agora estavam de volta àquele quarto. Refizeram o amor, era o
que restava depois desta conversa. Um
amor estranho, pela primeira vez silencioso demais. E dessa vez, primeira vez, ela não teve que
explicar-lhe como se veriam de novo, ele já tinha aprendido, e nem ele
perguntou se poderia ficar, o frio, a madrugada já avançada. No caminho para casa, era cada vez mais
longe, ele se distraiu e se perdeu, demorou um tempinho para achar o caminho da
casa em que morara nos últimos dez anos, mais do que dez anos, ou quase isto,
pensou tentando encontrar a rua exata.
No dia
seguinte, telefonou a ela diretamente em seu lugar de trabalho, nunca fizera
isto e ela estranhou e ele se desculpou e ela sorriu, gostava de sua
imprevisibilidade, e resolveram almoçar juntos, ela poderia escapar um
pouquinho que fosse de seu trabalho, ele poderia se encontrar com ela, estava
meio que de folga naqueles dias. Ela
propôs o pequeno restaurante onde eles se conheceram e onde foram inúmeras
vezes, foi lá que recebeu seu primeiro beijo, passou-lhe rapidamente pela
cabeça. Na velha mesa de sempre? ele
perguntou jocosamente, ela respondeu que sim contente por ele se lembrar. Antes de sair de casa, ele ainda procurou no
guia o tal restaurante, mal se lembrava o nome, maldizendo profundamente a sua
falta de memória. Ainda bem que ela
gosta...
Após um par de semanas, ela teve que
viajar e ele, depois de alguns dias, foi se encontrar com ela quando o trabalho
dela já tinha terminado e eles podiam aproveitar para passear um pouco naquela
cidade distante. Ela insistiu que
reservassem quartos separados no hotel, dormiram juntos todos os dias é certo,
ele mal entrou em seu quarto (só ia para lá, de manhãzinha, trocar de roupa e
desarrumar a sua cama para a arrumadeira ter algum serviço, era preciso lutar
contra o desemprego, justificava-se sorrindo de tudo aquilo...) e, ao final,
pagariam as suas diárias em dinheiro.
Em um desses dias da viagem, ela
lembrou-lhe no meio de um passeio que precisava ligar para casa e, dito isto,
afastou-se um pouco. De longe, ele a via
junto ao telefone, olhar baixo, conversando, rindo e ele, já a uma distância
que não o permitia ouvi-la, resolveu se distanciar ainda mais, preferia nem
vê-la, por não entender o que acontecia, tudo isto fora surpresa a ele. Enquanto ela telefonava, ele foi abordado por
um velhinho que o especulou, parecia desconfiar que alguém estivesse visitando
aquela parte da cidade que nunca atraía turistas, ele próprio não sabia muito
bem o que estavam fazendo ali, para ele era apenas a companhia dela que
importava. Quando ela tinha se afastado
para telefonar, o fez como se pedisse desculpas, ele fizera uma cara estranha
naquele instante é certo e ela não pôde evitar de perceber, não era de censura,
era de surpresa. Não mencionaram nada
pelo resto do dia, porém a conversa entre eles demorou a engrenar
novamente. De noite, depois do jantar,
ele se desculpou convincentemente e foi ao seu quarto no hotel e lá ficou um
tempo, deitado, olhando o teto. Teria
muitas coisas a pensar, e poderia fazê-las todas naquele seu silêncio, mas não
o fez, apenas fechou os olhos e deixou tudo vagar por sua mente, preferia que
seu pensamento fluísse sem a tola necessidade de se chegar a conclusões
doloridas e desnecessárias, pensamentos que iam e vinham. Meia hora depois, estava no quarto dela, já a
acariciar aquele corpo branco, beijando seus seios, seus cabelos negros,
falando do que sempre se falavam nestes momentos, a repetição das lembranças
aprofundando os vínculos...
Mas já era outra estória agora, eles
se viam menos, não com menos paixão é certo, e ele foi se acostumando com
aquelas presenças extras em suas vidas, as pessoas que repentinamente começaram
a fazer parte de seus pensamentos, evitando falar diretamente nisto. Por vezes, ela falava e contava novidades e
se aprofundava nelas e ele escutava com bastante atenção e interesse, era ela
que importava, em seu todo, com todas as suas estórias. Mas ele propriamente evitava perguntar
qualquer coisa, seria como se estivesse se metendo em outra estória, que não
era a dele, a deles. É! de certa forma
parecia a ele que eles dois apenas existiam quando podiam se ver e se tocar e
se amar, já não era o que fora, não que fosse ruim, era diferente apenas. Em outros momentos, não existia, nem ela, nem
a marquise, nem a escada e muito menos a velha e ele foi se acostumando com
aquela estranha reviravolta em sua vida.
Um dia, ele ficou esperando pelo sinal
debaixo daquela marquise, um chuvisco chato o incomodando, por mais tempo do
que estava acostumado. Ela demorava a
aparecer, demorava, demorava, não apareceu e ele se foi, parecia até que o
apartamento estava deserto, escuro, janelas fechadas, parecia que ninguém vivia
lá. Sem muita convicção, voltou outros
dias e sempre ficou esperando e nada aconteceu, um dia até teve esperanças de
vê-la quando a luz do quarto se acendeu mas ele ficou esperando que ela, alguém
que fosse, aparecesse na janela para dar o sinal que o permitiria reviver
aquela estória, aquele sorriso de passagem.
Depois de meia hora, a luz se apagou e ele desistiu afinal. Voltou para
casa a pé, tentou dormir mas qual-o-quê, a lua iluminava o seu quarto sem
cortina e ele insoniou a noite toda.
Um dia, por fim, muitas esperas
depois, viu-se indo em direção à entrada da casa, a porta já estava aberta, um
vulto já se distanciava em direção à escada... atrasou-se consideravelmente na
subida da escada, ela ia muito à frente, parecia interminável e ela mais e mais
adiante. Tac tac tac... subia a escada e
se distanciava dela mais e mais, parecia nunca acabar, nunca alcançar...
Chegou
afinal ao quarto, a porta estava entreaberta, ouviu o seu ruído lá dentro, uns
passos muito distantes, como se o quarto fosse quilométrico. Ao entrar, pareceu vê-la no outro extremo do
quarto mas depois que acostumou sua vista percebeu que era só uma sombra, a
sombra de algo que entrava pela janela.
Foi avançando pelo quarto e não a via, tropeçou na cama, alguém a havia
mexido, estava fora do lugar usual. O
vento fez a porta bater e ouviu passos no corredor...
Foi até a janela, não tinha se
acostumado com aquele quarto, não sabia onde se ligava a luz, o silêncio o
incomodava e ele buscava um lugar que o tranquilizasse. A janela ainda estava entreaberta, e ele
espreitou por seu vão. Ainda chuviscava
e seus olhos buscaram naturalmente a marquise, o vão à frente da vitrine que
ele tão bem conhecia, ainda chuviscava fino e no vão uma pessoa esperava
ansiosamente e olhava justamente para a janela na qual ele estava agora, mas
não percebia a sua presença lá. Ficou
imóvel, não podia acreditar no que via, em quem via ali debaixo da marquise,
esperando o sinal, aquele sinal que tanto ansiou por aqueles anos todos, a
estória, a única, que merece ser contada.
Apesar da distância, pôde ver o olhar daquela pessoa que tanto conhecia,
o olhar triste de quem espera um sinal...
...lembrou-me do
riso que eu tinha...
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Em janeiro, estarei em Lisboa, para o lançamento de meu livro "outros tantos" (PENALUX):
Todos estão convidados!!!