Sem somos
sempre sem
somos sem
e mil outros
E contamos mais
Nós contamos
sermos com
Ele criou raízes por lá, sem
dúvida. Mas quando chegou, poucos pensavam
que iria sequer resistir, com toda aquela idade, com aquela pele que mais
parecia o casco de uma árvore, seca como o lugar de onde vinha. Aquele olhar tranquilo de quem já viu muita
coisa, o passo duro e lento dos cansados.
Foi assim que
eu comecei a primeira versão do texto onde descrevia o que tinha acontecido
naqueles dias da confusão. Chamei-o de Os três tempos de uma espera e mal sabia
que também eu teria que esperar para vê-lo publicado, espera esta que durou até
o dia em que o editor me chamou, exigiu alguns cortes.
- Está muito parcial, muito sentimental
- ele me disse, sugerindo algumas mudanças.
Cedi às
sugestões, quem sou eu?, e uma versão reduzida do artigo saiu meio que
escondido em um caderno especial que o jornal publicou, junto às fotos do
Juvenal.
O velho, o
Juvenal e eu chegamos quase que juntos ao acampamento. Nós no carro da reportagem enquanto que o
velho vinha a pé, em uma daquelas inúmeras levas de gente que surgiam do nada, daquele nada atrás do campo, daquele nada atrás
daquele mato todo, do nada que é o nosso imenso país. Do nada com alguns amigos e parentes, com o
nada que eram todos eles, com o nada de seu neto de sete anos, com o nada que
era a sua esperança, com o insignificante nada a somar-se aos outros nadas que
somos nós...
O Juvenal
elogiou o meu texto mas eu nunca consegui distinguir se o seu elogio não era
nada mais que um de seus ataques de cinismo.
Ele sempre dizia que para se sobreviver nesta vida só mesmo sendo cético
e cínico.
- Não se consegue boas fotos se você
não for um pouco cínico, viu garoto? Nem
se escreve um bom texto sem isto...
Logo que saiu
do carro, o Juvenal se apressou em tirar fotos dos acampados, dos que chegavam,
das caras sofredoras, quanto mais casco
de árvore, melhor, quanto mais olhar desesperado, mais o pessoal gosta, êta
povinho para gostar de sofrimento! Deve
ter tirado boas fotos aquele dia o Juvenal.
Fomos mandados para lá para fazermos a cobertura do acampamento e
deveríamos ficar por lá até acontecer algo, seja lá o que for, pois fontes
seguras diziam que algo deveria
acontecer por estes dias. Na realidade,
todos sabíamos o óbvio, que haveria uma invasão, que haveria reação, que
haveria milícias e polícias, que haveria armas e tiros e entre mortos e
feridos nem todos sobreviveriam, que haveria repercussão e que haveria desculpas e explicações e promessas e ameaças, e um julgamento e várias
absolvições. E talvez houvesse até algo novo.
Mas cumpríamos o nosso dever jornalístico de informar tudo como se fosse
uma novidade, as barracas armadas de
forma ordenada, havia divisão de serviço e todos pareciam ocupados, menos as crianças
que aproveitavam aquele espaço todo para fazer o que todos queríamos. Para exercer o supremo direito de poder
chutar uma bola mirando o horizonte e vê-la transformar-se no pôr de sol que
agora embeleza a paisagem e que logo será a bela lua cheia, a tal bola chutada
a esmo surgiria como a lua cheia de nossos sonhos. A bola chutada pelo moleque remelento em
direção ao horizonte, a foto que o Juvenal não conseguiu tirar.
Fui atrás de
uma conversa, e de algo para beber, qualquer coisa entre café e cachaça estaria
bem. Não me recusam nada, aqui tudo é de todos, mas se calam
quando estou por perto, penso que até o silêncio é de todos. Foi assim nos
vários dias em que estive no acampamento, olham-me com temor como se eu não
fosse um ser igual a eles, não é assim que eles gostam de dizer? que somos
todos iguais? Puxo conversa em várias
rodas e só em uma delas um cara que deve ser um dos líderes conversa comigo.
Tento confirmar se haverá ou não uma invasão.
- Não haverá
invasão e sim uma ocupação - disse em um jogo de palavras olhando para o leste
onde uma cerca ao longe era guardada por vários seguranças armados - todos
sabem disto e é por isso que estamos aqui.
- Quando? - e speculo.
Ele pita um cigarro lentamente e espera
a fumaça se esvair no espaço. Espero um
pouco mais pela resposta que não vem e insisto na pergunta.
- Quando?
- Logo - foi a resposta.
- Logo, mas quando? Amanhã?
Depois? Daqui a uma semana?
- Logo, logo. É a nossa medida do tempo. Logo e nunca é o que mede a nossa vida.
- Mas entre o logo e o nunca pode ter
muita coisa - argumentei.
- Talvez lá de onde você vem mas não
para a gente... - disse levantando-se.
Segue em direção ao grupo do velho casco
de árvore que está arrumando as suas coisas, armando uma barraca.
Irrito-me com esta falta de
precisão. Eles pensam que eu sou algum
espião? Só estou aqui fazendo o meu
trabalho, cobrindo a invasão. Eles
deveriam me agradecer a publicidade que estamos dando e não dificultarem o
nosso trabalho. O meu chefe quer que eu
fique por aqui até a invasão mas não quero perder muito tempo com isto,
não. Mais alguns dias e é o aniversário
de minha namorada, ela nunca vai me perdoar se eu não estiver presente.
[[Essa é a primeira parte do conto "Sem somos" publicado no meu livro Gambiarra e outros paliativos emocionais (Ed. Arte PauBrasil, 2007). A segunda, e última parte será publicada na próxima semana.]]
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