quinta-feira, 14 de maio de 2020

Quinquênio



          No dia 14 de maio, cinco anos atrás, eu inaugurava esse meu blog com a perspectiva de, talvez, escrevê-lo por um par de anos. O meu receio era não ter assunto para postar todas as semanas e essa era a única regra autoimposta: um texto semanal, sempre às quintas-feiras. Não importava se fosse conto, novo ou já publicado, crônica, poesia ou recreação, o que importava era não deixar as quintas-feiras passarem em branco. E não é que consegui chegar ao quinto ano sem falhar uma semana? Essa é a 262ª postagem no blog.
          Claro que, para comemorar, nada melhor que um bolo e, nesses tempos de quarentena e de lembranças (há algo melhor para incentivar a memória que esse isolamento imposto?), acabei atazanado com uma receita que o Thio Therezo me ensinou quando eu ainda era uma criança. Um bolo simples de cenoura mas que traz consigo muita lembrança e história.
          O Thio, talvez nem seja preciso relembrar, é um chef internacionalmente conceituado, com inúmeros prêmios e livros publicados. Ele é o único chef a receber quatro estrelas em toda a vida do Guia Michelin, mas isso é outra história que conto em uma outra oportunidade. O que queria contar hoje se passou quando ele, apesar da reconhecida competência, ainda não era o famoso cozinheiro que todos admiramos.
          Lembro bem do dia em que o Thio me chamou à cozinha para mostrar como fazer o seu, e agora também meu, bolo predileto. Eu era então pequeno, já gordinho mas pequeno. A cozinha nunca me foi um lugar estranho, pois eu me vejo desde sempre ajudando a mamãe em suas famosas receitas. Talvez ajudando fosse a palavra com que eu descrevo isso agora, mas mamãe deve ter pensado muitas vezes na palavra atrapalhando. Lembro por exemplo, quando mais crescido, que a cada dois ou três pastéis que eu fritava, um era devorado tão logo saia da frigideira. Nessas horas, mamãe me olhava meio que me censurando meio que aceitando a travessura de um de seus quatro filhos prediletos. Mas como resistir àqueles pasteis de carne e de queijo que ela fazia?
          Pois bem, quando o Thio me ensinou a receita do bolo de cenoura, eu ainda não tinha idade para fritar pastéis e foi mais uma diversão que qualquer outra coisa. Ele descascou quatro cenouras e picou em pedaços que foram para o liquidificador junto a quatro ovos e uma xícara de óleo. Thio Therezo insistia em abrir ovo a ovo em uma tigela separada antes de jogá-lo no copo do liquidificador, é que se um estiver estragado, não se perde o resto dos produtos, ele justificava.
          Devido à minha pouca idade, minha função naquele dia foi o de pilotar o liquidificador. Foi o que fiz até essa mistura cenoura/ovos/óleo ficar bem triturada. A ela foram então adicionadas duas xícaras de açúcar, duas de farinha de trigo, uma colher de fermento em pó e, claro, uma pitada de sal.
          - Sabe, garoto, as duas medidas mais precisas da culinária são “uma pitada” e “a gosto”. As outras são meras referências – o Thio me dizia isso com o seu famoso sorriso irônico no rosto enquanto eu continuava a pilotar o liquidificador por mais um tempo. Fora essa essencial ajuda, eu prestava muita atenção nas palavras do Thio para tentar assimilar um pouco daquela sabedoria toda, tão inocente eu era naquela idade.
          Tudo misturado, os ingredientes viravam ao final uma massa que foi ao forno médio pelo tempo suficiente até passar no teste do palito. Enquanto esperávamos, uma crucial decisão nos atormentava. Qual cobertura fazer? Uma de chocolate ou a de limão? Enquanto a dúvida nos destruía por dentro, o Thio me ensinou a fazer uma e outra. Para a primeira, duzentos gramas de chocolate amargo derretidos em banho maria e acrescidos de duzentos ml de creme de leite (uma das caixinhas atuais). Misture bem ainda no banho maria até virar um creme homogêneo e, então, levar à geladeira. Essa cobertura tem que estar fria na hora de se colocar no topo do bolo, também frio.
          Diferente da outra cobertura, que tem que ser colocada com o bolo ainda quente para que, com o choque térmico, o açúcar endureça. Ingredientes? Um copo de açúcar, meio limão e umas quatro colheres de leite.
          - Mas Thio, assim talha! – olha eu, ainda pequeno, tentando mostrar sabedoria...
          - Talha sim, garoto, mas fica muito gostoso!
          Naquele primeiro dia, optamos pela cobertura de limão e hoje, para o quinquênio, o Thio e eu fizemos o bolo de cenoura com a cobertura de chocolate. Acho até que já aprendi direito a receita, mesmo não a fazendo tão frequentemente.
          Enquanto esperávamos o bolo assar, fizemos a mistura para a cobertura. Notei que o tal copo de açúcar não era bem um copo, foi bem mais, e o leite foi colocado meio que no improviso. O Thio percebeu o meu olhar de estranheza e disse.
          - Olha, garoto, culinária não é uma ciência exata. Culinária é que nem Direito, a gente tem a receita, ou a lei, mas não precisa segui-la exatamente, o comum é interpretar de acordo com o gosto e a conveniência do momento.
          O Thio sempre aproveitando para me ensinar coisas. Aliás, essa expressão tal coisa não é uma ciência exata eu tanto escutei no meu dia a dia que até hoje tenho dificuldades em encontrar tal ciência. Até parece uma ciência que não serve para nada, tão desqualificada ela é por essa expressão e pelas pessoas. Em todo o caso, quando olhei para o Thio naquele dia ele sorria da ironia feita e que eu só consegui perceber muito tempo depois.
          O que importa, nesses tempos duros de pandemias virais e vermiculares, é que um quinquênio já se foi desde que inaugurei meu blog e isso merece uma comemoração. Se irei completar um segundo quinquênio? Só o tempo dirá, mas hoje o que importa é o bolo de cenoura que fizemos, Thio Therezo e eu, para essa celebração.
          Servidos?






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