Logo após virar a esquina, saindo de casa, deparava-se com o cemitério da Lapa. Bem em frente ao recado para a Dani Nariz deixado no muro, à direita seguiu. Muros não tão altos assim não conseguem esconder os jazigos, ao contrário, escondem apenas as estórias por trás deles.
Quando o seu Juvenal morreu, talvez
já um par de décadas, ele ainda estava na primeira infância e nada os ligava de
fato. Estranhava sempre se lembrar da estória contada uma única vez a ele,
tempos faz, e justamente quando passava em frente ao cemitério. E agora, o seu
carro ladeava o longo muro branco, se esticar o olho dá até para ver a
plaquinha ao longe. Exagero, para vê-la requer um olhar mais preciso. Para ler
então, um bom binóculo. A plaquinha com as datas do seu Juvenal, que de
diabetes morreu após ter vivido toda uma vida emburrado e descrente, amuado e
atento. Mesmo assim, assim mesmo, ele muito viveu, o suficiente para ainda ser
lembrado por alguns netos, odiado por filhos e até mesmo reverenciado por
poucos e distantes parentes que nunca souberam maiores detalhes de sua
existência.
O carro agora percorre a Cerro, a
Heitor e chega à Dr. Arnaldo e já se avistam dois outros cemitérios. O do lado
direito, o Cemitério do Redemptor, mal se vê a porta de entrada e nada há de
importante para se comentar. Se redenção houve, passou longe de todas aquelas
estórias contadas e ouvidas e sabidas por ele. Pouco importava.
Mas o Araçá, ah, o Araçá! esse sim
as têm...
Seu pensamento estava longe, quase
tanto quanto a casa dela, destino final nessa tarde de sábado. E longe, tentou
inicialmente ignorar os cemitérios e seus constantes e consistentes altos e
baixos.
Mas já que a do Juvenal atropelou
seus pensamentos, mesmo sem muitos detalhes ainda, por que não se lembrar de
sua esposa? Aguentaram-se, seu Juvenal e dona Glória, muito tempo em vida, mas
agora se enterravam com uma distância apropriadamente suficiente, ele no Lapa e
ela no Araçá.
Ela, ao vê-lo expirar, prometeu-se
uma vida menos triste; ao vê-lo no velório, cercado de flores hipócritas,
jurou-se que, passado o sétimo dia de sua morte, não voltaria a falar dele a
não ser para assuntos que interessassem aos filhos sobreviventes; ao ver o
caixão ser fechado, uma lágrima ainda percorreu suas rugas faciais mas nunca se
soube qual tristeza, a daquele momento ou a do passado, merecia a úmida
homenagem.
Coube a ela jogar a primeira leva de
terra em seu caixão e o baque ouvido a convenceu de que por fim teria direito a
uma distância eterna. Nunca voltou ao Lapa para visitá-lo. Quando insistiam em
levá-la até lá, ela dizia simplesmente: não
foi ele que me deixou?
Aqui, onde o carro para em um
inesperado congestionamento justo em frente a um novo cemitério, ele se consola
recordando velórios a que compareceu e não consegue evitar agora o olhar ao
passado. Aqui também, nessa descidona rumo ao Minhocão, está sepultada a filha primogênita
do seu Juvenal e da dona Glória. Essa, pobre mãe, nunca soube, pois morreu
antes, do lugar exato onde resta o corpo dessa filha, mas bem que gostaria de
saber que sua dileta agora está finalmente bem longe do pai e com ela a
protegendo no meio do caminho como um anjo da guarda que nunca teve. Justo a
proteção que não pode dar durante a vida, tanto teria sido poupado se tivesse
conseguido.
Mas a dona Glória só soube tarde
demais, sim tarde demais, a filha já destruída, traumatizada pelas mãos rudes e
insistentes do pai, o Juvenal já nas últimas, diabetes corroendo suas energias.
Soube ao acaso, que a filha sempre a poupou de tudo, até do sofrimento final.
Mal terminava a missa de sétimo dia da dona Glória, a família enterrava a
filha.
Perdão não foi pedido, nem seria
concedido.
A Quarta Parada chegou. Pensou na
mãe que sempre soube de tudo, que sempre sorria apesar de tudo, teria ela
também sofrido igual? Pensou na tia e em como ela não viveu, pensou nos avós,
Juvenal e Glória, pensou que chegava finalmente a seu destino, pensou em achar
um novo caminho para as próximas vezes que viesse ver sua namorada, pensou em
tudo e em todos.
Parada final.
Sim, cinco cemitérios nos separam
nessa cidade cheia de esquinas e carros. Mas quando eu finalmente os percorro e
aí chego, você me espera com seu belo sorriso e um beijinho e eu me permito
esquecer de tudo o que me aborrece, mesmo que a sensação de que já vivi uma outra
vida permaneça inconteste...