Porque
de fato nem tudo é o que parece ser...
Em todo o caso, a prisão do
Senador foi anunciada em grande destaque a tempo de sair no telejornal noturno
e nas capas das revistas de final de semana. Domiciliar, mas mesmo assim
prisão, ela mereceu a devida atenção recebida naquela semana de poucas notícias
bombásticas.
É certo,
advogados bem pagos afirmaram, que um ou outro supremo, escolhidos obviamente
por sorteio na sala privada, concederiam sem pestanejar um irrevogável habeas corpus dadas as notórias
circunstâncias que envolviam esse caso. Mas o Senador não quis, ordenou aos
advogados bem pagos que não entrassem com pedido algum de liberação, mesmo
porque ele era do tipo caseiro e a sua residência, seu domicílio, sua casa mais
para mansão tinha tudo o que ele precisava.
Não que
não tenham tentado demovê-lo dessa ideia, com argumentos vários que poderiam
até parecer estranhos, se é que alguém ainda estranha alguma coisa vinda desse
pessoal. Carros com vidros escuros entravam e saíam da garagem da casa do
Senador, altas horas da noite. Diziam que até mais do que um dos tantos
presidentes dos poderes dessa dita República tinham aparecido por lá, mas isso
ninguém nunca confirmou, nem poderiam. Fake
News da oposição, com certeza, vociferou em um vídeo um dos líderes
inadimplentes do movimento dito apartidário emebelê.
Semana
seguinte, o Senador comprou a casa ao lado da sua e a incorporou à sua mansão.
Foi só o começo, pois pouco a pouco todo o quarteirão foi sendo incorporado às
suas propriedades e seus imóveis interligados por passagens privativas. Faziam parte
de seu domicílio agora mas logo hospedariam parentes e amigos, algo que facilitava
a convivência entre eles. No canto sudoeste do quarteirão uma cantina foi
aberta por ele e, assim, ele pode voltar a desfrutar de algo que sentia falta.
À cantina, anexou-se um café e, com o tempo, também uma pequena livraria.
Mas logo
o Senador sentiu que aquele quarteirão não seria suficiente para o seu conforto
e começou a comprar imóveis do outro lado da rua, o que trazia inconvenientes
de ordem legal pois para atravessá-la ele precisaria sair de seu domicílio. Um
amigo seu, compadre com casa em Campos do Jordão, o jota incorporador, sugeriu
que ele incorporasse a rua, ou ao menos parte dela, à sua propriedade. Depois,
bastava doar um ar condicionado a alguma escola pública em troca da área da rua
e, talvez, até encarar uma interminável mas rotineira ação judicial de
reintegração de posse, seus amigos poderiam cuidar disso muito bem. O jota já
fizera isso e deu certo, o caso se alastrava por décadas.
O
Senador então incorporou a rua que ele precisava e expandiu o seu domicílio por
mais um quarteirão. Teve que repetir a dose para poder ter acesso a uma galeria
de artes que acabava de comprar e que trazia as exposições que lhe
interessavam. Com o tempo, foram tantos aparelhos de ar condicionado que até
perdeu a conta (mas a baixo custo, ele se vangloriava, pois dentro de seu
domicílio agora existia uma fábrica, isenta de impostos por dois séculos, e que
produzia, dentre outras coisas, tais aparelhos).
Um bem
equipado hospital o servia nos exames de rotina ou em emergências sem que ele
tivesse sequer que pedir permissão à justiça para tal. Ia confortavelmente de
helicóptero sem sair do espaço aéreo de seu domicílio.
Quando a
dívida do IPTU crescia demasiadamente ele negociava com o prefeito uma substancial
redução, algum REFIS personalizado que quase zerava essa dívida, e que tampouco
seria paga algum dia e assim seguia.
Corre
atualmente no Congresso Nacional um pedido de emancipação e criação de um novo
município e o Senador já faz campanha para ser o seu primeiro prefeito.
Infra
estrutura não falta...
[[[ Muito tempo se passou desde que escrevi o primeiro “Fundação
da Cidade” nos finais dos anos 1980 (aparece no livro “Contos que Conto”, cuja segunda
edição acaba de sair como e-book pela e-galáxia). Apesar de muito distintos, há
algo estranhamente em comum a esses contos que insiste em sobreviver dentro de
meus escritos... porque de fato nem tudo
é como parece. ]]]
Nenhum comentário:
Postar um comentário