quinta-feira, 1 de junho de 2017

Alen



            Alen... ele disse.
           E o agudo de sua voz percorreu suavemente o longo corredor de terra até a outra ponta, improvável esforço para a sua vista cansada, enquanto que o grave de sua voz caia pesadamente junto à plaquinha que indicava, em uma letra infantil, o tipo de uva e uma data.
            Seu olhar se deliciou então a ouvir o eco trazendo de volta a palavra quase intacta, ele gostava desse jogo de bumerangue, palavras iam e voltavam com alegria, iam e voltavam com renovada esperança.
            Alen... ele repetiu, alen...
            E repetiria com o mesmo ânimo sempre que perguntassem a ele o segredo de tanta mudança, o tanto de segredo que havia naquela mudança.
Terra infértil, não mais, aliás, nenhuma terra seria infértil para ele. Nunca.
Terra esturricada, isso sim, pelo calor dos tempos, seca, antes era assim, ele viu, ninguém contou. Mas agora o vermelho do vinho escorrido das taças de seus convidados nesse dia alimentava suas veias, fortificava suas entranhas e escondia a cor ocre curtida por milênios.
Alen, alen, alen... não conseguia parar de sorrir ao ouvir a estória de seu desafio, todo dia ele a ouvia em frente ao espelho, barba ainda por fazer, cheiro da cama ainda amassada, suor da quentura da região, o sol avermelhado de preguiça e vergonha.
Ouvia e sorria... sua estória e a dela, nunca cansava de ouvir. Pena que não... que ela tenha sucumbida aos tempos... dela sentia a falta sim... ela que tanto gostava de ouvi-lo contando a estória daquela terra improvável, ouvi-lo dizendo alen com toda a força de sua voz.
Alen... era agora o espelho a repetir a palavra depois de ter pacientemente esperado sua vez, repetiu a ele que hoje, sim hoje, era o dia do mosto como se houvesse possibilidade dele não se lembrar disso.
Alen... e sorriu e o espelho, mais que depressa, retribuiu.
Era o dia do mosto, longo e festejado dia. A segunda transformação à espera da próxima.
Mosto, era o estágio de hoje.
Mas logo, sabíamos todos, o mosto iria, como milagre, virar uma palavra que seria dita e repetida em restaurantes, discutida nos cafés de Lisboa e do Porto, mas não sem antes ser ouvida também aqui, principalmente aqui, animadas conversas em tardes modorrentas e alentejanas acompanhadas de outras tantas palavras que tanto agradam quem as cultivam.
E o mosto virará a palavra impressa em guias de venda, em rótulos disputados, a palavra mencionada em críticas de mesas de bar ou de jornais especializados.
E logo o mosto primitivo será passado e só sobrará a palavra que seguirá o seu caminho independente.
Alen... ele repetia olhando o corredor de terra à sua frente, taça à mão, e sabia que o ciclo inevitavelmente recomeçaria...
Mosto.
Palavra.
Celebração.

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