quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Fundação da Cidade - II



            Porque de fato nem tudo é o que parece ser...
Em todo o caso, a prisão do Senador foi anunciada em grande destaque a tempo de sair no telejornal noturno e nas capas das revistas de final de semana. Domiciliar, mas mesmo assim prisão, ela mereceu a devida atenção recebida naquela semana de poucas notícias bombásticas.
            É certo, advogados bem pagos afirmaram, que um ou outro supremo, escolhidos obviamente por sorteio na sala privada, concederiam sem pestanejar um irrevogável habeas corpus dadas as notórias circunstâncias que envolviam esse caso. Mas o Senador não quis, ordenou aos advogados bem pagos que não entrassem com pedido algum de liberação, mesmo porque ele era do tipo caseiro e a sua residência, seu domicílio, sua casa mais para mansão tinha tudo o que ele precisava.
            Não que não tenham tentado demovê-lo dessa ideia, com argumentos vários que poderiam até parecer estranhos, se é que alguém ainda estranha alguma coisa vinda desse pessoal. Carros com vidros escuros entravam e saíam da garagem da casa do Senador, altas horas da noite. Diziam que até mais do que um dos tantos presidentes dos poderes dessa dita República tinham aparecido por lá, mas isso ninguém nunca confirmou, nem poderiam. Fake News da oposição, com certeza, vociferou em um vídeo um dos líderes inadimplentes do movimento dito apartidário emebelê.
            Semana seguinte, o Senador comprou a casa ao lado da sua e a incorporou à sua mansão. Foi só o começo, pois pouco a pouco todo o quarteirão foi sendo incorporado às suas propriedades e seus imóveis interligados por passagens privativas. Faziam parte de seu domicílio agora mas logo hospedariam parentes e amigos, algo que facilitava a convivência entre eles. No canto sudoeste do quarteirão uma cantina foi aberta por ele e, assim, ele pode voltar a desfrutar de algo que sentia falta. À cantina, anexou-se um café e, com o tempo, também uma pequena livraria.
            Mas logo o Senador sentiu que aquele quarteirão não seria suficiente para o seu conforto e começou a comprar imóveis do outro lado da rua, o que trazia inconvenientes de ordem legal pois para atravessá-la ele precisaria sair de seu domicílio. Um amigo seu, compadre com casa em Campos do Jordão, o jota incorporador, sugeriu que ele incorporasse a rua, ou ao menos parte dela, à sua propriedade. Depois, bastava doar um ar condicionado a alguma escola pública em troca da área da rua e, talvez, até encarar uma interminável mas rotineira ação judicial de reintegração de posse, seus amigos poderiam cuidar disso muito bem. O jota já fizera isso e deu certo, o caso se alastrava por décadas.
            O Senador então incorporou a rua que ele precisava e expandiu o seu domicílio por mais um quarteirão. Teve que repetir a dose para poder ter acesso a uma galeria de artes que acabava de comprar e que trazia as exposições que lhe interessavam. Com o tempo, foram tantos aparelhos de ar condicionado que até perdeu a conta (mas a baixo custo, ele se vangloriava, pois dentro de seu domicílio agora existia uma fábrica, isenta de impostos por dois séculos, e que produzia, dentre outras coisas, tais aparelhos).
            Um bem equipado hospital o servia nos exames de rotina ou em emergências sem que ele tivesse sequer que pedir permissão à justiça para tal. Ia confortavelmente de helicóptero sem sair do espaço aéreo de seu domicílio.
            Quando a dívida do IPTU crescia demasiadamente ele negociava com o prefeito uma substancial redução, algum REFIS personalizado que quase zerava essa dívida, e que tampouco seria paga algum dia e assim seguia.
            Corre atualmente no Congresso Nacional um pedido de emancipação e criação de um novo município e o Senador já faz campanha para ser o seu primeiro prefeito.
            Infra estrutura não falta...


[[[  Muito tempo se passou desde que escrevi o primeiro “Fundação da Cidade” nos finais dos anos 1980 (aparece no livro “Contos que Conto”, cuja segunda edição acaba de sair como e-book pela e-galáxia). Apesar de muito distintos, há algo estranhamente em comum a esses contos que insiste em sobreviver dentro de meus escritos... porque de fato nem tudo é como parece.  ]]]
            

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