Passo alguns
dias falando com as pessoas, tentando descobrir algo mais que o óbvio para
colocar em meu texto, preciso impressionar o chefe. E descobrir também quando
que é o logo, este tal logo que custa a
passar, que nos mata lentamente a todos, é preciso paciência nesta espera,
aprendo com o velho que chegou com o seu grupo no mesmo dia que nós também
chegamos. O clima coletivo de ajuda e espera, de esperança e de sabedoria
natural. O tal logo que é um dos tempos desta espera. Participei de um jogo de
futebol, integro-me fraternalmente ao grupo, afinal somos todos parte de uma
mesma espera, mas mantenho-me seguramente à distância de um observador, de um
narrador imparcial, é o nosso papel de imprensa...
Uma noite o Juvenal
se arranjou em uma barraca, ele me dizia que não voltava para casa sem ter
comido uma sem-terra, este Juvenal não existe!
Tento dormir no carro mesmo, todo fechado, com este calorzão mas ao
menos não sofro com os malditos insetos.
Mas não consigo pregar o olho, como é possível se gostar deste tipo de
vida? Vontade de voltar para casa, para
um banheiro decente, para uma caminha quentinha ao lado dela.
Saio para
andar, não é tão tarde mas este pessoal dorme com as galinhas, o acampamento
ressona tranquilamente, o estranho e
sonoro uníssono da espera, algumas fogueiras resistem, em qual barraca
estará dormindo o Juvenal? Rio só de
pensar, este Juvenal não existe! Caminho
um pouco a esmo e encontro o velho casco de árvore acocorado, junto a uma
fogueira, pitando, distraído, o seu neto dormindo a seus pés. Sento-me junto a ele, puxo conversa, ele me
oferece um café: só de olhar o estado da caneca tento dizer não mas não há
volta, seus olhos quase que imploram para que eu aceite o seu café, ele se
sentiria humilhado se eu não aceitasse.
Esqueço um pouco o porquê de estar ali e jogo conversa fora com
ele. Que me conta que veio futurando
desde o nada e desde sempre até aquele acampamento, que o único motivo de estar
lá era o seu neto que agora dorme quase a seus pés. Perguntei a ele se ele não iria dormir, ele
me disse que não dormia mais, só sonhava.
- Desde quando? eu pergunto.
- Desde sempre, meu filho - o seu olhar
marejou e ele continuou a pitar lentamente o seu cigarro.
...
e o desde sempre é o terceiro tempo desta espera, desta espera inútil,
agonizante, aprendo com o velho que veio do longínquo nada futurando a sua
esperança, futurando um algo qualquer para o seu neto, desde sempre futurando,
para sempre futurando...
Para dormir,
bebi uns bons goles da bebida que o Juvenal trouxe e esqueceu no carro. Acordo assustado com o barulhão ao redor, o
sol já começando a esquentar, ouço tiros e vejo fardados. Uma correria e o Juvenal em cima do capô do
carro tirando fotos.
- Acorda,
menino - ele grita para mim sem tirar o olho da câmara - Ô menino, está na hora
de trabalhar...
Tento achar um lugar para poder
observar melhor a bagunça. O líder passa
por mim e eu pergunto o que está acontecendo.
Ele olha bem para mim, assustado.
- De que planeta você vem? Só mesmo um tolo para fazer uma pergunta
destas... - ele responde preocupado com os tiros que agora soam de todos os
lados.
Olho para a direção da cerca e vejo
policiais e pistoleiros atirando contra o acampamento. A correria e a revolta resultam em mortes.
A longa demora, todos sabemos o quanto
dura. Dura tanto quanto o que queremos
evitar, dura mais que o momento propício da fuga, menos que o estalo do
arrependimento. Dura exatamente o que
não dá para se evitar, dura o quanto dura a nossa teimosia. Vimos todos o avanço dos acampados armados
com paus e pedras e o recuo desordenado e desesperado frente aos tiros. E vimos todos, sem compreender, que depois de
dispersos ainda sobrou bem no meio do campo de batalha o velho casco de
árvore. Em câmara lenta, com seus passos
lentos mas firmes todos nós o vimos retornar procurando o seu neto. Demoramos a perceber que ele estava ferido,
que escorria sangue por seu peito.
Naquele silêncio imenso e cortante que se seguiu todos puderam perceber
a dor que o rosto do velho trazia. É quanto dura uma espera: o passo lento de
um velho casco de árvore ferido...
Mas estávamos todos hipnotizados pelos
acontecimentos e não reagimos. O velho
caminhou mais um pouco, acocorou-se cheio de dor bem no meio do campo e lá
ficou, seus olhos apertados diziam tudo, os dedos de seus pés forçando a terra,
abrindo sulcos e penetrando nela como se fossem raízes, o velho ficou lá feito
tronco de árvore cortada.
O que mais há
para contar? Voltamos rapidamente para a
cidade para melhor prepararmos a matéria, o Juvenal excitado com as fotos que
tirou, com direito a gente ensanguentada e tudo o mais. O jornal mandou uma outra equipe para cobrir
os dias que se seguiram. É verdade que
pouco se aproveitou do meu trabalho e, depois de um tempo, fui transferido para
o caderno cultural, é mais o seu estilo,
menino, disse-me o editor. Não estou
decepcionado com a mudança, confesso, sempre se ganha alguns ingressos extras
para os shows de música.
Ao que parece,
algumas pessoas ainda se recordam daqueles dias e tentam fazer com que nem tudo
passe em branco mas para outras, tudo aquilo não passou de ficção, as balas não
existiram, e por isso ninguém atirou, ninguém se feriu e ninguém morreu, pois
nada aconteceu. Neste país tudo é
ficção, nada acontece realmente, como se pode esperar que alguém se lembre?
De minha
parte, voltei lá tempos depois. A espera agora se resume a umas poucas famílias
que ficaram por lá, estão tentando tirar daquela terra algo mais do que a
simples sobrevivência, os demais se foram para tentar a sorte em outras terras,
em outras esperas. Demorei um pouco para
achar o lugar exato da batalha mas finalmente encontrei o velho tronco casco de
árvore acocorado, com suas raízes penetrando fundo na terra, de longe nem se
distingue que é ele que está alí, o velho que chegou futurando a este sertão...
São Paulo, 1999
[[Essa é a segunda e última parte do conto "Sem somos" publicado no meu livro Gambiarra e outros paliativos emocionais (Ed. Arte PauBrasil, 2007). A primeira parte foi publicada na semana passada.]]