Prescrito...
quinta-feira, 27 de agosto de 2015
quinta-feira, 20 de agosto de 2015
O reino do óleo fervente.
Quando Thio Therezo relatou suas desventuras passadas naquele pequeno reino asiático por ocasião da condecoração, que por sinal não houve, por sua façanha de ter assistido a todas as possíveis trocas de guardas existentes nesse mundão de Deus, o que mais nos impressionou, éramos jovens e tudo nos impressionava tanto, foi quando ele mencionou o caldeirão de óleo fervente onde os frequentes golpistas daquele reino jogavam seus inimigos depostos do poder.
Thio Therezo contou-nos que, além de uma ininteligível religião politeísta, aquele reino, que fora por muito tempo uma das meras colônias inglesas, possuía duas características marcantes, arraigadas por milênios de tradição: o usual costume do golpe político e o tal caldeirão de óleo fervente.
Tranquilizou-nos o Thio ao assegurar que o óleo utilizado nessas horas possuía baixo teor de gordura trans, portanto muito mais saudável que um normal. Isso fora uma imposição de um grupo de ativistas que, até o final trágico do reino, buscou uma melhor qualidade de vida a depostos e golpistas, já que esses frequentes movimentos de troca de poder (tanto frequente quanto o da troca de guarda) eram inevitáveis.
Naquele reino, nos pouco mais que cinquenta anos de vida independente, ou um golpe estava sendo planejado ou um já estava em seu efetivo curso. Monarquistas, militares e republicanos alternavam-se no poder, esses últimos em deslavada desvantagem histórica.
Thio Therezo, um verdadeiro expert em reinos perdidos no meio de regiões montanhosas e florestais, como era bem o caso desse pequeno reino asiático, contou-nos então que sim, era uma tradição milenar, um ritual a que nenhum dos derrotados escapava, o terapêutico banho em óleo fervente. Contou-nos também, muito extasiado com isso, que os hábitos se incorporaram no dia a dia e, por isso, não era incomum ouvir-se nos botequins frases do tipo “o óleo ainda está frio”, “tá esquentando, tá esquentando...” ou ainda “já chegou ao ponto da fervura” para indicar, sem meias palavras ou maiores explicações, os vários estágios do golpe da vez.
Consta até que havia, mas Thio Therezo garante que isso é mera especulação de gente desocupada, um imenso caldeirão em uma das torres do palácio central com fogo fátuo para as chamadas “eventuais eventualidades” e que, em mais que cinquenta anos de existência, só em dois ou três momentos esse fogo foi apagado, depois de elaboradas e custosas negociações entre os vários grupos políticos, e o óleo chegou à temperatura que permitia, no máximo, uma corriqueira limpeza de pele.
Thio Therezo conta tudo isso, muitas vezes, com água nos olhos, parece que parentes distantes dele tinham imigrado a esse reino em busca de uma vida espiritualmente mais sã, mesmo conscientes de que um esforço sobrenatural fosse necessário para se entender em toda a profundidade a politeísta religião local. Pelo que se soube, em uma das reviravoltas todos eles tinham virado torresminho. Mas Thio Therezo se lembra bem de um deles, do capitão que o ajudou a fugir do reino naquela confusa e violenta noite da homenagem que não houve. Naquele dia, seus supostos familiares estariam no lado dos vencedores, coisa que, aparentemente, não voltou a suceder meros seis meses depois.
Acontece que um terremoto dizimou de forma inexorável aquele reino matando, sem exceção, todos os seus habitantes. Os poucos que sobreviveram, em um primeiro momento, ao abalo sísmico não conseguiram porém escapar aos caldeirões, muito deles clandestinos e em número maior do que o senso comum acharia possível, que vazaram seus óleos ferventes terminando assim a devastação iniciada pelo tremor de terra e que transformou o reino, com o passar do tempo, em um belo mas desabitado vale florido logo incorporado pela grande potência do leste, que atualmente o utiliza como polo turístico.
Thio Therezo conta-nos que, antes desse fim trágico, o reino passou por uma ligeira experiência republicana. Eleições livres foram realizadas em um ambiente de total liberdade de expressão com o apoio internacional e os dois principais candidatos disputaram, palmo a palmo, uma recém instituída presidência da república.
Mas, tradição é tradição, nem vinte e quatro horas passadas da proclamação dos resultados, o candidato derrotado começou a famosa campanha “aumente a fervura!” com passeatas pelas ruas principais da capital do reino e tudo o mais que fosse possível. Consta que esse candidato, na certeza de que seria eleito, tinha celebrado, par de horas antes do resultado oficial, com champagne uma vitória que não se concretizaria. Dizem as más línguas, mas Thio Therezo não acredita nisso, que ter feito esse papelão frente a seus correligionários foi o estopim que ele precisava para começar imediatamente a campanha pela deposição do recém eleito presidente.
Óleo fervente e champagne, vai saber, estavam no sangue dos habitantes daquele reino...
quinta-feira, 13 de agosto de 2015
Thio Therezo e a troca de guardas
Thio Therezo se gaba, e seguramente há inúmeras razões para tal, por ter presenciado todas as trocas de guardas reais existentes no mundo. Desde as mais tradicionais até as mais bizarras releituras modernas, não há quem possa reclamar da falta delas.
Ele sempre achou que existia um sentido muito especial na existência, e insistência, dessas trocas de guardas: algo assim como uma perfeita metáfora para o nosso quotidiano, para a vida que vivemos, para a sucessão das gerações. Ele tentou nos explicar essa sua teoria mas nós, jovens que éramos, não conseguíamos perceber seus argumentos em todas a suas necessárias sutilezas. Agitado que era, logo desistiu ao ver nossos olhares ansiosos e confusos. Paciência conosco nunca foi seu forte, o que há de se fazer...
Conta ele que, um dia, ao presenciar a troca de guarda de um pequeno reino asiático, ele foi reconhecido por um guarda que fazia serviços terceirizados nessa área de trocas e que já o tinha visto em outra ocasião e lugar. Nada mais natural reconhecer o Thio Therezo, mesmo em meio a uma multidão, quem já o viu sabe muito bem o que quero dizer com isso.
Pois bem, sem mais poréns, os dois estabeleceram conversas e, no meio dessas, Thio Therezo confidenciou que aquela troca era a última que faltava presenciar em seu extenso currículo, já as tinha visto em todos os diversos continentes e em todos os possíveis países e nos mais variados e improváveis reinos, o que muito impressionou o empregado terceirizado, esse sim com longa experiência no ramo, mesmo que do outro lado.
Logo, mas sem grandes alardes, a notícia da presença de tão ilustre espectador e de sua improvável façanha chegou aos ouvidos reais e o Thio Therezo foi convidado para um monárquico jantar naquela mesma noite no qual ele seria devida e justamente homenageado.
Ao lado dos feitos de outros dois súditos que também seriam homenageados, um por sua capacidade de cantar todas as cantatas de Bach de trás para frente e outro por se gabar por ter feito um jejum completo de 87 dias, a todos ficava claro qual seria o principal homenageado da noite e isso ficou especialmente notável quando o nosso Thio adentrou o grande salão real, perfeita imitação de uma famosa sala de espelhos de outro continente, tantas palmas se ouviram nesse momento.
Nem é preciso dizer que o Thio trajava a sua imponente roupa de gala cheia de medalhas e honrarias. Tantas, que o jovem príncipe local se aborreceu ao notar que o seu próprio traje ficara em segundo plano por sua escancarada simplicidade. Mas, isso, é outra estória, que cada um cultive suas invejas em paz.
Porém, mal o jantar começara e nenhuma das homenagens tinha ainda ocorrido quando irrompeu um golpe militar que destituiu o ultimo dos reis daqueles lados da Ásia.
Thio Therezo só conseguiu escapar da imersão em óleo fervente que era a exemplar e usual punição que os monarcas recebiam naquele país nas frequentes rebeliões militares, por conta de seu, longínquo e inesperado há de se convir, parentesco com um dos capitães que patrocinaram o golpe e, assim, conseguiu fugir do palácio, vestido de padre. Por baixo, sua famosa roupa de gala, que ele se recusou a deixá-la para trás, ainda mais que, na confusão que se estabeleceu, ele conseguiu pegar a medalha destinada a ele na homenagem que não houve e logo percebeu que ela harmoniosamente complementava o seu já impressionante traje.
Tal disfarce, providencial que foi, deve ter chamado muito a atenção em todo o confuso trajeto até o aeroporto que estava prestes a fechar por ter se passado em um país em que cerca de noventa e cinco por cento da população professava uma obscura religião politeísta. O ponto é que salvaram-se todos os inocentes naquele bizarro evento de rebelião. Por sua vez, a troca de guarda daquele dia seria a última do pequeno reino asiático, pois os rebeldes, esquecendo-se do profundo significado metafórico embutido em tal ritual, decretaram, de forma irrevogável, o seu fim.
Mas Thio Therezo se gaba sempre de tê-las presenciado todas, inclusive algumas que já nem existem mais.
quinta-feira, 6 de agosto de 2015
Cadê a bandeirinha?
E aí você está na frente do Palácio de Buckingham, troca da guarda já terminada mas ainda aquele amontoado de gente zanzando prá lá e prá cá...
E aí você tem uma ideia genial e inédita: tirar uma foto sua com o tal palácio ao fundo.
E aí você olha em volta, identifica alguém que estava de passagem e pede a ele para sacar essa foto, passa-lhe a câmera fotográfica, que você ainda é desse tempo, mostra o botãozinho que esse alguém tem que apertar e coisa e tal, se posiciona, sorri como turista, imaginando a bela foto que irá para o face...
E aí ele conta até três, faz uma careta e... pronto!
E aí ele devolve a câmera e você rapidamente vai olhar a foto... Curiosidade!
Desastre, verdadeiro desastre... cortou metade da cabeça, os pés nem de longe se vê, só meia canela e olhe lá, totalmente descentralizada, que coisa, palácio meio torto ao fundo e...
Cadê a bandeirinha???? Cadê a bandeirinha????
Para tudo há um limite! E você não pode deixar que isso fique assim e, antes que o elemento consiga escapar, não resta outra coisa que chamá-lo de novo e fazê-lo entender a porcaria de foto que fez.
E aí você mostra a ele a foto, se é que é possível chamar isso de foto... e grita para que todos naquela praça escutem.
“Veja só o que você aprontou com a minha câmera!!! Isso lá é utilizar bem os pixels que eu coloquei à sua disposição em total confiança?” Você continua, sem dar tempo de qualquer reação: “vem cá, cara, precisa centralizar isso, onde já se viu? Onde é que está o seu senso estético??? Ninguém nunca te ensinou isso?”
E aí você mostra a bandeirinha bem lá no topo do palácio.
“Você vê a bandeirinha lá em cima?” E o elemento, um tanto quanto assustado, responde que sim.
“E aqui na foto? Você vê a bandeirinha??? Por um acaso, você consegue ver a bandeirinha aqui nessa foto? Não minta... não minta que é pior...”
Antes que o elemento se refaça do susto e consiga responder, você completa, pois é preciso manter o domínio da situação.
“Vou apagar essa porcaria de foto que você tirou e vamos começar tudo de novo”. E aí, você apaga a foto bem na frente dele para que não reste testemunho que seja, mesmo que virtual, desse desastre estético... É preciso mostrar autoridade nessas horas que senão tudo descamba de vez, e, se descambar, um passo estaria de arruinar por completo suas longamente planejadas férias...
Vontade de dar um cascudo nesse cara, mas aí você se controla, nem é para tanto!
“E agora, vamos recomeçar... não quero releituras nem pós-modernismos, apenas uma foto simples minha com o palácio ao fundo... Centraliza, não corte as pernas, mostre todo o palácio, inclua a bandeirinha...” você vai instruindo o elemento assustado mas atento. “Um passo para trás que fica melhor...”
Ele, tremendo mas obediente, saca mais uma foto, deixa a sua câmera no chão sem sequer checar o resultado e sai correndo sob os olhares de muitos que por lá presenciaram toda a cena.
Mas qual-o-quê! Caso sem solução, a segunda foto saiu ainda pior. E ainda mais, desfocada... o elemento resolveu tremer na hora de clicar!!!
E aí, você olha ao redor e parece não encontrar ninguém disposto ou confiável o suficiente para tirar uma nova foto... uma que inclua a bandeirinha!
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