quinta-feira, 8 de setembro de 2016

O passaporte verde.


     
      Nem faz muito tempo, li em algum lugar que nosso passaporte iria mudar novamente, introduziriam novos recursos de segurança, aumentariam o número de folhas (pra que, não sei, visto que se carimba cada vez menos por ai e por aqui também...). Vai saber, minha relação com o passaporte mudou de vez quando ele adquiriu, sei lá por que, essa coloração azul e começou a incorporar esses recursos de segurança.
Gostava de meu passaporte verde de antigamente, vez ou outra eu os pego para olhar. Já passei por sete passaportes, cinco verdinhos (não tirem conclusões precipitadas, é que eu comecei a tê-los muito cedo...) e, deles todos, o segundo e o terceiro são os que mais me agradam, tão coloridos que estão, e pouco espaço sobra para carimbo que fosse. Acho que algo mudou nesses anos todos por conta dessa troca de cor e o passaporte azul nos torna mais comum nesse mundão. Justo ou não, é o que é.
Lembro de alguns casos que vivi por conta daquele passaporte que diferenciava. Desde o dia em que fui, em Paris, trocar dinheiro em um banco (acho que era um cheque de viagens; sim, crianças isso já existiu...). Como não falava muito bem francês (e nem hoje eu falo), fui para o inglês e o atendente do caixa me respondia em francês como se não estivesse me entendendo de forma alguma. Insisti e apresentei meu passaporte verdinho. Meio a contragosto, ele abriu e viu que eu era brasileiro, sorriu (os passarinhos começaram a cantar em volta, as flores se abriram, música e dança ao redor...) falou algo a respeito dos brasileiros, de nossa alegria, e consegui fazer a troca, tudo em inglês, que ele falava muito bem. E ainda ganhei um “happy stay in Paris...” de cortesia.
Outras duas estórias nem são assim tão inofensivas, e sei lá se interessantes, mas vamos lá...
Vivi quatro anos na Inglaterra e ia frequentemente à Irlanda, à época namorava uma brasileira que lá morava. Eram os tempos do IRA, dos atentados terroristas, da guerra desleal de ambos os lados, mas também das manifestações separatistas pacíficas mas fortemente reprimidas. Entendia pouco o que realmente se passava, tanta coisa pra aprender em quatro anos.  Tempão faz, já suficiente para que a minha barba, agora branca, tivesse ainda uma coloração meio avermelhada, um perfeito irlandês, na visão dos ingleses. Imagina agora eu descendo, em Liverpool, do ferry que me trazia direto de Dublin e passando por um corredor de policiais. Eles escolhiam “aleatoriamente” quem deveria parar para mostrar documentos. E quem mais do que um “irlandês” com barba mal cuidada (a barba branca agora é mais cuidada sim senhor...) e pinta de terrorista? Eu, é claro! Toda vez, eu era parado, mas sabia que bastava mostrar o passaporte verde para ser liberado em seguida (melhor que o documento de residência que também trazia comigo). Certo é que eles estavam armados, mas nada se comparado a outra experiência na Irlanda.
Tínhamos, ela e eu, alugado um carro para percorrer o interior do país. Cada lugar tem o seu mistério, e o interior da Irlanda seguramente o tem. Montanhas, estradinhas, B&B perdidos no meio do nada, aquela cor de céu que só os que têm tempo a perder sabem apreciar, aquelas muretinhas que não impedem nada de passar de um lado a outro. As pessoas, os irlandeses...
Não era a primeira vez que alugávamos um carro para tal (e espero voltar lá, sim, sem grande alarde que senão vira uma Disneylândia e aí perde a graça). Mas era a primeira vez que íamos em direção ao norte. Memória fraca, não lembro o nome da cidade que era nossa meta, lá em cima no cantinho esquerdo do retângulo que é a Irlanda. Poderíamos contornar a Irlanda do Norte ou, caminho mais curto, cruzá-la por meras dezenas de quilómetros. Decidimos pela segunda possibilidade.
Ao chegar à fronteira, fomos parados, cercados, abri o vidro do carro, e um cara do exército apontou a metralhadora para mim (ouvi o click do destravamento da arma) e pediu nossos documentos. Calmamente, apresentei documentos do carro e passaportes. O verde, o brasileiro. Precisa dizer que ele, assim que olhou, virou a arma para lá, travou-a e sorriu? A tensão se desfazia, o verdinho mais uma vez abria sorrisos (não digo que é o único que faz isso, mas certamente, naquela época, ainda fazia...). E eu contabilizo essa como sendo a única vez em que tive uma arma apontada para mim, em situação de disparo.
Falando em Irlanda, estava lá em Dublin assistindo o jogo de futebol em que a Irlanda ganhou do Brasil pela primeira vez na vida. Mas a pequena e ruidosa torcida brasileira foi, desde o início (e ainda mais ao final quando nossa derrota ficou clara), tratada com carinho, fomos fotografados e paparicados, até um pub houve para a conjunta celebração. Dos hooligans e das piadas, fomos poupados.
Vejo o arco-íris nos carimbos de meu passaporte verdinho, que visitou a Polônia um ano antes da abertura das fronteiras, que atravessou de trem a Alemanha Oriental visando Berlin (e na fronteira fomos retirados do trem para a vistoria, frio intenso no meio da noite, até assentos foram retirados de seus lugares à procura de imigrantes ilegais). Berlin então apareceu-me naquele momento em que ainda não é dia, mas a madrugada já se foi, trem entrando lentamente na estação, tum-tum, tum-tum... imagens e sons que não me esquecem. O Checkpoint Charlie, a ida a Budapest em outro momento... Depois o muro caiu, mas tenho lá todos aqueles carimbos estampados. A China fecha, acho, essa geração de passaportes verdinhos...
           Talvez preferisse não ter todos esses carimbos, fronteiras livres por que não?, mas lá estão eles indeléveis, coloridos e eu não abro mão, nem em troca de um passaporte com zilhões de itens de segurança... Ao passar atualmente por aquelas máquinas no aeroporto, imagino um carimbo virtual que nunca poderei recordar realmente, as páginas solitariamente quase vazias. No azul, restam os sempre presentes vistos para o Canadá e os EUA, inevitáveis que brasileiro nunca será oficialmente cidadão do mundo...

Um comentário:

  1. Ótima narrativa!! E adorei o passaporte verdinho, nunca pensei assim. E nunca me importei com as alterações, mas ao ler seu conto, que vivi muitas das descrições, me encantei com o passaporte verde descrito por vc!
    Vou ajudar um pouco...a cidade é Donegal, onde "acaba" A Irlanda.
    Vou deixar uma sugestão, escreva outro conto com os acontecimentos de Nápoles e Porto Covo. Nos dois locais você foi considerado um inglês e o verdinho entrou em ação!! Bj

    ResponderExcluir