quinta-feira, 27 de maio de 2021

Fim do Mundo

 

          O Thio Therezo se exaltava ao contar suas peripécias ao redor do mundo, sempre provocado pela ironia descrente e crescente de meu pai. Minha mãe, sua irmã, o defendia sempre. Deixa ele contar, meu bem, ela falava para o meu pai em sua inglória tentativa de pacificação familiar.

          No almoço daquele domingo, ele se exaltou.

          Me respeitem... eu já fui ao fim do mundo... e voltei! Me respeitem!

          Ante ao silêncio constrangedor que se criou e à risadinha sarcástica de meu pai, eu, com meus nove anos completos, resolvi perguntar.

          E como é?

          Hã... o quê? Como é o que? a pergunta desconcertou meu tio.

          O fim do mundo... como ele é?

          Ah! Como ele é? Parece mais um campo de golfe... É! O fim do mundo é um imenso campo de golfe... ele respondeu com seu olhar distante e nostálgico.

          E comemos, em silêncio e satisfeitos cada um com seu próprio pensamento, a sobremesa que minha mãe tinha preparado.

 

São Paulo, 14.11.8

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Sevilhando

 



                                                               





quinta-feira, 13 de maio de 2021

História de amor na República de Hygina

           Encontraram-se os dois em um daqueles momentos iluminados da vida, em que trajetórias que até então nem se tocavam, agora estarão embaraçadas para sempre. Ele, aposentado, e ela, filha solteira.

          Trocaram olhares.

          Parque. Mesmo banco do parque meio que vazio numa tarde de uma terça-feira preguiçosa. Mesmo problema a ambos: como sacar o auxílio emergencial usando aquele aplicativo recém-lançado pelo governo federal. Assim se conheceram. Conversaram.

          Trocaram inexperiências.

          Mas, ao final, conseguiram. Almoçaram juntos gastando tudo o que tinham sacado. Comemoraram.

          Trocaram ideias e foram se conhecendo melhor e melhor.

Concordaram com o ministro em voga por aqueles dias: um absurdo filhos de porteiros cursarem faculdades; mais ainda, absurdo eles quererem viver muito, viver saudável, isso só atrapalha o pib. Um brinde, ao final, ao ministro que considera o crescimento do IDH uma péssima notícia. Tintin.

          Trocaram sorrisos nesse momento em que almoçavam sem máscaras.

          Trocaram ódios, o sentimento em moda desde o último golpe.

          Ainda bem que tiramos... começaram a falar em uníssono como se fosse o mantra necessário para a devida identificação dos pares. Riram da frase incompleta mas clara a todos.

          Trocaram toques de mãos, a do aposentado mais afoita que a da filha solteira.

          Mas a troca de beijos teria que esperar por conta do tal vírus chinês.

          Discutiram possibilidades, além do beijo com máscaras. Descartaram a cloroquina apesar de já terem defendido o seu uso em vários momentos em apoio ao representante oficial de tantos eleitores. Mas, bobos não eram...

          Trocaram reclamações de seus conselhos de classe. O das filhas solteiras, por exemplo, não se mexia para que seus filiados fossem considerados parte prioritária do grupo prioritário. O que custaria já que tantos se mobilizam nessa direção? ela argumentava.

          Dias se passaram e ele mencionou uma amiga da prima da vizinha que vendia vacinas a 600 reais a dose. Ansiosos, se renderam, não sem antes tentarem pechinchar, levar vantagem é a regra geral.

          Mal a agulha saía do braço e eles já se entregaram, ali mesmo, a um longo beijo de língua, sob o aplauso dos outros presentes. Viva a vacina, viva a ciência, viva a universidade. Não, aí já é demais, bando de baderneiros.

          Trocaram fluidos naquele mesmo dia.

          E a filha solteira aproveitou a calmaria pós-gozo para contar do filho de quatro anos que tinha tido com uma pessoa jurídica com quem vivera antes. Ele disse que gostava de crianças e ela se animou e nem percebeu os olhos deles brilhando. Para ela, uma nova família se formava.

          Juntaram os trapos. Ele veio com a aposentadoria compulsória de juiz comprovadamente corrupto e ela entrou com a polpuda pensão do finado pai general. Não se casaram, a pensão faria falta, ele entendeu sem reclamar.

          De tempos em tempos, trocam sopapos e acabam na delegacia, com direito a exame de corpo de delito e tudo. Mas dias se passam e tudo é esquecido, até mesmo o B.O., que é queimado em um ritual que se repetia e se repetia cada vez mais.

          Frequentemente, porém, trocam risos e gargalhadas. Esse país é muito divertido afinal de contas.

          Ele pensa em se candidatar a vereador nas próximas eleições e a única preocupação dela é quando tem que ir à academia e deixa o filho às sós em casa com o aposentado.

          De resto, tudo segue o script no eterno país das fardas e das togas.



quinta-feira, 6 de maio de 2021

Vinténs - VIII

 Meia Vida

          Gavetas vasculhadas, agressões verbais, ciúmes patológicos e doentios, controle diária das ações, quase delírios sistemáticos, desconfianças e acusações impertinentes, espalhamento de boatos e insinuações maldosas. Ao chegar ao seu final, ele percebeu finalmente que, em metade de sua vida, ele fora um mero joguete na mão de algumas mulheres.

          E na outra metade? Bom, a outra metade foi muito chata!

São Paulo, maio de 2012



Desânimo

          Cabeça baixa, passo lento, pensativa, ela demorou muito para perceber que um carro estacionara ao seu lado no meio fio. A porta se abriu, ela parou, uma mão a convidou para entrar. Ela, então, pode ver com clareza o rosto dele, rosto que sua mente não reconheceu como uma de suas imagens arquivadas. Mas ela estava tão cansada! E ele tão gentil e sorridente!

          Entrou no carro sem mover um só músculo de sua face. O silêncio só foi quebrado tempos depois quando eles já estavam bem longe da cidade.

São Paulo, 20/6/2009