quinta-feira, 13 de maio de 2021

História de amor na República de Hygina

           Encontraram-se os dois em um daqueles momentos iluminados da vida, em que trajetórias que até então nem se tocavam, agora estarão embaraçadas para sempre. Ele, aposentado, e ela, filha solteira.

          Trocaram olhares.

          Parque. Mesmo banco do parque meio que vazio numa tarde de uma terça-feira preguiçosa. Mesmo problema a ambos: como sacar o auxílio emergencial usando aquele aplicativo recém-lançado pelo governo federal. Assim se conheceram. Conversaram.

          Trocaram inexperiências.

          Mas, ao final, conseguiram. Almoçaram juntos gastando tudo o que tinham sacado. Comemoraram.

          Trocaram ideias e foram se conhecendo melhor e melhor.

Concordaram com o ministro em voga por aqueles dias: um absurdo filhos de porteiros cursarem faculdades; mais ainda, absurdo eles quererem viver muito, viver saudável, isso só atrapalha o pib. Um brinde, ao final, ao ministro que considera o crescimento do IDH uma péssima notícia. Tintin.

          Trocaram sorrisos nesse momento em que almoçavam sem máscaras.

          Trocaram ódios, o sentimento em moda desde o último golpe.

          Ainda bem que tiramos... começaram a falar em uníssono como se fosse o mantra necessário para a devida identificação dos pares. Riram da frase incompleta mas clara a todos.

          Trocaram toques de mãos, a do aposentado mais afoita que a da filha solteira.

          Mas a troca de beijos teria que esperar por conta do tal vírus chinês.

          Discutiram possibilidades, além do beijo com máscaras. Descartaram a cloroquina apesar de já terem defendido o seu uso em vários momentos em apoio ao representante oficial de tantos eleitores. Mas, bobos não eram...

          Trocaram reclamações de seus conselhos de classe. O das filhas solteiras, por exemplo, não se mexia para que seus filiados fossem considerados parte prioritária do grupo prioritário. O que custaria já que tantos se mobilizam nessa direção? ela argumentava.

          Dias se passaram e ele mencionou uma amiga da prima da vizinha que vendia vacinas a 600 reais a dose. Ansiosos, se renderam, não sem antes tentarem pechinchar, levar vantagem é a regra geral.

          Mal a agulha saía do braço e eles já se entregaram, ali mesmo, a um longo beijo de língua, sob o aplauso dos outros presentes. Viva a vacina, viva a ciência, viva a universidade. Não, aí já é demais, bando de baderneiros.

          Trocaram fluidos naquele mesmo dia.

          E a filha solteira aproveitou a calmaria pós-gozo para contar do filho de quatro anos que tinha tido com uma pessoa jurídica com quem vivera antes. Ele disse que gostava de crianças e ela se animou e nem percebeu os olhos deles brilhando. Para ela, uma nova família se formava.

          Juntaram os trapos. Ele veio com a aposentadoria compulsória de juiz comprovadamente corrupto e ela entrou com a polpuda pensão do finado pai general. Não se casaram, a pensão faria falta, ele entendeu sem reclamar.

          De tempos em tempos, trocam sopapos e acabam na delegacia, com direito a exame de corpo de delito e tudo. Mas dias se passam e tudo é esquecido, até mesmo o B.O., que é queimado em um ritual que se repetia e se repetia cada vez mais.

          Frequentemente, porém, trocam risos e gargalhadas. Esse país é muito divertido afinal de contas.

          Ele pensa em se candidatar a vereador nas próximas eleições e a única preocupação dela é quando tem que ir à academia e deixa o filho às sós em casa com o aposentado.

          De resto, tudo segue o script no eterno país das fardas e das togas.



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