Encontraram-se os dois em um daqueles momentos iluminados da vida, em que trajetórias que até então nem se tocavam, agora estarão embaraçadas para sempre. Ele, aposentado, e ela, filha solteira.
Trocaram olhares.
Parque. Mesmo banco do parque meio que vazio numa tarde de
uma terça-feira preguiçosa. Mesmo problema a ambos: como sacar o auxílio
emergencial usando aquele aplicativo recém-lançado pelo governo federal. Assim
se conheceram. Conversaram.
Trocaram inexperiências.
Mas, ao final, conseguiram. Almoçaram juntos gastando tudo
o que tinham sacado. Comemoraram.
Trocaram ideias e foram se conhecendo melhor e melhor.
Concordaram
com o ministro em voga por aqueles dias: um absurdo filhos de porteiros
cursarem faculdades; mais ainda, absurdo eles quererem viver muito, viver
saudável, isso só atrapalha o pib. Um brinde, ao final, ao ministro que
considera o crescimento do IDH uma péssima notícia. Tintin.
Trocaram sorrisos nesse momento em que almoçavam sem
máscaras.
Trocaram ódios, o sentimento em moda desde o último golpe.
Ainda bem que tiramos... começaram a falar em
uníssono como se fosse o mantra necessário para a devida identificação dos
pares. Riram da frase incompleta mas clara a todos.
Trocaram toques de mãos, a do aposentado mais afoita que a
da filha solteira.
Mas a troca de beijos teria que esperar por conta do tal
vírus chinês.
Discutiram possibilidades, além do beijo com máscaras.
Descartaram a cloroquina apesar de já terem defendido o seu uso em vários
momentos em apoio ao representante oficial de tantos eleitores. Mas, bobos não
eram...
Trocaram reclamações de seus conselhos de classe. O das
filhas solteiras, por exemplo, não se mexia para que seus filiados fossem
considerados parte prioritária do grupo prioritário. O que custaria já que
tantos se mobilizam nessa direção? ela argumentava.
Dias se passaram e ele mencionou uma amiga da prima da
vizinha que vendia vacinas a 600 reais a dose. Ansiosos, se renderam, não sem
antes tentarem pechinchar, levar vantagem é a regra geral.
Mal a agulha saía do braço e eles já se entregaram, ali
mesmo, a um longo beijo de língua, sob o aplauso dos outros presentes. Viva a
vacina, viva a ciência, viva a universidade. Não, aí já é demais, bando de
baderneiros.
Trocaram fluidos naquele mesmo dia.
E a filha solteira aproveitou a calmaria pós-gozo para
contar do filho de quatro anos que tinha tido com uma pessoa jurídica com quem
vivera antes. Ele disse que gostava de crianças e ela se animou e nem percebeu
os olhos deles brilhando. Para ela, uma nova família se formava.
Juntaram os trapos. Ele veio com a aposentadoria
compulsória de juiz comprovadamente corrupto e ela entrou com a polpuda pensão
do finado pai general. Não se casaram, a pensão faria falta, ele entendeu sem
reclamar.
De tempos em tempos, trocam sopapos e acabam na delegacia,
com direito a exame de corpo de delito e tudo. Mas dias se passam e tudo é
esquecido, até mesmo o B.O., que é queimado em um ritual que se repetia e se
repetia cada vez mais.
Frequentemente, porém, trocam risos e gargalhadas. Esse
país é muito divertido afinal de contas.
Ele pensa em se candidatar a vereador nas próximas eleições
e a única preocupação dela é quando tem que ir à academia e deixa o filho às
sós em casa com o aposentado.
De resto, tudo segue o script no eterno país das fardas e
das togas.
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