quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Estética


          Primeiro a gente vai assistir a um daqueles filmes. Um clássico do cinema iraniano, por exemplo, onde nada acontece a não ser a interminável imagem imóvel em preto e branco. Amigos insones e aparentemente desinteressados carregando bolsas de pano contendo manifestos amarelados que nunca leram ou entenderam nos acompanham nessa empreitada.
          Às vezes, ao invés, procurávamos uma daquelas peças alternativas dirigidas pelo velho magro de olhar arrogante e cabelos grandes e cinzentos, consistindo de, também intermináveis, cenas orgiásticas e interações ininteligíveis com o público que só está lá para, singelamente, pagar o mico. O gordinho aqui é um dos alvos prediletos, junto com o pescoçudo de olhar inteligente e cabelo desgrelhado da quinta fileira.
          Daí, vamos ao nosso restaurante vegan predileto... Sempre achei que comer aquelas comidas se constituía em um ato de contrição, pura auto punição. E pecados deve haver aos montes, assim aprendi na catequese e assim constato depois da intragável n-ésima garfada.
          Por vezes, uma cerveja de trigo integral no barzinho da esquina antes de voltar para casa na companhia de casais amigos, onde repetiremos até a exaustão nossas discussões de variadas filosofias. Alternativamente, nossa vida social terminaria em um sarau de poesia alternativa ou em uma daquelas performances urbanas cuja principal diversão era simplesmente teorizar o arbitrário de nossa vida tacanha.
          Por fim, fazemos nosso amor apressado, silencioso e de pernas fechadas no sofá de seu apartamento. Mas gozávamos satisfeitos sempre, sempre foi bom assim e nem pensamos em mudar.
          Boa noite, querida, amanhã é domingo e dia de andar de bicicleta na recém inaugurada ciclovia...


[[Esse conto apareceu em meu livro Conto&Vinténs publicado pela Editora A Girafa em 2012.]]

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