quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Da agulha de Assis e de outras irrelevâncias...



            Por vezes, me perguntam como sei tantas estórias do Thio Therezo. Na maioria das vezes, ele me conta, apesar de ser, em geral, um cara tímido e quieto. Minha mãe, sua irmã, disse-lhe uma vez, após uma daquelas intermináveis reuniões familiares, que se ele contasse todas as suas desventuras deixaria rubros muitos dos distantes parentes falastrões e pretensiosos que só nos visitam para contar vantagens. Em resposta, ele só sorriu prá mamãe, prefere o silêncio imposto por sua extrema timidez.
            Mas, por vezes, ele conta suas aventuras, por vezes as descobrimos sem ele se dar conta, por vezes admiradores ou detratores as espalham por aí. E, por vezes, coincidências acontecem, simplesmente assim.
            Há pouco mais de um mês, eu participava de um congresso em Diamantina quando um colega veio me perguntar sobre um outro congresso que se realizaria em Roma em novembro próximo. Queria saber detalhes pois um de seus alunos tinha interesse em ir mas achara o site do congresso um tanto quanto estranho. Estranhei eu a pergunta e disse que não sabia nada a respeito. “Mas como?” o colega perguntou, “você está no comitê científico do congresso e não sabe nada?” E foi aí que eu soube que estava em um Comitê Científico de um congresso que se realizaria em Roma, três meses distante daquele dia em que conversávamos, simples como assim. No dia seguinte, o colega me enviou o link ao site do congresso que mencionara e eu estava lá mesmo, nome completo como convém. Até onde pude averiguar, ninguém de meu relacionamento tem qualquer informação a respeito de tal encontro...
            A menos que seja um pequeno sinal do Alzheimer que talvez me atropele um dia, não me recordo de ter em momento algum concordado em participar de qualquer comitê desse congresso ou sequer ter sabido de sua existência antes daquela conversa com meu colega. E não é que me cause surpresa fazer um repetitivo papel de agulha de Assis, já o cumpri inúmeras vezes, aqui e acolá e mais além também, mas raramente à revelia como foi nesse caso. Além do mais, devido às minhas características, tenho a certeza de que o farei ainda muitas vezes no futuro. Sensação de agulha de Assis, paciência, paciência...
            Mas, por vezes, as estórias do Thio são meros relatos de coisas que vivenciamos juntos. É o que aconteceu quando de seu inconformismo sobre a tal sensação térmica. Ele, dia seguinte àquele do episódio frente à TV, confessou que estava com sensação térmica de uns 39 graus por conta de uma gripe enquanto que a temperatura da sala estava mais para o frio de agosto, e que talvez por isso tenha se exaltado tanto ao assistir ao telejornal. E aí me lembrei de um janeiro, anos por demais passados, em que estava fazendo uma visita científica à Paris VII. Começo de noite e fui jantar com um par de colegas da área da lógica em um daqueles restaurantezinhos que repelem turistas mas onde se encontra boa e barata comida. Ia o frio típico da época, mas fomos a pé, tiritantes mas corajosos. Horas depois, na volta a caminho do meu flat, já aquecido pela comida e com o vinho ainda a explorar as mais escondidas veias do corpo, nem senti tanto assim a temperatura que tinha caído mais um pouco naquele período. Ao passar por um morador de rua, percebi que a sua sensação térmica era muito diferente da minha. Difícil não se lembrar disso quando alguém tenta estabelecer a sensação térmica como universal e no mesmo patamar de exatidão que a temperatura do termômetro.
            E, por falar em sensações, como não mencionar o comentário do colega Bianconi ao post “Televisivas” de par de semanas atrás? Nessas épocas de eleições, ouvimos muito o tal de tantos porcento para um determinado candidato com o tal de três para cima e três para baixo e, ainda, novidade mais recente, o tal de 95% de confiabilidade. Não tivemos ainda a experiência de ouvir isso perto do Thio, mas lembro do meu pai imitando a voz do locutor, ironicamente como ele gostava: com dois para cima e dois para baixo (ironia essa que gostaria de ter herdado dele...).
            Se o próximo domingo à noite nos presentear com a notícia de que o segundo turno da eleição para prefeito em São Paulo será entre o Major Olímpio e o Altino, já estaremos certos de algumas coisas. Além de uma divertida mas encarniçada campanha final, a culpa será dos tais 5% de inconfiabilidade das pesquisas. Não há como errar...


AGENDA. No dia 27 de outubro, a partir das 14 horas, teremos uma conversa no Instituto de Estudos Avançados da USP sobre "Literatura e Matemática" com a presença de Jacques Fux, Marco Lucchesi e Nilson Machado e sob a minha mediação. Há um número limitado de vagas para assistir in loco, mas o evento será também transmitido ao vivo. Mais informações aqui.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Sem provas, convicções...


          Quando recebeu o número inaugural daquela revista internacional, o Thio Therezo primeiro achou que fosse brincadeira. A revista chamava-se “International Journal of Belief” (IJB) e o seu lema era “no proofs, just belief” que, salvo algum erro crasso de tradução seria algo como “sem provas, apenas convicções”.
          O primeiro artigo da tal revista era sobre um produto químico recém desenvolvido que, o autor estava convicto disso, curava todos os tipos de câncer e, de quebra, como efeito colateral, evitava também o surgimento de unhas encravadas em quem o consumisse diariamente.
          Já no segundo artigo, o autor, em uma simples frase, estabelecia a sua convicção de que a Conjectura de Goldbach era correta. Enunciada 274 anos atrás em uma troca de cartas entre os matemáticos Goldbach e Euler, a veracidade dessa afirmação atraía a atenção de inúmeros pesquisadores. Agora estava convictamente (pelo autor) resolvida. Provas? Ora, bastam as convicções... 
          No meio desse emaranhado de artigos, que mais parecia uma salada russa, havia um que chamou particularmente a atenção do Thio Therezo. Um juiz-promotor que mora em uma dessas republiquetas perdidas nesse mundão de deus descrevia como ele condenara um opositor a partir da convicção de certas delações de notórios bandidos, mas sem a necessidade de provas. Não que isso tenha sido novidade naquela republiqueta, isso o Thio Therezo bem sabia, mas o que chamou a sua atenção foi a menção à “Teoria do Domínio do Desejo” como base de sua argumentação. Essa teoria fora desenvolvida pelo Thio mas, sabemos, nada tinha a ver com a ciência jurídica. Tinha, sim, mais a ver com teorias psicológicas como foi finalmente esclarecido em uma concorrida seção de entrevistas dada pelo Thio, para alívio dos pesquisadores do idepê de Brasília que se incomodavam com qualquer menção de falta de rigor em decisões que, a vista de muitos, eram polêmicas. 
           O Thio escreveu então uma carta aos editores da revista, queria nada a ver com tal narrativa criada pelo promotor-juiz que morava naquela republiqueta. Já lhe bastavam as encrencas que o cercavam no dia a dia.
           Mas aí, a surpresa. Ao olhar o corpo de editores da IJB viu que o seu nome lá constava. Como assim? Nunca me associei a esse pessoal, pensou intranquilo nosso tranquilo Thio. 
          Mais do que depressa escreveu um e-mail à revista em que, além de enfatizar que a “Teoria do Domínio do Desejo” nada tinha a ver com a “Teoria do Domínio do Fato” muito em voga em outros tempos e muito menos com conclusões jurídicas forçadas pelas conveniências, exigia principalmente que o seu nome fosse retirado do tal corpo editorial. 
          Ao longo de um par de semanas trocaram e-mails em um decrescente tom de formalidades que eram substituídas por palavras cada vez mais rudes. Os editores, ou responsáveis, pela revista argumentavam que estavam convictos de que o nome do Thio daria uma inigualável reputação à publicação. Ao que o Thio retrucava que nunca havia autorizado a inclusão de seu nome como editor dessa revista, associado que fosse, principalmente por não concordar com a sua, a seu ver, estranha filosofia. O Thio insistia no espírito que rege um autêntico estado de direito: a inocência presumida.
          O Thio, ao mencionar que não haviam provas de que ele tinha aceito participar do corpo editorial da revista, recebeu um último e-mail, irônico para alguns, que dizia que isso estava inteiramente coerente com o lema da revista: “sem provas, apenas convicções”. E que, para eles, a convicção bastava e, por isso, o nome do Thio permaneceria como um dos editores associados.
          Mas isso não durou muito, pois nem segundo número apareceu, e o Thio pode dormir sossegado, é certo que algum estrago tinha sido feito em sua reputação mas, ao menos, não haveria continuidade. Depois se soube que uma grande indústria farmacêutica patrocinara a revista, pois pretendia comercializar o produto químico que curava o câncer. Com a polêmica causada por essa substância que, apesar de supostamente também prevenir a unha encravada, trouxe reações alérgicas violentíssimas a seus consumidores, levando muitos a dolorosas e insanas mortes por sufocação ou derretimento de orgãos. Sem dinheiro, acabou-se o sonho da promissora revista.
          Claro é, tudo isso são convicções, pois provas, não as há... 

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Televisivas


            Thio Therezo chegou-se a nós, estávamos em frente à TV. De repente, ele pergunta:
            “Quem é essa tal de Bruna Marquezine que tanto falam aí?”
            “Ô, Thio... é a namorada do Neymar...
            “Ah!”
            Um silêncio, dele e nosso, mas não da TV, dois minutos e ele dispara:
            “E esse... Neymar... conheço?

****
           
            Mas o Thio até que tentou, ficou lá conosco assistindo o jornal, quieto. Mas aí chegou a previsão do tempo e ele não se aguentou.
            “Foi isso que eu ouvi?” ele perguntou. “Me confirmem, ela disse isso mesmo?”
            “Disse o que, Thio?”
            “Se ouvi direito, ela disse que a temperatura amanhã será de 25 graus mas com sensação térmica de 30...”
            “É... acho que foi... 25 com sensação térmica de 30...”
            “Mas que baboseira é essa?” o Thio estava indignado... “Sensação térmica... sensação térmica... o que isso significa?”
            Estávamos confusos com a dúvida do Thio...
            “Daqui a pouco ela vai desembestar a dizer que a umidade relativa do ar será de 60% com... digamos... sensação hídrica de 55%... quer ver?”
            Mas ela não disse, a jovem da previsão do tempo não disse coisa que sequer se assemelhasse com isso... Mas o Thio não se deu por vencido.
            “É baboseira o que ouvimos... mas... vejamos... com sensação auditiva de ciência... ou com sensação auditiva de informação... sensação auditiva de bom senso...”
            Ficamos sem resposta ao Thio  que continuava indignado.
            “Olha...” o Thio chamou nossa atenção às imagens que apareciam na TV...” agora mostram balas de borrachas e sprays de pimenta perseguindo e machucando pessoas... mas, é claro, com uma sensação visual de... de... de normalidade democrática...” e depois completou “...ou será que a minha sensação olfativa anda pessimista demais?” Levantou-se e foi em direção à cozinha.
            “Quer saber?” Ele disse colocando a cabeça para fora da cozinha. “Vou comer uma fatia de queijo prato e beber um copo d’água... mas com sensação degustativa de queijo brie com Sauvignon Blanc... Bah! Sensação térmica...”

            É, às vezes assistir TV com o Thio Therezo pode ser uma experiência e tanto... 

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

O passaporte verde.


     
      Nem faz muito tempo, li em algum lugar que nosso passaporte iria mudar novamente, introduziriam novos recursos de segurança, aumentariam o número de folhas (pra que, não sei, visto que se carimba cada vez menos por ai e por aqui também...). Vai saber, minha relação com o passaporte mudou de vez quando ele adquiriu, sei lá por que, essa coloração azul e começou a incorporar esses recursos de segurança.
Gostava de meu passaporte verde de antigamente, vez ou outra eu os pego para olhar. Já passei por sete passaportes, cinco verdinhos (não tirem conclusões precipitadas, é que eu comecei a tê-los muito cedo...) e, deles todos, o segundo e o terceiro são os que mais me agradam, tão coloridos que estão, e pouco espaço sobra para carimbo que fosse. Acho que algo mudou nesses anos todos por conta dessa troca de cor e o passaporte azul nos torna mais comum nesse mundão. Justo ou não, é o que é.
Lembro de alguns casos que vivi por conta daquele passaporte que diferenciava. Desde o dia em que fui, em Paris, trocar dinheiro em um banco (acho que era um cheque de viagens; sim, crianças isso já existiu...). Como não falava muito bem francês (e nem hoje eu falo), fui para o inglês e o atendente do caixa me respondia em francês como se não estivesse me entendendo de forma alguma. Insisti e apresentei meu passaporte verdinho. Meio a contragosto, ele abriu e viu que eu era brasileiro, sorriu (os passarinhos começaram a cantar em volta, as flores se abriram, música e dança ao redor...) falou algo a respeito dos brasileiros, de nossa alegria, e consegui fazer a troca, tudo em inglês, que ele falava muito bem. E ainda ganhei um “happy stay in Paris...” de cortesia.
Outras duas estórias nem são assim tão inofensivas, e sei lá se interessantes, mas vamos lá...
Vivi quatro anos na Inglaterra e ia frequentemente à Irlanda, à época namorava uma brasileira que lá morava. Eram os tempos do IRA, dos atentados terroristas, da guerra desleal de ambos os lados, mas também das manifestações separatistas pacíficas mas fortemente reprimidas. Entendia pouco o que realmente se passava, tanta coisa pra aprender em quatro anos.  Tempão faz, já suficiente para que a minha barba, agora branca, tivesse ainda uma coloração meio avermelhada, um perfeito irlandês, na visão dos ingleses. Imagina agora eu descendo, em Liverpool, do ferry que me trazia direto de Dublin e passando por um corredor de policiais. Eles escolhiam “aleatoriamente” quem deveria parar para mostrar documentos. E quem mais do que um “irlandês” com barba mal cuidada (a barba branca agora é mais cuidada sim senhor...) e pinta de terrorista? Eu, é claro! Toda vez, eu era parado, mas sabia que bastava mostrar o passaporte verde para ser liberado em seguida (melhor que o documento de residência que também trazia comigo). Certo é que eles estavam armados, mas nada se comparado a outra experiência na Irlanda.
Tínhamos, ela e eu, alugado um carro para percorrer o interior do país. Cada lugar tem o seu mistério, e o interior da Irlanda seguramente o tem. Montanhas, estradinhas, B&B perdidos no meio do nada, aquela cor de céu que só os que têm tempo a perder sabem apreciar, aquelas muretinhas que não impedem nada de passar de um lado a outro. As pessoas, os irlandeses...
Não era a primeira vez que alugávamos um carro para tal (e espero voltar lá, sim, sem grande alarde que senão vira uma Disneylândia e aí perde a graça). Mas era a primeira vez que íamos em direção ao norte. Memória fraca, não lembro o nome da cidade que era nossa meta, lá em cima no cantinho esquerdo do retângulo que é a Irlanda. Poderíamos contornar a Irlanda do Norte ou, caminho mais curto, cruzá-la por meras dezenas de quilómetros. Decidimos pela segunda possibilidade.
Ao chegar à fronteira, fomos parados, cercados, abri o vidro do carro, e um cara do exército apontou a metralhadora para mim (ouvi o click do destravamento da arma) e pediu nossos documentos. Calmamente, apresentei documentos do carro e passaportes. O verde, o brasileiro. Precisa dizer que ele, assim que olhou, virou a arma para lá, travou-a e sorriu? A tensão se desfazia, o verdinho mais uma vez abria sorrisos (não digo que é o único que faz isso, mas certamente, naquela época, ainda fazia...). E eu contabilizo essa como sendo a única vez em que tive uma arma apontada para mim, em situação de disparo.
Falando em Irlanda, estava lá em Dublin assistindo o jogo de futebol em que a Irlanda ganhou do Brasil pela primeira vez na vida. Mas a pequena e ruidosa torcida brasileira foi, desde o início (e ainda mais ao final quando nossa derrota ficou clara), tratada com carinho, fomos fotografados e paparicados, até um pub houve para a conjunta celebração. Dos hooligans e das piadas, fomos poupados.
Vejo o arco-íris nos carimbos de meu passaporte verdinho, que visitou a Polônia um ano antes da abertura das fronteiras, que atravessou de trem a Alemanha Oriental visando Berlin (e na fronteira fomos retirados do trem para a vistoria, frio intenso no meio da noite, até assentos foram retirados de seus lugares à procura de imigrantes ilegais). Berlin então apareceu-me naquele momento em que ainda não é dia, mas a madrugada já se foi, trem entrando lentamente na estação, tum-tum, tum-tum... imagens e sons que não me esquecem. O Checkpoint Charlie, a ida a Budapest em outro momento... Depois o muro caiu, mas tenho lá todos aqueles carimbos estampados. A China fecha, acho, essa geração de passaportes verdinhos...
           Talvez preferisse não ter todos esses carimbos, fronteiras livres por que não?, mas lá estão eles indeléveis, coloridos e eu não abro mão, nem em troca de um passaporte com zilhões de itens de segurança... Ao passar atualmente por aquelas máquinas no aeroporto, imagino um carimbo virtual que nunca poderei recordar realmente, as páginas solitariamente quase vazias. No azul, restam os sempre presentes vistos para o Canadá e os EUA, inevitáveis que brasileiro nunca será oficialmente cidadão do mundo...

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Candles

 [[esse conto foi primeiramente publicado em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", 1996]]




           Ela se abaixou pra acender a vela. Pela curva de sua camiseta, pude ver os seus belos seios. Já os tinha visto, certamente, e já tínhamos feito amor. Longamente. Na primeira vez estávamos bêbados e ansiosos. Um longo flerte se acabava naquele dia e começava algo confuso que eu nunca soube definir direito. Confuso e gostoso ao mesmo tempo.
            Ela se abaixou para fazer um cigarro. Pela curva de sua boca pude ver que sorria. Um sorriso maroto, todo seu, que não saberia descrever. Em alguns dias, naqueles dias difíceis, eu o interpretava como deboche. Em outros, cumplicidade, sei lá. Tínhamos tantos segredos em comum.
            Ela se abaixou para trocar a fita do gravador. Pela curva que seu braço fez ao longo do ar, convenci-me da exatidão de seus movimentos. Nada poético sobrava quando o movimento se findava. Cada gesto com seu específico sentido, função, significado. E isto, estranho, contrastava em muito com a flexibilidade de seu ser, de suas ideias. Contrastava em muito com a imagem que eu ainda tenho dela.
            Ela olhou longe, através de mim, enquanto escutava o Je ne regrette rien, da Piaf. Pelas curvas que a fita agora faz no gravador, percebo que ela olha o passado, longamente. Os olhos quase se mareiam, mas ela sorri.
            Ela se abaixou para pegar o copo com vinho branco que a esperava quietamente num canto. Pela curva em sua testa agora percebo que quer me dizer algo. Talvez algo doloroso. Talvez não. De qualquer modo faz tempo que me preparo para escutar isso. Mas não hoje, não quero escutar isso hoje.
            Ela levantou o copo em sinal de brinde, sorriu e pela curva que seus olhos azuis fazem, quando me olham, posso ver que não será hoje que ela dirá o que quer me dizer faz algum tempo (e que eu sei que dirá algum dia e que eu não quero escutar). Eu não a ajudo em nada para essa decisão.
            Levantou-se e foi ver a madrugada pela janela embaçada. Pelas curvas de seu corpo percebi que definitivamente hoje não é o dia para conversarmos. Em vez disso, fizemos amor longa e amorosamente, vigiados apenas pela vela e pelas curvas que sua luz produz naquelas paredes amareladas. Um estranho silêncio seguiu. Mas ainda uma troca de carinhos, aqueles próprios para estas horas. A música já tinha terminado há muito.
            Pela curva da fumaça da vela pude ver que lentamente esta se acabava. Ela se abaixou para observar a vela se acabar. Pelas curvas que a proximidade da vela produziu em seu rosto pude perceber que também a noite se acabava. E não só a vela e não só a noite, com certeza.
            Mas foi com ela que aprendi a percorrer as noites à luz de velas, enfrentando os fantasmas e respeitando-os. E também a escrever de noite apesar deles, ou por causa deles. Escrever virado para a nascente, que é de onde vem a energia necessária.