quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Bognerstrasse I

Alguém sorriu de passagem...


          Em uma dessas tardes quaisquer de um desses dias quaisquer, sentado em uma dessas inúmeras praças quaisquer daquela cidade, sentindo-se um desses seres viventes quaisquer, ele pensou em como era bom estar assim tranquilo, em seu canto, vendo a vida passar, as pessoas passarem, o sol se pondo lentamente, pensando na única estória que vale a pena contar, a única que vale a pena escrever.  Sentindo-se de bem com a vida, de como era bom estar ali naquele canto que definiu como seu e saber que nada mais importava, e saber que, mesmo sozinho, estava bem acompanhado.

          A vida passa sim, e como! e no meio dessa passagem inútil e apressada, contamos muitas estórias e as vivemos todas elas e as relembramos várias vezes, por dias até, as contamos todas para todas aquelas pessoas que queremos bem e sim, sempre as queremos muito bem.  Todos os dias, sim, as noites todas, os momentos todos, as estórias todas, mesmo as que não merecem ser contadas, mesmo as que não são exatamente aquela que agora pensava com tanto gosto, a que merecia ser contada, aquela, a única.  Até o dia em que se está sentado em um parque, sentado no encosto do banco com os pés displicentemente pousados no assento, vendo a vida passar, vendo os passantes por cima, e ela passa por você e sorri de passagem e vocês sorriem um para o outro e ela segue sem você sem importar que era apenas um sorriso, quem se importaria em querer mais que um sorriso naquele final de tarde tranquilo, quem não se satisfaria com apenas um sorriso, belo sorriso daquela mulher a combinar com o sol que agora se põe (o sol na sombra se esquece).  Você feliz e contente da vida por causa desse sorriso, desse lento pôr de sol, de todas suas relembranças e estórias todas, e nem percebe que ela, que tinha te jogado um sorriso de passagem, com teus cabelos negros e jeito mediterrâneo, parou logo adiante e nem percebe que ela parece sim te esperar logo adiante, te espera sorrindo aquele sorriso de passagem (alguém sorriu de passagem em uma cidade estrangeira... cantarolou distraído), e só vai perceber isso séculos depois, uma eternidade que só não é maior porque a realidade insiste muitas vezes em ter uma contagem de tempo distinta da nossa.  Independentemente desses detalhes todos, que a ele pouco importavam naquele momento de final de tarde, frente ao belo pôr de sol e naquela praça cheia de crianças de bem com a vida, ela ainda te espera sorrindo aquele suave sorriso, parada, olhando-te à distância.  Como era bela assim parada, olhando em sua direção, até parece que te espera, ele finalmente pensa, bem cuidadosamente para não perturbar aquele momento, qualquer pensamento impertinente poderia destruir todo aquele cenário que construíra para si.

- O que aconteceu? ela pergunta. Vai ficar parado aí muito tempo?

E você ainda olha para os lados a confirmar que aquela jovem fala com você, te sorri amavelmente, te espera impacientemente.  A certeza de que ela está efetivamente falando com você, você só a terá quando fizer um sinal a ela, meio que surpreendido, perguntado se é com você mesmo que...

 - Deixa de palhaçada, vamos embora que estamos atrasados.

Definitivamente era com você que ela falava, não havia mais dúvida, o sorriso, de passagem que seja, era para você sim.  Mesmo assim, ganhar tempo era importante, do que ela estava falando afinal...

- Estamos? Atrasados para que? - Instintivamente, ele se levanta, o sol já se pôs, e a segue mesmo sem saber para onde, mesmo sem saber por que.  Ela nem o esperou chegar perto e retomou sua caminhada, passos largos e seguros, que ele teve que se apressar para alcançá-la.

- Atrasados sim! E você sempre se esquecendo da hora. Vamos logo.

O carinho com que ela disse isso a ele, sorrindo, e sim o beijo suave que acompanhou o suave sorriso, o fez se convencer a segui-la.  Não sabia por que a acompanhava, nem para onde mas o sorriso dela, a sua mão pegada à dela, o seu total descompromisso com a vida naquela tarde, a única estória que merece ser contada.  Até parecia que ele, hoje, era outra estória.

          E foram juntos, ela em um passo firme, segura de si, sempre falando, sempre carinhosa, e ele ainda confuso e calado, mas feliz, mais feliz.  Na entrada do metrô, ele lhe deu um beijo de leve no rosto, surpreendendo-a, como se fosse um beijo de despedida, como se cada um naquele momento fosse para o seu lado, algo singelo nascendo entre eles mas ainda não explícito (e quem quiser pode até imaginar a estação de metrô naquela famosa praça de Munique, frente àquele famoso relógio, agora mudo, não de noite, mas no meio da tarde, o sol ainda batendo, muita gente ao redor...).

          Chegaram ao que, para ele, era o apartamento dela, olhava tudo com disfarçada curiosidade, tentando se achar um pouco naquele lugar totalmente desconhecido.  Conversaram como bons amigos que eram, jantaram, fizeram amor.  Para ele, o amor primeiro, a primeira vez, a lenta descoberta do outro, o gozo prolongado, sincero; a ela não era a novidade, e sim a gentileza, que importava, os carinhos demorados, o toque leve, o arrepiar, e seguramente nenhum deles se decepcionou naquele dia, naquela noite. Como é bom o amor tranquilo, ele pensava nisto, olhar disperso em algum ponto do teto de gesso, sentindo o que todos sentimos depois do gozo, depois da troca cúmplice de olhares e carinhos suaves, pensava nisso e naquilo sem compromissos, no exato momento que ela lhe disse que já era hora de ir.  Pegou-o de surpresa, quer dizer que não poderei dormir aqui?

          - Já discutimos isto tantas vezes - ela murmurou, até meio triste - também não queria que você fosse assim, mas...
         
Já discutimos? ele pensou sem se lembrar de nada. Tentou o truque que sempre funcionava.
         
- Está frio, essa noite...
         
- Você bem sabe que eu o queria aqui, mas...
         
A sua tentativa de sedução, porém, não a convenceu e ele começou a se vestir, estava agora se sentindo inseguro ali, já era outro momento.  E ela se encolhia cada vez mais em seus lençóis, desviando o olhar, o olhar triste de quem fica, o que fica sempre sofre mais, o que se vai tem o caminho a percorrer, o que fica, fica com o silêncio.  Ele ousou olhá-la, ela tinha o jeito tranquilo, o olhar forte, parecia mais forte que ele, apesar da tristeza daquele momento, algum momento teria a oportunidade de dizer isto, e ela com certeza discordaria dessa sua opinião, apenas por cortesia.

          - Não faça muito barulho quando sair - ela disse quebrando o silêncio, precisava dizer algo para espantar a tristeza - senão a velha acorda.
         
- Claro, a velha... - ele não sabia muito o que dizer – deve estar dormindo agora, não é?  - brincou e com isso arrancou um sorriso de passagem, primeiro dela e correspondido por ele, voltara a sorrir, ainda encolhida nos lençóis, doía tanto ter que ir embora e deixar aquele sorriso para trás - Como nos vemos de novo? -  arriscou perguntar, se é que iremos nos ver de novo, arriscou pensar.
         
Ela pareceu surpresa mas sorriu, como poderia deixar de sorrir de sua pretensa ingenuidade, sim nos veríamos, pensou ela, você não escaparia tão fácil, disse baixinho, para o deleite de ambos... e ele bem sabia que deveria esperar na rua dos fundos até ela aparecer na janela, um sinal e ele iria para a frente da casa, esperar por ela para abrir a porta, subir em silêncio e no escuro, segui-la até o quarto e ... (e só agora que ele se tocou que também dessa vez, subiram em silêncio e no escuro, deve ser para não incomodar a velha, quem quer que ela seja...).  Mas ela não se incomodou em explicar-lhe como se fosse a primeira vez, e era a milésima, gostava de seu jeito inconsequente de ser.  Sorrindo, venceu o frio, levantou-se enrolada nos lençóis, o que o impedia de vê-la totalmente nua, levou-o até a janela e disse:
         
- Está vendo aquela loja?
         
Não, não a via, nem estava prestando atenção, como poderia? olhava sim para ela, sua pele macia e branca, seus cabelos negros e desarrumados, ela era tão especial, seu jeito seguro de ser.  Nem a escutava, sentia o seu cheiro, tentava imaginá-la de novo, ainda não havia explorado todos os detalhes de seu corpo, iria conseguir algum dia, pensava.  E ela sabia disto tudo, que ele a olhava e a desejava, mas mesmo assim continuou a explicação, milésima vez, feliz da vida e ele, primeira vez que escutava, tentava memorizar sem parecer que prestava atenção.
         
- Você fica ali, esperando, debaixo daquela marquise, está vendo? naquele escuro perto da vitrine.  Quando eu chegar, venho até a janela, dou um sinal e você vai para a frente da casa me esperar – deu um belo sorriso.

- Eu dou a volta e você abre a porta, é isso? - estava sorrindo, ambos aliás, como é bom o amor tranquilo!

          - É isso!- os seus olhos pediam para ele insistir em ficar.
         
- Sem barulho para não acordar a velha, não é? - os seus olhos também.

- Em total silêncio para não acordar a velha – repetiram em uníssono e os dois gargalharam admirados pelo estranho entrosamento.

          - É! É isso que eu gosto em você.  É sempre novidade, é sempre a primeira vez - sua mão acariciava agora o rosto dele, olhos profundos nos seus.
         
Ele sorriu e pensou: ainda bem que ela gosta.

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[[essa é a primeira parte de um conto chamado Bognerstrasse publicado no meu livro Gambiarra e outros paliativos emocionais, pela Arte PauBrasil, 2007. A parte final será publicada na próxima semana]]


Em janeiro, estarei em Lisboa, para o lançamento de meu livro "outros tantos" (PENALUX):




Todos estão convidados!!! 

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