quinta-feira, 29 de junho de 2017

doidejulho - honoris causa

            Faz tempo isso, mas todos nós nos lembramos bem do desconforto do Thio Therezo ao receber o seu primeiro título, e foram tantos depois, de doutor honoris causa. Não que essa concessão não tivesse sido merecida, e todos sabemos que sim o fora, a questão era outra, definitivamente outra.
            O Thio, com a educação que teve, e ainda mais com a vida que levou tendo que batalhar duramente cada centímetro de sua reputação, cada segundo de seu reconhecimento, sem apadrinhamentos, QI´s ou, como se diz atualmente, sem um mísero networking, sim, o Thio não achava justo receber uma honraria dessas sem, a seu ver, uma retribuição à altura.
            Não que aquele longínquo título de doutor honoris causa, ou cada um dos outros tantos e tantos que viria a receber, não fosse um justo reconhecimento ao que tinha conseguido em sua produtiva vida, mas o fato de não haver uma tese vinculada ao título o incomodava. Se outros doutorados eram concedidos por conta de teses defendidas, por que o dele seria diferente?
            Aquele primeiro honoris causa o incomodou tanto que, dali para frente, sempre que era agraciado com um título dessa natureza, o Thio postergava a sua entrega até que tivesse escrito uma tese que o justificasse.
            E que teses ele escreveu nesses anos todos! Uma para cada um dos tantos títulos recebidos desde então.
            E todas elas relacionadas com as faculdades que as concediam. Se era uma faculdade de medicina, então lá ia o Thio a escrever um belo e quase definitivo tratado sobre a cura de uma doença mal estudada. Letras? E o mundo recebeu de presente um aprofundado estudo sobre a influência das línguas latinas em suas congêneres do leste europeu por imigrantes neozelandeses. E aquela memorável tese de literatura comparada? Um estudo primoroso sobre as conexões neoclassicistas dos escritos de Coelho Neto e Hemingway. Direito? São tantas teses de direito, na maioria polêmicas, que fica difícil destacar uma que fosse.
            Mas, bom ressaltar, o que mais o impulsionou a escrever essas teses foi o fato de receber a honraria do título de doutor em um dois de julho (e nem foi por conta da data de suicídio do já mencionado Hemingway).
            Começou com uma brincadeira de um amigo, docente de uma faculdade de história, que, conhecendo a data do aniversário do Thio, agendou a entrega de um título de doutor honoris causa para o dia dois de julho. O Thio, em retribuição, escreveu uma belíssima tese sobre a independência da Bahia, texto muito comemorado, à época, entre os acadêmicos de história do Brasil.
            Acontece que, par de anos depois, o Thio brincou com o amigo que precisava receber um novo título em um dois de julho para poder escrever o segundo volume revisando parte de sua tese sobre essa importante data da história brasileira. O amigo, curioso para ver esse novo estudo histórico, providenciou, sem dificuldades, um novo título para o Thio. Os reitores das universidades desse nosso país sabem que conceder alguma honraria ao Thio recai também, e muito, a quem o concede e, candidatos que sempre são a secretário ou quem sabe ministro de estado, eles não hesitam nessas horas.
            E a atualização do estudo do Thio foi aclamada nos meios acadêmicos de forma sem igual.
            Assunto como esse sempre demanda novas e novas investigações e atualizações e foi por conta dessa necessidade que a entrega de títulos daquela instituição ao Thio na famosa data virou, digamos assim, rotina. A cada quatro ou cinco anos, lá íamos nós festejar o dia dois de julho em uma cerimônia no salão nobre daquela universidade.
            Assim, teses e concessões de títulos se sucederam e chegamos a esse mais recente dois de julho quando o Thio recebeu, das mãos de um recém empossado e empolgado reitor, o seu mais novo titulo honoris causa, mas com thesi... Inspirado, Thio Therezo produziu o que seria a sua definitiva tese sobre o movimento de independência da Bahia e deu por encerrada sua contribuição nessa direção.
            Se foi por satisfação interior com o resultado conseguido, ou se foi porque a cerimônia dessa vez fora muito caprichada, ou quiça tenha sido porque, por iniciativa do reitor, os presentes terem cantado um feliz aniversário em sua homenagem, com direito a bolo e tudo, o fato é que o Thio se emocionou sobremaneira dessa vez e quase que se deu ao luxo de derramar algumas lágrimas. Evitou-as, como convêm em um ambiente cheio de retratos de ex-magníficos.
            Faltou apenas, todos nós percebemos, o bolo de nozes que sua mãe fazia quando ele era o aniversariante e que ele tanto sente falta.
            Quanto aos títulos e aos doisdejulhos, sabemos que outros virão, Thio, outros virão... 

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Completando lacunas...

Regras.
  1. Em cada frase abaixo, preencha as lacunas com as palavras: “presidente da república”, “réu”, “golpista(s)”, “presidente da corte”, “aliado(s)” ou “supremo(s)”. 
  2. Cada palavra pode aparecer mais do que uma vez.
  3. Obviamente, há mais do que uma solução correta para cada lacuna, a depender, é claro, da visão ideológica do leitor.
Frases.
  1. O ____________ nomeou dois ministros da corte. 
  2. O ____________ viajou no avião do ____________ a Portugal, um por conta do cargo, outro para desfrutar suas férias.
  3. O ____________ visitou o ____________ na calada da noite de um domingo. O Fantástico descobriu e o ____________ reafirmou um suposto caráter oficial da visita. 
  4. O ____________ mencionou que é o assessor jurídico do ____________. Está nos autos. 
  5. O ____________ e mais dois outros ministros, esses nomeados diretamente pelo ____________, inocentaram o ____________ das acusações naquela corte. Excesso de provas.
  6. Os ____________ trocam afabilidades e condecorações e intensos sorrisos para um público escarniado. 
  7. O ____________ convidou o ____________ a falar em um evento recheado de ____________, organizado pelo seu instituto e patrocinado por ____________.
  8. Caronas no avião do ____________ são frequentes entre os ____________. E vice-versa.
  9. Jantares no Palácio são corriqueiros com as presenças do ____________, do ____________ e dos ____________.
  10. O ____________ e o ____________ são ____________. Tudo a ver.
Regras adicionais.

  1. Outras palavras podem ser escolhidas para completar as lacunas das frases, pois, ao que parece, vivemos na tal democracia. 
  2. Aliás, outras frases, há abundâncias delas, podem ser escolhidas com as palavras acima e/ou com outras palavras, pois, ao que parece, temos o livre arbítrio. Com ou sem lacunas, é optativo!
  3. Em suma, pelo que temos visto, escárnio total!

quinta-feira, 15 de junho de 2017

oulipiana - as regras

Como prometido na semana passada, vou relatar as 43 regras por trás do texto que o Thio Therezo enviou ao grupo OuLiPo:

“A beleza crua da espera fortuita gratifica habituais invejosos justiceiros livres meticulosos no ocaso para que resistam suavemente tocando uma vez xilofone zeloso.”

Regras.

  1. Nenhuma palavra pode ter acento. 
  2. Não escrever palavras com cê cedilha.
  3. Não usar nomes próprios.
  4. Mencionar um instrumento musical.
  5. Não mencionar instrumentos de construção civil.
  6. Não mencionar animais quadrúpedes.
  7. Não mencionar animais voadores.
  8. Usar uma palavra com uma letra, duas com duas letras e três com três letras.
  9. Não usar vírgulas.
  10. Uma frase só, só um ponto.
  11. Que a frase tenha sentido, se é que isso faz sentido.
  12. Mencionar ao menos uma palavra contendo como número de letras cada um dos números entre 1 e 11 e só esses.
  13. Dentre as vogais, a letra “u” deve ser a menos utilizada.
  14. O número de vezes que as letras “r” e “u” aparecem deve coincidir.
  15. Deve haver treze palavras onde alguma vogal deve aparecer ao menos duas vezes. 
  16. Deve haver duas palavras onde duas vogais distintas aparecem ao menos duas vezes.
  17. O número de palavras contendo um número impar de letras deve ser um a menos que o número de palavras contendo um número par de letras.
  18. Uma palavra, e só uma, deve conter três vezes a letra “e”.
  19. O número total de toques, incluindo espaços, deve ser 164.
  20. A frase deve seguir ao menos 20 regras incluindo essa. 
  21. A frase deve começar com uma letra maiúscula e essa deve ser a única letra maiúscula.
  22. Não mencionar nenhum dia da semana, nem mesmo a quinta que essa está muito manjada.
  23. Não mencionar nem cantos nem flores.
  24. Esconder o fato de que está chovendo no dia em que o texto foi escrito.
  25. Deixar clara a beleza crua da espera.
  26. Deixar claro que o xilofone é zeloso, seja isso o que for.
  27. Não mencionar nem Bach nem Dalí.
  28. Evitar referenciar os mortos de ontem ou os de anteontem.
  29. Não repetir palavras.
  30. Nem o aroma nem o gosto do pão francês quente e besuntado de manteiga Aviação derretida devem ser mencionados para não atrapalhar a concentração do leitor em sua busca pelas regras de escrita por trás do texto. 
  31. Só uma consoante deve aparecer mais do que dez vezes. 
  32. Duas palavras devem terminar em “-osos” e uma outra em “-oso”. 
  33. As primeiras sete palavras do texto devem terminar com a letra “a” e as cinco seguintes com a letra “s”. 
  34. A frase deve conter apenas três verbos.
  35. Evitar polêmicas. 
  36. A segunda letra e a trigésima nona podem ser trocadas de lugar sem afetar o texto. 
  37. Colocar pingos nos “i’s”, dúzia no total.
  38. Todas as regras acima devem ser respeitadas assim como as que vem em seguida. 
  39. Em nenhuma circunstância deve-se mencionar alguma religião ou algum time de futebol. 
  40. Não usar caneta tinteiro ao escrever a frase. 
  41. Nenhuma letra deve aparecer treze vezes, mera superstição. 
  42. Respirar fundo antes de escrever a frase e dizer um “seja o que deus quiser” após escrevê-la. 
  43. Tomar uma boa taça de Syrah após estabelecer as regras e antes de iniciar a escrita.

quinta-feira, 8 de junho de 2017

oulipiana

            Que o Thio Therezo era amigo do pessoal do OuLiPo desde os seus primórdios, isso sabíamos. Que ele tinha sido um conselheiro oculto do grupo por tempos e tempos, isso longe de ser novidade a nós. Que ele cometera alguns escritos usando famosos contraintes, isso ouvíramos falar sem provas até recentemente. Mas que ele tinha sido convidado a ingressar no grupo e recusara, isso foi a novidade que descobríamos, depois de décadas, naquela noite de domingo, pizza quatro queijos e malbec pra acompanhar.
            Cada vez mais frequente nas oficinas literárias, a imposição de regras, muitas ditas matemáticas, para a escrita era a base dos trabalhos dos oulipianos desde sempre. Os contraintes, assim dito no original, limitam a escrita ao mesmo tempo que potencializam a imaginação e, por um tempo, o Thio até se entusiasmou com isso e praticou esse, digamos assim, desafio literário.
            Não que escrever seguindo regras pré-determinadas, fora obviamente as gramaticais, fosse novidade, mas talvez sim fosse a crescente variação de regras e subsequentes dificuldades delas provenientes. Além de potencializar a imaginação para a escrita de um texto, potencializou inicialmente a imaginação para a criação de regras e mais regras.
            Contraintes... eram constrangimentos, assim o Thio nos relatava. O pessoal do OuLiPo criava regras para a escrita e as seguiam cegamente, constrangidos ou não, à espera de terem tais regras descortinadas por seus pares. O Thio nos relatou, uma vez, como teve que passar horas ao telefone sugerindo frases e palavras para o Perec enquanto ele escrevia o seu impressionante romance sem a letra “e” (livro que Calvino considerou como um dos últimos grandes romances de nossa era), ou também para ajudar na escrita do famoso poema quase infinito do Queneau. Para o Thio, o constrangimento surgia quando chegava a conta telefônica e ele tinha que se justificar com o meu pai e se não fosse a interferência de sua irmã, minha mãe, sabe-se se lá o que teria sido da assessoria oulipiana do Thio naqueles anos de ligações internacionais extremamente caras...
            Mas o Thio fora convidado a entrar no grupo, só assim eram admitidos os membros, convite que foi interpretado como um grande reconhecimento ao, até aquele momento, pequeno trabalho que ele produzira nessa direção. Mas o Thio é o Thio, né? Depois da euforia dos primeiros momentos, logo ele percebeu que teria que se dedicar a escrever seguindo regras e outras regras ao menos para ter o seu portfólio de trabalhos oulipianos. Queria isso? Queria isso naquele momento? Justamente quando estava se envolvendo em um outro tipo de escrita, o Thio não queria ter que se limitar, nem se constranger, para escrever seguindo regras autoimpostas. Nada contra, muito pelo contrário, ele até adorava ler os seus amigos oulipianos e passava horas decifrando-os, prazer igual não havia. Ainda mais que havia também o prazer da leitura de um excelente livro, o que eram em sua maioria.
Mas preferia estar desse lado do balcão.
            Soubemos, o Thio nos contou entre uma garfada e outra da pizza de quatro queijos, que ele recusou o convite e enviou um pequeno texto que obedecia a, ao menos, 43 regras, desafiando os membros a encontra-las todas. Era a sua maneira de, apesar da recusa, dizer o quanto apreciava o trabalho desenvolvido pelo grupo e justificar sua recusa homenageando-os.
            Se houve constrangimentos ou não por conta da recusa, o ponto é que o grupo foi-se afastando do Thio, a década de 80 levou embora muitos dos principais oulipianos iniciais e tudo agora é pura memória.
            Curiosos, quisermos olhar o texto e as regras que o Thio mencionara, mas só após uma certa insistência é que conseguimos que ele nos mostrasse o que havia escrito. Quanto às regras, ele nos disse que teríamos uma semana para descobrir quais seriam. Como eu não quero privar os meus (poucos mas fiéis) leitores dessa experiência, vou publicar abaixo o texto enviado pelo Thio ao grupo OuLiPo e, semana que vem, revelo as 43 regras que se escondem por trás dele.


“A beleza crua da espera fortuita gratifica habituais invejosos justiceiros livres meticulosos no ocaso para que resistam suavemente tocando uma vez xilofone zeloso.”



quinta-feira, 1 de junho de 2017

Alen



            Alen... ele disse.
           E o agudo de sua voz percorreu suavemente o longo corredor de terra até a outra ponta, improvável esforço para a sua vista cansada, enquanto que o grave de sua voz caia pesadamente junto à plaquinha que indicava, em uma letra infantil, o tipo de uva e uma data.
            Seu olhar se deliciou então a ouvir o eco trazendo de volta a palavra quase intacta, ele gostava desse jogo de bumerangue, palavras iam e voltavam com alegria, iam e voltavam com renovada esperança.
            Alen... ele repetiu, alen...
            E repetiria com o mesmo ânimo sempre que perguntassem a ele o segredo de tanta mudança, o tanto de segredo que havia naquela mudança.
Terra infértil, não mais, aliás, nenhuma terra seria infértil para ele. Nunca.
Terra esturricada, isso sim, pelo calor dos tempos, seca, antes era assim, ele viu, ninguém contou. Mas agora o vermelho do vinho escorrido das taças de seus convidados nesse dia alimentava suas veias, fortificava suas entranhas e escondia a cor ocre curtida por milênios.
Alen, alen, alen... não conseguia parar de sorrir ao ouvir a estória de seu desafio, todo dia ele a ouvia em frente ao espelho, barba ainda por fazer, cheiro da cama ainda amassada, suor da quentura da região, o sol avermelhado de preguiça e vergonha.
Ouvia e sorria... sua estória e a dela, nunca cansava de ouvir. Pena que não... que ela tenha sucumbida aos tempos... dela sentia a falta sim... ela que tanto gostava de ouvi-lo contando a estória daquela terra improvável, ouvi-lo dizendo alen com toda a força de sua voz.
Alen... era agora o espelho a repetir a palavra depois de ter pacientemente esperado sua vez, repetiu a ele que hoje, sim hoje, era o dia do mosto como se houvesse possibilidade dele não se lembrar disso.
Alen... e sorriu e o espelho, mais que depressa, retribuiu.
Era o dia do mosto, longo e festejado dia. A segunda transformação à espera da próxima.
Mosto, era o estágio de hoje.
Mas logo, sabíamos todos, o mosto iria, como milagre, virar uma palavra que seria dita e repetida em restaurantes, discutida nos cafés de Lisboa e do Porto, mas não sem antes ser ouvida também aqui, principalmente aqui, animadas conversas em tardes modorrentas e alentejanas acompanhadas de outras tantas palavras que tanto agradam quem as cultivam.
E o mosto virará a palavra impressa em guias de venda, em rótulos disputados, a palavra mencionada em críticas de mesas de bar ou de jornais especializados.
E logo o mosto primitivo será passado e só sobrará a palavra que seguirá o seu caminho independente.
Alen... ele repetia olhando o corredor de terra à sua frente, taça à mão, e sabia que o ciclo inevitavelmente recomeçaria...
Mosto.
Palavra.
Celebração.