quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Cinco cemitérios...


           Logo após virar a esquina, saindo de casa, deparava-se com o cemitério da Lapa. Bem em frente ao recado para a Dani Nariz deixado no muro, à direita seguiu. Muros não tão altos assim não conseguem esconder os jazigos, ao contrário, escondem apenas as estórias por trás deles.
            Quando o seu Juvenal morreu, talvez já um par de décadas, ele ainda estava na primeira infância e nada os ligava de fato. Estranhava sempre se lembrar da estória contada uma única vez a ele, tempos faz, e justamente quando passava em frente ao cemitério. E agora, o seu carro ladeava o longo muro branco, se esticar o olho dá até para ver a plaquinha ao longe. Exagero, para vê-la requer um olhar mais preciso. Para ler então, um bom binóculo. A plaquinha com as datas do seu Juvenal, que de diabetes morreu após ter vivido toda uma vida emburrado e descrente, amuado e atento. Mesmo assim, assim mesmo, ele muito viveu, o suficiente para ainda ser lembrado por alguns netos, odiado por filhos e até mesmo reverenciado por poucos e distantes parentes que nunca souberam maiores detalhes de sua existência.
            O carro agora percorre a Cerro, a Heitor e chega à Dr. Arnaldo e já se avistam dois outros cemitérios. O do lado direito, o Cemitério do Redemptor, mal se vê a porta de entrada e nada há de importante para se comentar. Se redenção houve, passou longe de todas aquelas estórias contadas e ouvidas e sabidas por ele. Pouco importava.
            Mas o Araçá, ah, o Araçá! esse sim as têm...
            Seu pensamento estava longe, quase tanto quanto a casa dela, destino final nessa tarde de sábado. E longe, tentou inicialmente ignorar os cemitérios e seus constantes e consistentes altos e baixos.
            Mas já que a do Juvenal atropelou seus pensamentos, mesmo sem muitos detalhes ainda, por que não se lembrar de sua esposa? Aguentaram-se, seu Juvenal e dona Glória, muito tempo em vida, mas agora se enterravam com uma distância apropriadamente suficiente, ele no Lapa e ela no Araçá.
            Ela, ao vê-lo expirar, prometeu-se uma vida menos triste; ao vê-lo no velório, cercado de flores hipócritas, jurou-se que, passado o sétimo dia de sua morte, não voltaria a falar dele a não ser para assuntos que interessassem aos filhos sobreviventes; ao ver o caixão ser fechado, uma lágrima ainda percorreu suas rugas faciais mas nunca se soube qual tristeza, a daquele momento ou a do passado, merecia a úmida homenagem.
            Coube a ela jogar a primeira leva de terra em seu caixão e o baque ouvido a convenceu de que por fim teria direito a uma distância eterna. Nunca voltou ao Lapa para visitá-lo. Quando insistiam em levá-la até lá, ela dizia simplesmente: não foi ele que me deixou?
            Aqui, onde o carro para em um inesperado congestionamento justo em frente a um novo cemitério, ele se consola recordando velórios a que compareceu e não consegue evitar agora o olhar ao passado. Aqui também, nessa descidona rumo ao Minhocão, está sepultada a filha primogênita do seu Juvenal e da dona Glória. Essa, pobre mãe, nunca soube, pois morreu antes, do lugar exato onde resta o corpo dessa filha, mas bem que gostaria de saber que sua dileta agora está finalmente bem longe do pai e com ela a protegendo no meio do caminho como um anjo da guarda que nunca teve. Justo a proteção que não pode dar durante a vida, tanto teria sido poupado se tivesse conseguido.
            Mas a dona Glória só soube tarde demais, sim tarde demais, a filha já destruída, traumatizada pelas mãos rudes e insistentes do pai, o Juvenal já nas últimas, diabetes corroendo suas energias. Soube ao acaso, que a filha sempre a poupou de tudo, até do sofrimento final. Mal terminava a missa de sétimo dia da dona Glória, a família enterrava a filha.
            Perdão não foi pedido, nem seria concedido.
            A Quarta Parada chegou. Pensou na mãe que sempre soube de tudo, que sempre sorria apesar de tudo, teria ela também sofrido igual? Pensou na tia e em como ela não viveu, pensou nos avós, Juvenal e Glória, pensou que chegava finalmente a seu destino, pensou em achar um novo caminho para as próximas vezes que viesse ver sua namorada, pensou em tudo e em todos.
            Parada final.
            Sim, cinco cemitérios nos separam nessa cidade cheia de esquinas e carros. Mas quando eu finalmente os percorro e aí chego, você me espera com seu belo sorriso e um beijinho e eu me permito esquecer de tudo o que me aborrece, mesmo que a sensação de que já vivi uma outra vida permaneça inconteste...

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A melancolia como característica


            Não é novidade a ninguém a impressionante lista de livros que o Thio Therezo publicou ao longo de sua vida e nem a extensão dos assuntos abordados e profundamente estudados por ele.
            Há um livro em particular, chamado “A melancolia como característica”, que se tornou uma referência essencial na área de análise dos sentimentos. Esse é definitivamente o livro, além de ser o livro pelo qual o Thio gostaria de ser lembrado. Em seu ensaio inicial, que serve como introdução a essa excitante área de pesquisa, o Thio elucida a diferença entre a melancolia como característica e a melancolia como momento, ou, em outras palavras, o ser melancólico e o estar melancólico.
            Cabe aqui registrar a dificuldade que um tradutor inglês teve com essa parte do livro, dada a sua notória inabilidade em diferenciar com precisão o to be melancholic do to be melancholic... Mas isso é outra estória e nem vou aborrecê-los com tecnicalidades linguísticas e nem com a inteligente solução dada pelo Thio Therezo a essa questão.
            O livro, ou compêndio, ou mesmo enciclopédia como já foi talvez corretamente chamado, relata, em um primeiro momento, os sete tipos de melancolia como característica e, depois, aprofunda-se em suas subdivisões primárias, chamadas de características de segunda ordem, 43 no total. Por fim, mesmo sem se ater muito a uma análise mais detalhada, há a divisão final como subtipos, 817 deles (e ainda contando...).
Como um dos apêndices ao livro é apresentado um teste, com não mais do que 137 perguntas, onde o leitor pode testar em que estado melancólico se encontra (temporário ou permanente) assim como o seu nível primário. Para se encaixar em algum dos possíveis subtipos são, no entanto, necessários estudos mais aprofundados, que envolvem inclusive sofisticadas tomografias cerebrais. É claro que o teste não indicará nada de substancial se o leitor for um dos tais otimistas incorrigíveis. Nesse caso, melhor mesmo é evitar essas questões.
            Nem é preciso enfatizar o impacto que essas ideias produziram nas diversas academias científicas ao redor do mundo. Teses de doutorados abundam aqui e ali sobre o tema. Aliás, há inclusive um curso de graduação na Universidad de La Dorada, nas Ilhas Sultanesas, cujo conteúdo se baseia inteiramente no estudo feito pelo Thio Therezo. A propósito, ele é professor emérito lá, um dos poucos com tal honraria. Abrindo um parêntesis, o Thio um dia nos confidenciou que nunca conseguiu entender como os habitantes de um lugar tão paradisíaco como são as Ilhas Sultanesas pudessem se interessar tanto com um assunto como a melancolia. Pouco importava realmente, ele adorava ser convidado a ministrar palestras por lá...
            Pois foi justamente por ter escrito esse compêndio em tal nível de detalhes que o Thio Therezo recebeu a pecha de melancólico, justo ele, quem diria? E essa foi uma das principais questões que o diretor do documentário sobre a vida do Thio quis esclarecer de forma definitiva. Durante uma das entrevistas ele foi direto ao perguntar ao Thio se ele se considerava um ser melancólico. Mesmo diante da tranquila e firme negativa, o diretor insistiu em seu questionamento, parecia querer extrair algo a mais do Thio, talvez até uma lágrima convenientemente filmada em foco fechado.
            “Assim como alguém que escreve sobre o suicídio não é necessariamente um suicida (imaginem se isso fosse verdade, não haveria texto algum sobre esse assunto...), quem escreve sobre a melancolia não precisa o ser...” respondeu o Thio, e complementou sua resposta com uma teoria que quis apresentar ao mundo para não deixar nenhum ponto obscuro nessa questão. Das sete horas gravadas que durou a convincente resposta do Thio, o diretor aproveitou, em seu filme, apenas quinze segundos. Também, daí para a frente, preferiu evitar qualquer outra questão polêmica com o Thio.
            Quanto ao documentário em si, num outro momento... 

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Fundação da Cidade - II



            Porque de fato nem tudo é o que parece ser...
Em todo o caso, a prisão do Senador foi anunciada em grande destaque a tempo de sair no telejornal noturno e nas capas das revistas de final de semana. Domiciliar, mas mesmo assim prisão, ela mereceu a devida atenção recebida naquela semana de poucas notícias bombásticas.
            É certo, advogados bem pagos afirmaram, que um ou outro supremo, escolhidos obviamente por sorteio na sala privada, concederiam sem pestanejar um irrevogável habeas corpus dadas as notórias circunstâncias que envolviam esse caso. Mas o Senador não quis, ordenou aos advogados bem pagos que não entrassem com pedido algum de liberação, mesmo porque ele era do tipo caseiro e a sua residência, seu domicílio, sua casa mais para mansão tinha tudo o que ele precisava.
            Não que não tenham tentado demovê-lo dessa ideia, com argumentos vários que poderiam até parecer estranhos, se é que alguém ainda estranha alguma coisa vinda desse pessoal. Carros com vidros escuros entravam e saíam da garagem da casa do Senador, altas horas da noite. Diziam que até mais do que um dos tantos presidentes dos poderes dessa dita República tinham aparecido por lá, mas isso ninguém nunca confirmou, nem poderiam. Fake News da oposição, com certeza, vociferou em um vídeo um dos líderes inadimplentes do movimento dito apartidário emebelê.
            Semana seguinte, o Senador comprou a casa ao lado da sua e a incorporou à sua mansão. Foi só o começo, pois pouco a pouco todo o quarteirão foi sendo incorporado às suas propriedades e seus imóveis interligados por passagens privativas. Faziam parte de seu domicílio agora mas logo hospedariam parentes e amigos, algo que facilitava a convivência entre eles. No canto sudoeste do quarteirão uma cantina foi aberta por ele e, assim, ele pode voltar a desfrutar de algo que sentia falta. À cantina, anexou-se um café e, com o tempo, também uma pequena livraria.
            Mas logo o Senador sentiu que aquele quarteirão não seria suficiente para o seu conforto e começou a comprar imóveis do outro lado da rua, o que trazia inconvenientes de ordem legal pois para atravessá-la ele precisaria sair de seu domicílio. Um amigo seu, compadre com casa em Campos do Jordão, o jota incorporador, sugeriu que ele incorporasse a rua, ou ao menos parte dela, à sua propriedade. Depois, bastava doar um ar condicionado a alguma escola pública em troca da área da rua e, talvez, até encarar uma interminável mas rotineira ação judicial de reintegração de posse, seus amigos poderiam cuidar disso muito bem. O jota já fizera isso e deu certo, o caso se alastrava por décadas.
            O Senador então incorporou a rua que ele precisava e expandiu o seu domicílio por mais um quarteirão. Teve que repetir a dose para poder ter acesso a uma galeria de artes que acabava de comprar e que trazia as exposições que lhe interessavam. Com o tempo, foram tantos aparelhos de ar condicionado que até perdeu a conta (mas a baixo custo, ele se vangloriava, pois dentro de seu domicílio agora existia uma fábrica, isenta de impostos por dois séculos, e que produzia, dentre outras coisas, tais aparelhos).
            Um bem equipado hospital o servia nos exames de rotina ou em emergências sem que ele tivesse sequer que pedir permissão à justiça para tal. Ia confortavelmente de helicóptero sem sair do espaço aéreo de seu domicílio.
            Quando a dívida do IPTU crescia demasiadamente ele negociava com o prefeito uma substancial redução, algum REFIS personalizado que quase zerava essa dívida, e que tampouco seria paga algum dia e assim seguia.
            Corre atualmente no Congresso Nacional um pedido de emancipação e criação de um novo município e o Senador já faz campanha para ser o seu primeiro prefeito.
            Infra estrutura não falta...


[[[  Muito tempo se passou desde que escrevi o primeiro “Fundação da Cidade” nos finais dos anos 1980 (aparece no livro “Contos que Conto”, cuja segunda edição acaba de sair como e-book pela e-galáxia). Apesar de muito distintos, há algo estranhamente em comum a esses contos que insiste em sobreviver dentro de meus escritos... porque de fato nem tudo é como parece.  ]]]
            

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Contos que conto, segunda edição



           O “Contos que conto” foi publicado em 1991 como parte da premiação da “5ª. Bienal Nestlé de Literatura Brasileira”, pois o livro obteve o terceiro lugar na categoria Conto. Foi publicado pela “Editora Estação Liberdade” e contou com o belíssimo trabalho editorial do nosso querido Jiro Takahashi. Há muito esgotado, ainda amigos e colegas me perguntavam sobre como conseguir um exemplar. Enquanto o meu (pequeno) estoque sobreviveu, pude suprir a curiosidade deles, mas agora já não os tenho mais para distribuir. Resolvi, então, preparar uma segunda edição no formato e-book.
              Essa edição digital, que conta com a belíssima capa feita por Ayssa Bastos, já está à venda na Livraria Cultura , na Livraria Saraiva ou na Amazon .
            Quando se olha para trás (e lá se vão vinte e cinco anos da publicação desse meu primeiro livro), percebe-se o quanto tudo mudou nesse tempo. Ainda tenho a primeira versão datilografada do livro e, claro, percebi que não a tinha em nenhum meio digital. Precisava digitalizar todo o livro e optei por redigitá-lo pessoalmente, atitude temerária, percebi logo. Se, por um lado, foi bom recuperar de alguma forma os sentimentos que tive ao escrever esses contos pela primeira vez (sim, muita coisa volta à mente e você revive cada instante), por outro lado, deu-me uma coceirinha para reescrever algumas partes deles (como diria a paçoca: não é nada disso... jogue no lixo esse lixo, e reescreva!). Não o fiz, porém, e por dois motivos. Acho que, mesmo tendo esse pensamento de reescrita em mente, natural que é por conta de vinte e cinco anos de vida vivida desde então, qualquer modificação seria injusta para com o que escrevi naquela época, qualquer modificação poderia inclusive me levar a perder algo que foi considerado positivo à época em que ganhei esse prêmio. E como reescrevê-los? Muitas motivações já se perderam, já outros cinco livros publicados se embaralham nesse tempo que passou, e como passou rápido...
            Não, preferi deixar os contos do jeito que foram escritos quase trinta anos atrás: o “Postal”, conto de abertura do livro e, por coincidência, o primeiro conto que escrevi na vida foi escrito em 1987! O que ocorreu foi que acertei alguns errinhos de digitação da primeira versão, além de atualizar a acentuação de algumas palavras, nada que comprometa a fidelidade ao texto inicial. Cacoetes literários (e os há abundantemente) ficaram, mas a isso podemos chamar de estilo. E, claro, outros errinhos de digitação podem ter sido incorporados.
            A Comissão Julgadora na categoria Conto da 5ª. Bienal foi formada por: Bella Jozef, Ignácio de Loyola Brandão, João Antônio, Moacyr Scliar e Muniz Sodré. Sempre fui grato a todos eles pela oportunidade dada de ver o meu primeiro livro publicado e, em especial, agradeço o gentil texto que o Muniz Sodré escreveu sobre esses meus contos, texto que transcrevo abaixo.

Comentário de Muniz Sodré

Há uma espécie de “minimalismo” nos contos de Flávio Coelho, que consiste não no mero encurtamento dos textos, mas em insuflar na prosa o espírito da economia de meios e da repetição calculada de situações, de tal maneira que o tema vibra constantemente sob as frases. E aí está uma virtude de escritor: provocar isomorfismo entre a forma e a fabulação, para que permaneçam no leitor o tom, a eventual musicalidade do texto.
Isso é muito evidente em contos como “Postal” e “Quatorze toques, geralmente”, não tão evidente em outros (onde às vezes a linguagem se enrijece por certos anacronismos de expressão), mas não há dúvida nenhuma de que em “Contos que conto” acontece essa intervenção singular na língua a que se tem chamado de estilo. O universo homogêneo e recorrente que emerge da criação é o nosso velho quotidiano, perscrutado com lente especial.
Não deixa de ser reconfortante verificar que, em meio à crise da palavra escrita e à banalização da narrativa pelo lixo literário, a literatura resta, germinal, como semente de verde na fresta do asfalto.

(1991)

 Capa da Primeira Edição (1991):