quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Mas aí é diferente!


            Existem algumas expressões que, por vezes, tiram o Thio Therezo do sério. Uma dela é a tal da “mas aí é diferente...”.
            O juiz, obviamente um ladrão insensível, marca um pênalti, claramente inexistente, contra o glorioso Ituano. Conversa de bar, esse é o assunto que deixa a muitos indignados naquele final de tarde de domingo na praça central da cidade interiorana. Não todos, sempre tem um que concorda com o juiz. Mas aí você lembra de outro lance, igual, equivalente, análogo, mas contra um tal de Corinthians e que sequer passou perto de ser considerado como atitude faltosa pelo, agora já consensual, ladrão juiz.
            -... mas aí é diferente... – a expressão interrompe a conversa. Silêncio.
            Claro que é! É contra o seu time, é a favor do meu... diferença mais do que óbvia.
            O Zequinha, então, chega ao bar comemorando a prisão de um político delatado. Você, como quem não quer nada, comenta que só vai acreditar que algo realmente mudou nesse país se aquele outro político, igualmente delatado, igualmente gravado confessando crimes, igualmente desonesto também for preso.
            - ... mas aí é diferente...
            Claro que é! É o político em quem você votou, é um aliado, foi só um caixa dois inofensivo (que nem crime é...), uma venda de apartamento, a delação foi só vingança de um bandido desqualificado...
            Se quiser imparcialidade, não discuta futebol...
            O Thio estava bem acostumado a esse atual, mas aparentemente interminável, fla-flu em nossa sociedade, não era esse o problema. O problema era a expressão “mas aí é diferente...” em si. A ele, sempre pareceu que ela transbordava uma arrogância, um desprezo pela argumentação, pela possibilidade de sequer se analisar possíveis analogias entre situações, padrões que fossem.
            O direto e seco “mais aí é diferente” matava qualquer continuidade de conversa civilizada, eliminava a argumentação por contradição, a construção de analogias que poderiam propiciar um melhor entendimento das questões. E foi por conta desse incômodo que o Thio resolveu investigar as origens sócio-epistemológicas da dita cuja expressão. Buscou e investigou e se aprofundou em livros e teses e descobriu, por exemplo, que os bárbaros da Idade das Trevas, ao decapitarem seus inimigos, entoavam uma singela cantiga onde o refrão, em uma tradução livre ao latim, soava como “sed differt” (tradução excessivamente livre, diriam alguns inimigos invejosos do Thio Therezo, uma forçação de barra, mas aí, é realmente diferente, é uma questão mal resolvida entre eles).
Descobriu também que essa expressão estava por trás de muitos movimentos eugenistas e racistas. Poucos sabem que por dentro daquele ignóbil chapéu da Ku Klux Klan está bordado em rosa um dos lemas da organização: “but there it is obviously distinct”. Tal revelação pelo Thio trouxe, como efeito colateral, um renascimento nos EUA de uma mentalidade ultraconservadora que, dizem, levou, ao final o Trump à presidência. O Thio, até hoje, em suas palestras nas inúmeras universidades americanas, pede desculpas pelas graves consequências de sua descoberta e se justifica dizendo, sinceramente, que seu único interesse era o acadêmico. O Thio, sabemos todos, abomina qualquer pensamento de extrema direita.
Em todo caso, tão vasta foi a pesquisa realizada pelo Thio Therezo que caberiam aqui inúmeros outros exemplos. Como tudo, ou quase tudo, na vida do Thio termina em livro, é produto dessa pesquisa o famoso (e injustamente criticado) tratado “Analogias, manipulações e imparcialidades, a maldição por trás da expressão mas aí é diferente”.
            Um dos principais capítulos desse importante tratado diz respeito a uma situação que, ao ver do Thio, se repetiu em várias épocas e distintas situações históricas. Além do acima mencionado ritual envolvendo os povos bárbaros, deparou-se ele com um hábito da época da revolução francesa. Também lá, antes de serem decapitados, muitos inimigos do povo gritavam “mas là c’est différent...”. Ao se deparar com esse padrão, o Thio escreveu um capítulo chamado “Perdendo a cabeça” e que, depois ele percebeu, seria o centro de toda a sua argumentação naquele agora imprescindível tratado sociológico. A simbologia descoberta agora fechava o ciclo que ele tanto buscava.
            O Thio iria confessar, tempos depois, que escrever esse livro foi mais do que uma curiosidade intelectual, pois significou, para ele, uma longa sessão de terapia que o fez, ao final, olhar com mais condescendência todos aqueles que utilizam e abusam dessa expressão em prol da finalização de uma discussão.
            Se ele conseguiu, depois de uma terapia litero-acadêmica, se resolver internamente frente a essa expressão, o mesmo não aconteceu com relação à “você é muito importante para nós”. Mas isso é outra estória e que contarei semana que vem.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

amigos entusiastas do Ituano


            Comentei por aqui na semana passada o entusiasmo do Thio Therezo por conta do Ituano e como é impossível se manter imparcial quando se torce para o glorioso rubro-negro de Itu. Surgiu então alguns questionamentos sobre o AEI, a famosa associação Amigos Entusiastas do Ituano e aproveito para contar-lhes um pouco sobre isso. Sei que sou apenas uma testemunha ocular dessa estória e muito do que sei a respeito são apenas relatos que ouvi do Thio. Mas tentarei ser o mais fiel ao que ele me contou, mesmo sabendo que não possuo os necessários dons de um bom contador de estórias.
            Mas, vamos em frente.
            O AEI foi fundado em 2002, logo depois que o Ituano ganhou o seu primeiro campeonato paulista, não que antes esses mesmos amigos não estivessem sempre unidos e entusiasmados para torcer pelo galo rubro-negro. Estavam, e faziam, isso sim, sacrifícios às vezes para acompanhar o time onde ele fosse jogar. O motivo principal para se formalizar tal associação foi justamente a circunstância em que esse título se deu.
            Conto aqui.
            Por questões que não vem ao caso (ou, melhor dizendo, ao acaso), nenhum dos chamados times grandes do Estado de São Paulo participou do campeonato paulista de 2002.  Todos eles participaram de um tal de Torneio Rio-São Paulo. E, por isso, e só por isso, muitos tentaram desqualificar o bem merecido título do Ituano, como se, sem a participação desses tais grandes times, o campeonato paulista tivesse perdido a sua competitividade.
            - Ridículo... absurdo... só mesmo mentes ignóbeis poderiam pensar isso... – o Thio reagia raivoso.
            Mas tanto esses ignóbeis fizeram que até inventaram um tal de Supercampeonato Paulista de Futebol onde deram um jeito de colocar o Corinthians, o Palmeiras e o São Paulo em um quadrangular todos contra o Ituano.
            O glorioso Ituano passou, nas semi, pelo Corinthians mas, nas finais, não conseguiu ganhar do majestoso tricolor. O São Paulo pode ser o supercampeão paulista de 2002, mas o real campeão paulista é o Ituano, sem dúvida.
            Em resposta a toda a pressão que o Ituano sofreu por conta desses detalhes envolvendo justamente aquele campeonato, o Thio junto com outros fanáticos torcedores resolveram fundar o AEI. Era preciso resistir às chacotas (injustas e desnecessárias) a que os ituanos estavam sendo diariamente submetidos.
            O AEI foi bem atuante em seus tempos iniciais e alguns anos se passaram até que o Ituano conseguisse o seu bicampeonato. Quem for buscar nos jornais da época, é bem capaz de encontrar uma famosa foto que rodou o mundo onde aparece o Thio erguendo uma faixa escrita “RUMO AO BI”. Não há, porém, registro do Thio segurando uma outra faixa com os dizeres “RUMO A TÓQUIO” que foi pouco usada, até os mais entusiastas acharam que o Thio estava exagerando...
            Com o tempo, a euforia inicial com o AEI foi se esvaindo e, não poucas vezes, o Thio se viu sozinho defendendo a história do galo rubro-negro. Mas aí... aí 2014 chegou, o bi chegou... Na primeira fase do campeonato daquele ano, deixando um tal de Corinthians para trás, o Ituano se classificou para as quartas de finais, passou pelo Botafogo, e depois pelo Palmeiras chegando à final contra o Santos.
            Lembro-me bem daqueles dias e das preocupações do Thio. Desde que saiu o emparelhamento para a fase final, ele vislumbrou uma final entre o Ituano e o Santos. Justo o Santos, time que tanto o Thio ajudou nos finais da década de 50. Conta a lenda que o Thio fora chamado para ensinar um garoto em início de carreira a cabecear (tempos depois, ao vê-lo marcar um gol de cabeça em uma final de copa do mundo, o Thio não conseguiu esconder de nós o seu sorriso de satisfação, mas isso é certamente uma outra estória).
            Por conta de seu passado junto ao time da cidade praiana, o que o Thio menos queria era uma final Santos-Ituano e ainda mais se ela fosse na Vila Belmiro. Ele nos confessou tempos depois que usou de toda a sua imensa influência junto à Federação Paulista de Futebol para que a Vila não fosse escolhida como sede do jogo final.
            - Sei que foi egoísmo meu... sei sim... pecadinhos como esses todos temos... mas não aguentaria torcer pelo Ituano na Vila...
            Seus eternos (e invejosos) inimigos irão dizer que ele não teve influência alguma na escolha do Pacaembú como sede dos dois jogos da final, que isso é tudo invenção. Mas deixa que digam, que pensem, que falem... (só para citar um famoso verso escrito pelo Thio e cedido ao Alberto Paz).
            O primeiro jogo o Santos ganhou, mas o segundo não, vitória do Ituano pelo mesmo placar. Disputa de pênalti, o coração do Thio disparou. Foram precisos 16 cobranças para que a justiça se desse e o título de campeão fosse ao grande merecedor, o Ituano.
            Quem reparar no vídeo de premiação ao final da épica partida verá que os jogadores estão à procura do Thio Therezo para referenciá-lo como o torcedor maior do Ituano. Todos eles sabiam de sua importância para o sucesso do time. Mas, humilde que sempre foi, o Thio já tinha saído de mansinho do estádio e estava a caminho de casa.
            Feliz e satisfeito... e já pensando no tricampeonato.
            Nem é preciso dizer que, após esse segundo título, o AEI voltou a crescer. Antigos membros-fundadores voltaram à ativa, outros que ninguém sabia que torciam pelo Ituano apareceram do nada. Não demorou muito, foram isolando o Thio do AEI (inveja? busca de protagonismo? vai saber...) e, por fim, desgostoso com as traições e com o desrespeito, ele pediu para sair oficialmente do AEI.
            Mas isso é outra estória, de como o AEI se tornou o AEIOU...

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Não sou imparcial, sou Ituano!


            Se quer imparcialidade, não discuta futebol!!!
            Isso era o que sempre dizia o Thio Therezo quando vinham com polêmicas tais como “foipenalti-nãofoi-masoutrodiavocêachouumlanceparecido-masessenãofoi-naquelelance-foidiferente-claroquefoifoicomoseutime-juizladrão”. Sim, nada mais fla-flu que uma discussão entre torcedores de times adversários.
            - Não há jeito, não sou imparcial, sou Ituano!!! - o Thio dizia nessas horas de grande polêmica, antes de se levantar, mão no peito, e cantar:
Olê olá, pode o mundo se acabar
Olê olê, vamos sempre com você
Não há ninguém como tu
Ah, galo rubro-negro de Itu!
para um estupefato e impressionado bar. Ao final do glorioso hino do Ituano, cantado com toda a emoção a que lhe é de direito, o bar chegava ao seu improvável silêncio profundo, happy hour de sexta-feira, em admiração a tão original letra! (ninguém ousaria dizer nada sobre a belíssima voz do Thio, cantor diletante de óperas e chorinhos, pois em questões envolvendo assuntos futebolísticos, ninguém quer dar ponto aos adversários).
            - Não sou imparcial, sou Ituano!!! – concluía o Thio relembrando o grito de guerra de seu time predileto e dando o sinal para que a balbúrdia retornasse ao ambiente depois dessa singela pausa esportivo-cultural.
            Desde que nos conhecemos por gente, sabemos do fanatismo do Thio Therezo pelo Ituano, ele que acompanhou muito de perto todas as conquistas de campeonato paulista de seu time. Todas elas, todas as duas!
            Sem fugirmos muito ao tema, cabe lembrar a polêmica em que o Thio se meteu um dia com aquele famoso jornalista esportivo que chamou o exuberante Campeonato Paulista de paulistinha e, no meio da discussão, o Ituano de time pequeno e provinciano. Após uma troca de artigos entre um ofendido Thio e o tal jornalista em um grande jornal da imprensa paulista, esse segundo veio com a tal teoria da imparcialidade a que aparentemente todos deveriam carneirosamente seguir, ao que o Thio respondeu com a famosa frase:
            - Quem quer imparcialidade, que não discuta futebol...
            Nem religião... pensou em acrescentar.
            Nem política... evitou esse complemento, que fiquemos no âmbito esportivo!
            A polêmica se deu por conta do primeiro título de campeão paulista ganho pelo Ituano em 2002, aquele ano em que os tais principais clubes (quem é que define isso, afinal?) disputaram um torneio em paralelo. Nada, nem o reconhecimento oficial pela FPF de que o título foi merecidamente ganho pelo Ituano reduziu a sanha daqueles que queriam desqualificar o campeonato e o merecido título do glorioso galo rubro-negro de Itu! Injustiça!!!!
            Não por menos, o Thio Therezo reuniu os torcedores mais fanáticos de seu time e fundou o AEI, os tais Amigos Entusiastas do Ituano. Como lema, a frase que depois se tornaria o grito de guerra do time: Não sou imparcial, sou Ituano! e, como meta, difundir os valores, originários e agregados, sociais, culturais e esportivos da grandiosa comunidade ituana. Como membro-fundador e presidente, o Thio Therezo muito trabalhou para que aquele primeiro título de campeão paulista não caísse no esquecimento ou fosse desqualificado. Nem é preciso dizer que ele se meteu em muita polêmica político-esportiva por conta disso. Otimista que sempre foi, o Thio acreditava, ainda acredita mesmo com todas as experiências em contrário, que uma boa argumentação lógica prevaleceria ao final de qualquer embate. Haja otimismo! Mas isso são outras questões.
            Em 2014, o Ituano ganhou o seu segundo título de campeão paulista, em jogo memorável no Pacaembú, e foi finalmente aceito como um dos grandes times do Estado de São Paulo, no sólido grupo G5-SP (ao menos os vereadores de Itu assim entenderam...). São tantas estórias que, havendo tempo, as relembraremos todas aqui.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Inteligências - II

            Falando em inteligências, há uma que está muito em voga, a tal artificial, aquela que vai aprendendo a partir de uma interação com outros seres supostamente mais inteligentes. Uns ditos algoritmos, tais como as receitas de bolo da vovó, fazem com que esses aparelhos aprendam algo sobre você (verdadeiro ou falso, tanto faz) e, tão logo isso acontece, eles se tornam arrogantes e você tem que se submeter aos seus prazeres sem pestanejar.
            O pior é quando alguma inteligência artificial se torna vingativa, ou porque não foi com a sua cara ou simplesmente porque se sente ameaçada. No meu caso, deve ser a primeira opção visto que, ao menos por conta de minha parca inteligência, não constituo ameaça a quem quer que seja, pessoa ou equipamento.
            Mas aconteceu comigo sim, estou sendo vítima de uma vingança sem sentido mas perversa de uma inteligência artificial. Conto como tudo começou.
            Faz anos eu costumo viajar semanalmente a trabalho, ou quase semanalmente se formos ser mais precisos. Para ter aquela esperança de alguma vantagem futura, viajo sempre pela mesma companhia, a Lantã, sim aquela companhia que... é isso mesmo, aquela que já fez... sem dúvida alguma, sim senhor... aquela que todos sabemos o que esperar.
            No começo, tudo ia bem. Chegava ao aeroporto, despachava a bagagem enquanto fazia meu check in e embarcava (modo de dizer, até parece que eles não estavam sistematicamente atrasados...).  Um dia, sei lá por que, me mandam uma mensagem perguntando a minha opinião sobre um voo que tinha feito e, ao final, escreveram que responder à enquete não trazia nenhum custo a mim, era o tal de grátis... Ri, é o que nos resta nessas horas, só faltava eu ter que pagar também para dar minha opinião sobre serviços prestados por outros contra mim.
            Resolvi ser gentil e respondi com uma nota, mas, como não estava totalmente satisfeito com o serviço, não dei à empresa a nota máxima. Mas, poxa, também não esculachei... Em todo o caso, acredito que eles acenderam o sinal amarelo comigo. O algoritmo logo me marcou como possível persona non grata em letras garrafais.
            Na semana seguinte, a mesma coisa. Voo atrasado, sem informações precisas no balcão e uma mensagem pedindo a minha opinião, sem custo! Nota mais baixa dessa vez e, acho que foi aí que começou a vingança.
            Primeiro, não pude mais reservar com antecedência o meu assento, tinha que me contentar com o assento que eles escolhiam. Logo, começaram a me forçar a fazer o tal check in pela internet. Até aí, tudo bem, gastava-se um tempo em casa fazendo algo que, esperava, seria recuperado no aeroporto. Mas, nada, ao chegar lá, como tinha bagagem para despachar, ainda teria que pegar uma fila. Com o tempo, chegamos a duas filas, uma para retirar a tal etiqueta de bagagem em uma máquina e outra para entregá-la devidamente etiquetada e o check in, que antes dependia apenas de uma ação, agora dependia de três. Além de ter que aprender a lidar com máquinas que sistematicamente não me identificam corretamente (olha aí mais um estágio da vingança...). Acho que, em um desses dias, devo ter comentado com algum atendente sobre essas mudanças e a vingança da inteligência artificial se sofisticou. Só pode ter sido isso.
            Não contente em fazer o que já narrei, durante o voo passaram a me recusar comida ou bebida. Não que tenha sido assim tão drástico. Mas antes, vinha sanduíche quentinho e bebida, depois reduziram para amendoim e, logo, para uma bolachinha vencida. Por fim, nem bolacha nem bebida. Um amigo otimista que também está sendo castigado por suas opiniões no sistema, disse-me que ao menos pularam a fase da tal farinata, da tal ração humana, o que teria sido muito humilhante há de se convir.
            Agora tenho que pagar para despachar a minha bagagem e o carrinho do Mercado Lantã passa correndo pelo corredor do avião. Um dia, quase que tive que ir atrás dele para conseguir um copo de água, mas sem gelo (que, aparentemente, é tabelado). Nem um sorriso da aeromoça recebi, ela também deve estar a par da opinião da inteligência artificial a meu respeito e, sem opções, teria aderido ao boicote.
            E, para assistir algo no voo tenho que baixar um aplicativo e comprar o entretenimento... e trazer de casa o meu fone de ouvido.
            Bastasse tudo isso, a minha bagagem, nem preciso dizer, era sempre a última a chegar à esteira do aeroporto de destino.
            Cansado, resolvi, há um mês, mudar de estratégia e, a partir de então, sempre dou nota máxima e faço comentários mais que elogiosos, não importa o que sinta realmente. Tenho esperança de que conseguirei reverter esse tratamento a que me submetem e a inteligência artificial deixe de ser tão vingativa...
            Acho até que já está funcionando, minha bagagem não foi a última a chegar ontem...

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Inteligências - I

            Sou do tempo em que a palavra inteligência era usada como atributo apenas para seres humanos (e, com certa parcimônia, para alguns outros seres viventes), apesar de, obviamente, não englobar todos esses. Mas agora, tecidos, sucos, tijolos e até postes por vezes têm merecido, em alguns círculos menos ortodoxos, esse qualificativo, o que me deixa um pouco preocupado, pois ou perdemos alguma coisa ao longo dos anos, ou o desenvolvimento tecnológico é tal que não se consegue mais perceber uma diferença que antes era tão evidente...
            Acontece que semana passada, ao ir à cantina aqui perto de casa, vi no menu do dia uma tal de “lasanha inteligente”. Curioso que sou, pedi uma sem pestanejar, ainda mais ser essa uma de minhas comidas prediletas. Estava sozinho aquele dia e com vontade de conversar um pouco, seguramente essa lasanha iria me proporcionar um bom e inteligente diálogo enquanto a saboreasse.
            Ela veio e, prudentemente como sempre faço com inteligências que desconfio serem superiores à minha, tentei puxar assunto com algumas frases meio neutras sobre o tempo, o clima, o trânsito, essas coisas para lá de banais. Pode ser que a lasanaha até fosse inteligente, mas deveria ser muda ou surda, pois não reagiu de forma alguma às minhas provocações sonoras. Talvez fosse arrogante demais, daí o fato dela me ignorar apesar de meus gentis e repetidos esforços no sentido de mantermos um civilizado contato que fosse.
            Chamei o garçom e perguntei a ele sobre a inteligência da lasanha como fora anunciado em destaque pela cantina. Acredito que ele não tinha sido bem treinado para responder a isso, pois gaguejou, olhou para os lados procurando ajuda, tentou alguma explicação padrão e, diante de minha cara de interrogação, foi chamar o gerente. Ao final, fiquei sabendo que, aparentemente, havia uma substância nela que ajudava na quebra de gorduras facilitando a digestão...
            Ah! É isso? Muito inteligente.
            Mas desconfio que essa substância tão superior, apesar de inteligente, não possua os aparelhos de produção e de recepção de ondas sonoras. Daí o seu silêncio. Nada de novo, seres muito superiores em geral não escutam o que nós pobres mortais falamos.
            Sem problema, puxei assunto com o garçom e tivemos uma agradável conversa enquanto eu comia a minha lasanha, o restaurante estava meio vazio aquele dia, véspera de feriado é sempre assim.