Alguém sorriu de passagem...
Em uma dessas tardes quaisquer de um
desses dias quaisquer, sentado em uma dessas inúmeras praças quaisquer daquela
cidade, sentindo-se um desses seres viventes quaisquer, ele pensou em como era
bom estar assim tranquilo, em seu canto, vendo a vida passar, as pessoas
passarem, o sol se pondo lentamente, pensando na única estória que vale a pena
contar, a única que vale a pena escrever.
Sentindo-se de bem com a vida, de como era bom estar ali naquele canto
que definiu como seu e saber que nada mais importava, e saber que, mesmo
sozinho, estava bem acompanhado.
A vida passa sim, e como! e no meio
dessa passagem inútil e apressada, contamos muitas estórias e as vivemos todas
elas e as relembramos várias vezes, por dias até, as contamos todas para todas
aquelas pessoas que queremos bem e sim, sempre as queremos muito bem. Todos os dias, sim, as noites todas, os
momentos todos, as estórias todas, mesmo as que não merecem ser contadas, mesmo
as que não são exatamente aquela que agora pensava com tanto gosto, a que
merecia ser contada, aquela, a única.
Até o dia em que se está sentado em um parque, sentado no encosto do
banco com os pés displicentemente pousados no assento, vendo a vida passar,
vendo os passantes por cima, e ela passa por você e sorri de passagem e vocês
sorriem um para o outro e ela segue sem você sem importar que era apenas um
sorriso, quem se importaria em querer mais que um sorriso naquele final de
tarde tranquilo, quem não se satisfaria com apenas um sorriso, belo sorriso
daquela mulher a combinar com o sol que agora se põe (o sol na sombra se
esquece). Você feliz e contente da
vida por causa desse sorriso, desse lento pôr de sol, de todas suas
relembranças e estórias todas, e nem percebe que ela, que tinha te jogado um
sorriso de passagem, com teus cabelos negros e jeito mediterrâneo, parou logo
adiante e nem percebe que ela parece sim te esperar logo adiante, te espera
sorrindo aquele sorriso de passagem (alguém sorriu de passagem em uma cidade
estrangeira... cantarolou distraído), e só vai perceber isso séculos
depois, uma eternidade que só não é maior porque a realidade insiste muitas
vezes em ter uma contagem de tempo distinta da nossa. Independentemente desses detalhes todos, que
a ele pouco importavam naquele momento de final de tarde, frente ao belo pôr de
sol e naquela praça cheia de crianças de bem com a vida, ela ainda te espera
sorrindo aquele suave sorriso, parada, olhando-te à distância. Como era bela assim parada, olhando em sua
direção, até parece que te espera, ele finalmente pensa, bem cuidadosamente
para não perturbar aquele momento, qualquer pensamento impertinente poderia
destruir todo aquele cenário que construíra para si.
- O que
aconteceu? ela pergunta. Vai ficar parado aí muito tempo?
E você
ainda olha para os lados a confirmar que aquela jovem fala com você, te sorri
amavelmente, te espera impacientemente.
A certeza de que ela está efetivamente falando com você, você só a terá
quando fizer um sinal a ela, meio que surpreendido, perguntado se é com você
mesmo que...
- Deixa de palhaçada, vamos embora que estamos
atrasados.
Definitivamente
era com você que ela falava, não havia mais dúvida, o sorriso, de passagem que
seja, era para você sim. Mesmo assim,
ganhar tempo era importante, do que ela estava falando afinal...
-
Estamos? Atrasados para que? - Instintivamente, ele se levanta, o sol já se
pôs, e a segue mesmo sem saber para onde, mesmo sem saber por que. Ela nem o esperou chegar perto e retomou sua
caminhada, passos largos e seguros, que ele teve que se apressar para
alcançá-la.
-
Atrasados sim! E você sempre se esquecendo da hora. Vamos logo.
O
carinho com que ela disse isso a ele, sorrindo, e sim o beijo suave que
acompanhou o suave sorriso, o fez se convencer a segui-la. Não sabia por que a acompanhava, nem para
onde mas o sorriso dela, a sua mão pegada à dela, o seu total descompromisso
com a vida naquela tarde, a única estória que merece ser contada. Até parecia que ele, hoje, era outra estória.
E foram juntos, ela em um passo firme,
segura de si, sempre falando, sempre carinhosa, e ele ainda confuso e calado,
mas feliz, mais feliz. Na entrada do
metrô, ele lhe deu um beijo de leve no rosto, surpreendendo-a, como se fosse um
beijo de despedida, como se cada um naquele momento fosse para o seu lado, algo
singelo nascendo entre eles mas ainda não explícito (e quem quiser pode até
imaginar a estação de metrô naquela famosa praça de Munique, frente àquele
famoso relógio, agora mudo, não de noite, mas no meio da tarde, o sol ainda
batendo, muita gente ao redor...).
Chegaram ao que, para ele, era o
apartamento dela, olhava tudo com disfarçada curiosidade, tentando se achar um
pouco naquele lugar totalmente desconhecido.
Conversaram como bons amigos que eram, jantaram, fizeram amor. Para ele, o amor primeiro, a primeira vez, a
lenta descoberta do outro, o gozo prolongado, sincero; a ela não era a
novidade, e sim a gentileza, que importava, os carinhos demorados, o toque
leve, o arrepiar, e seguramente nenhum deles se decepcionou naquele dia,
naquela noite. Como é bom o amor tranquilo, ele pensava nisto, olhar disperso
em algum ponto do teto de gesso, sentindo o que todos sentimos depois do gozo,
depois da troca cúmplice de olhares e carinhos suaves, pensava nisso e naquilo
sem compromissos, no exato momento que ela lhe disse que já era hora de
ir. Pegou-o de surpresa, quer dizer que
não poderei dormir aqui?
- Já discutimos isto tantas vezes -
ela murmurou, até meio triste - também não queria que você fosse assim, mas...
Já
discutimos? ele pensou sem se lembrar de nada. Tentou o truque que sempre
funcionava.
- Está
frio, essa noite...
- Você
bem sabe que eu o queria aqui, mas...
A sua
tentativa de sedução, porém, não a convenceu e ele começou a se vestir, estava
agora se sentindo inseguro ali, já era outro momento. E ela se encolhia cada vez mais em seus
lençóis, desviando o olhar, o olhar triste de quem fica, o que fica sempre
sofre mais, o que se vai tem o caminho a percorrer, o que fica, fica com o
silêncio. Ele ousou olhá-la, ela tinha o
jeito tranquilo, o olhar forte, parecia mais forte que ele, apesar da tristeza
daquele momento, algum momento teria a oportunidade de dizer isto, e ela com
certeza discordaria dessa sua opinião, apenas por cortesia.
- Não faça muito barulho quando sair -
ela disse quebrando o silêncio, precisava dizer algo para espantar a tristeza -
senão a velha acorda.
- Claro,
a velha... - ele não sabia muito o que dizer – deve estar dormindo agora, não é? - brincou e com isso arrancou um sorriso de
passagem, primeiro dela e correspondido por ele, voltara a sorrir, ainda
encolhida nos lençóis, doía tanto ter que ir embora e deixar aquele sorriso
para trás - Como nos vemos de novo? -
arriscou perguntar, se é que iremos nos ver de novo, arriscou pensar.
Ela
pareceu surpresa mas sorriu, como poderia deixar de sorrir de sua pretensa
ingenuidade, sim nos veríamos, pensou ela, você não escaparia tão fácil, disse
baixinho, para o deleite de ambos... e ele bem sabia que deveria esperar na rua
dos fundos até ela aparecer na janela, um sinal e ele iria para a frente da
casa, esperar por ela para abrir a porta, subir em silêncio e no escuro,
segui-la até o quarto e ... (e só agora que ele se tocou que também dessa vez,
subiram em silêncio e no escuro, deve ser para não incomodar a velha, quem quer
que ela seja...). Mas ela não se
incomodou em explicar-lhe como se fosse a primeira vez, e era a milésima,
gostava de seu jeito inconsequente de ser.
Sorrindo, venceu o frio, levantou-se enrolada nos lençóis, o que o
impedia de vê-la totalmente nua, levou-o até a janela e disse:
- Está
vendo aquela loja?
Não, não
a via, nem estava prestando atenção, como poderia? olhava sim para ela, sua
pele macia e branca, seus cabelos negros e desarrumados, ela era tão especial,
seu jeito seguro de ser. Nem a escutava,
sentia o seu cheiro, tentava imaginá-la de novo, ainda não havia explorado
todos os detalhes de seu corpo, iria conseguir algum dia, pensava. E ela sabia disto tudo, que ele a olhava e a
desejava, mas mesmo assim continuou a explicação, milésima vez, feliz da vida e
ele, primeira vez que escutava, tentava memorizar sem parecer que prestava
atenção.
- Você
fica ali, esperando, debaixo daquela marquise, está vendo? naquele escuro perto
da vitrine. Quando eu chegar, venho até
a janela, dou um sinal e você vai para a frente da casa me esperar – deu um
belo sorriso.
- Eu dou a volta e você abre a porta, é isso? - estava sorrindo, ambos aliás, como é bom o amor tranquilo!
- É isso!- os seus olhos pediam para
ele insistir em ficar.
- Sem
barulho para não acordar a velha, não é? - os seus olhos também.
- Em
total silêncio para não acordar a velha – repetiram em uníssono e os dois
gargalharam admirados pelo estranho entrosamento.
- É! É isso que eu gosto em você. É sempre novidade, é sempre a primeira vez -
sua mão acariciava agora o rosto dele, olhos profundos nos seus.
Ele
sorriu e pensou: ainda bem que ela gosta.
*********
[[essa é a primeira parte de um conto chamado Bognerstrasse publicado no meu livro Gambiarra e outros paliativos emocionais, pela Arte PauBrasil, 2007. A parte final será publicada na próxima semana]]
Em janeiro, estarei em Lisboa, para o lançamento de meu livro "outros tantos" (PENALUX):
Em janeiro, estarei em Lisboa, para o lançamento de meu livro "outros tantos" (PENALUX):
Todos estão convidados!!!
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