quinta-feira, 28 de junho de 2018
certos prevérbios
Reféns ou exibidas, certas palavras se humilham e se submetem a muitas coisas, das pré-mentiras às pós-verdades.
Em cima daquela linha, se você olhar praquele lado verá o fim do mundo, mas se olhar pro lado oposto, ah! será só o começo dele.
Estranho mundo esse em que as meras convicções dos eleitos podem levar pessoas à fogueira.
O máximo que consigo com as minhas convicções é uma boa noite de sono.
O cozimento em fogo brando é para o puro deleite dos eleitos.
quinta-feira, 21 de junho de 2018
Solideo
A rapidez com que você me disse que
queria fazer amor comigo me desconcertou a princípio. Tão pouco tempo se
passara desde o dia em que ele morreu (na realidade, agora nós dois deitados,
suados e exaustos, você silencioso como sempre nestas horas; na realidade agora
percebo que de fato não faz tão pouco tempo assim desde a sua morte. Meses já,
talvez anos, não me lembro mais ao certo.).
[[ Esse conto saiu inicialmente em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", publicado em 1996 pela Editora Escrituras.]]
Outro dia ainda estávamos lá naquele
cemitério israelita; você com o solideo que lhe cobre a careca que começa a
crescer à medida em que você se aproxima dos quarenta, mais jovem sim, mas ao
mesmo tempo isso lhe faz parecer muito sério. Pensa nele, eu sei.
Você não quis vê-lo no caixão. Nem
eu tampouco. Aquela estória de se querer guardar outras lembranças das pessoas.
Essas desculpas que se costumam dar nestas horas e que são perfeitamente
aceitáveis. Mas o fato é que não o conheci bem. Nem creio que você o tenha
conhecido também apesar de tudo o que fizeram juntos nestes anos todos. Juntos
e separados, se é que você me entende. E eu sei que sim!
Muita gente lá; a maioria da
universidade, alguns amigos de outros lugares, alguns familiares. Mas uma
porção de seus melhores amigos não vieram, não deve ser fácil vê-lo morto. Olho
diretamente o seu rosto e você parece distante e eu sei em que pensa. Tento
imaginá-lo também mas não consigo.
Um velho, um tio talvez, talvez um
rabino, chega-se ao bebedouro que está bem à nossa frente, pega um copo de
plástico, vagarosamente. Um pouco de água, mas isso não parece contentá-lo.
Olha a água no copo com estranheza, com aquela calma específica dos velhos,
como se não existisse nada mais no mundo que pudesse destruir aquele instante.
“Mas o que é isto? Uma sujeira em minha água”, deve pensar o velho rabino, que
agora joga a água fora e recomeça o lento processo de encher o copo de água e
esvaziá-lo em sua boca.
Não descreverei mais a cena mas
naquela hora ou tanto em que ficamos ali à espera de algo que não veio, pelo
menos três vezes o tal velho lá voltou e tentou matar a sua insaciável sede.
Talvez ele só estivesse ali à espera de algo, matando o tempo à espera de algo,
neste meio tempo bebendo água, matando o tempo afogando-o. Talvez tal qual eu
que fico agora angustiada com a tranquilidade da cena e tento,
desesperadamente, imaginá-lo e não consigo mais. Mas resolver isso é fácil,
bastaria levantar-me, atravessar esta multidão que me separa da sala onde está
o caixão e ir vê-lo, recordar as suas feições e com isso me livrar do peso que
está sobre mim agora, que não é apenas a curiosidade de me lembrar de suas
feições. Preciso de uma imagem dele em minha cabeça para poder voltar a me
relacionar com você. Apavora-me a ideia de fazermos amor, ou somente lhe
acariciar, sabendo que ele existiu e que nada sobrou. A você sim deve ter
sobrado um montão de coisas, lembranças e vivências com certeza mas não a mim,
descubro agora. A cor dos olhos bastaria; um sorriso, se é que ele sorria
assim; um nariz arrebitado? Alto?
E de repente estou de pé, todos a
caminharem para dentro da sala. Nem sei se fui eu que me levantei abruptamente
e induzi todos a me seguirem ou se apendas fui induzida por algum movimento de
pessoas naquela direção.
Um velório é um velório, um enterro
é um enterro, não há nada de muito especial nisso. E, é claro, estamos todos
pensando nele e na morte horrível que teve. O longo sofrimento no hospital.
Lágrimas, a vida dele e a nossa, que mais é possível se pensar em um enterro? A
mim, ele agora é apenas um nome, cheguei tarde demais e não o vi e isso, tenho
a certeza, atormentará o nosso relacionamento. Um fantasma é um fantasma, mas
um fantasma sem feições é algo impossível de se livrar.
Suas mãos estão quentes nas minhas.
Não entendo uma palavra que o rabino diz. Por fim, vamos embora.
Disseram-me depois que nos velórios
judeus os caixões ficam sempre fechados. Não importa, sei que terei de conviver
com os meus pavores e com o fato de que eles não possuem feições.
setembro
de 1991, São Paulo
[[ Esse conto saiu inicialmente em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", publicado em 1996 pela Editora Escrituras.]]
quinta-feira, 14 de junho de 2018
O dia em que lhe disseram que estava morto
Existe certamente uma diferença significativa entre se
saber, teoricamente falando, mortal e, em outro extremo, ouvir do médico que
lhe encara com olhar sem emoção que você tem uma doença incurável que já está em
fase terminal.
“Mas... é certo ?” você ainda tenta uma confirmação,
incrédulo que está, deixando transparecer aquela ingenuidade desesperadora tão
natural nessas horas.
“É certo !” e foi tudo que receberá de resposta, o médico
agora preenche, concentrado em seus próprios pensamentos, as fichas
necessárias, prescreve os remédios que lhe imporão uma rotina de preocupações e
insana expectativa e se despede com um olhar distante de resignação.
solo
así he de irme?
Você sairá do consultório e, ainda na fase de espanto e
negação, começará a sentir finalmente os sintomas que deveria estar sentindo há
tempos, os exames médicos não mentem. Procurará uma velha amiga para chorar nos
ombros.
cómo
las flores que perecieron?
Como, por defeito de fabricação, você é um daqueles caras
inegavelmente seculares, converter-se, nesse momento, ao culto de um dos
inúmeros deuses disponíveis estará definitivamente fora de cogitação. Mas
talvez não o suficientemente secular para descartar a importância dos rituais.
nada
quedará em mi nombre?
É o momento de olhar para trás, é inevitável, quando não
se tem futuro, só resta o passado. E aí, você se dá conta repentinamente de que
não será eternizado em uma estátua ou em um nome de rua. E que, mais
importante, não dá a mínima para isso.
nada
de mi fama aqui em la tierra?
E então você faz uma festa, enche a casa de amigos e
flores, chama um DJ e bebem até aquele amanhecer que enche a todos de nostalgia
e intimismo.
al
menos flores, al menos cantos!
Pronto !
Começou a civilização e criou-se a antropologia...
Mendoza, março de
2012
(Cantos
de Hexotzingo)
[[conto publicado em meu livro "Contos&Vinténs", Editora A Girafa, 2012]]
No próximo dia 20 de junho, na sede da União Brasileira de Escritores em São Paulo (a partir das 19 horas), haverá o lançamento da antologia de contos "Contos de Amor de Dor" publicada pela Editora UBE. Essa antologia traz um conto meu chamado "Conspirações". Muito contente por ter sido selecionado.
quinta-feira, 7 de junho de 2018
Etiquetas - segunda parte
Semana passada, falei do TOC que
atormenta o Thio Therezo, o de não suportar ver etiquetas para fora das roupas.
Dizia que, dia outro, ele chegara em casa muito eufórico e falante e, como é
comum nessas horas, a sua fala refletiu muito mais a rapidez de seus
pensamentos que o ritmo normal de nosso entendimento. Nessas horas, é preciso
calma, melhor mesmo é deixá-lo falar atabalhoadamente até que os ritmos de
pensamento-fala-entendimento, dele e nossos, se harmonizem ao final.
Demoramos a perceber que ele tinha
encontrado o seu par, alguém que compreendia e muito suas necessidades quanto
àquele específico TOC. Juntando as peças do que pudemos entender a partir da
narração inicialmente caótica do Thio, soubemos então que ele estava em uma
imensa fila numa livraria quando tudo aconteceu (há de haver pessoas que hão de
achar isso pura ficção, visto que ninguém compra livros nesse pais, mas não, nem
tudo está perdido, por vezes há até fila em livraria...).
Pois bem, estava ele em uma imensa
fila numa livraria quando o seu olhar, inquieto, fixou-se sem mais nem menos em
uma etiqueta que timidamente se exibia pra fora da blusa da mulher à sua frente.
TOC, TOC, TOC, pânico!
Seguindo o sugerido pela ATOCA (a
famosa associação dos portadores anônimos de TOC) para esses torturantes
momentos, ele murmurou para si mesmo a usual reza e forçou o desvio de seu
olhar. O receituário é claro: como primeiro passo, deve-se desviar o olhar a
todo custo; não conseguindo, é preciso ignorar, mesmo suando frio; não
conseguindo sequer isso, o máximo, e isso em casos que beirem o pânio, cabe
dirigir-se à pessoa com a etiqueta pra fora e, singelamente, relatar o
ocorrido, torcendo para que essa atitude não seja mal interpretada.
Seguiu esse receituário passo a
passo. Por fim, muito gentilmente, como normalmente é de seu feitio, o Thio
alertou a mulher à sua frente sobre aquela singularidade em suas vestes. Para
sua surpresa, ela agradeceu e pediu-lhe que fosse ele a reestabelecer a ordem
ajeitando a etiqueta para dentro de sua blusa.
Surpreso, desnorteado e com o suor
frio a lavar o seu rosto, o Thio ainda perguntou-lhe se era isso mesmo que ela
queria, o que foi confirmado com um belo sorriso. Sem mais delongas, em um
singelo mas firme movimento, os dedos do Thio fizeram com que desaparecesse da
vista de todos a infratora etiqueta.
Mera impressão dele ou fato real, o
que aconteceu foi que, ao roçar levemente seu dedo na pele da ainda
desconhecida mulher à sua frente, o Thio percebeu um quase inaudível gemido
acompanhado de olhos fechados em uma prolongada piscadela. Sentiu ele também um
ligeiro tremor na voz quando ela agradeceu, ambos arrepiados e extasiados pela ímpar
experiência.
Seguiu-se um café, uma caminhada
pelo parque e logo estavam trocando confidências sobre os respectivos TOCs. Se
o dele era não suportar ver etiquetas para fora de roupas, o dela era quase um
fetiche, o de permitir que outros as recolocassem em seus devidos lugares.
Eles saíram algumas vezes, tiveram
seus momentos íntimos, mas o principal era quando eles se encontravam e ela,
displicentemente, deixava à mostra inúmeras etiquetas para delírio do Thio, e
dela também, que, com todo o cuidado do mundo, recolocava-as onde nunca
deveriam ter ousado sair. Uma a uma, sensualmente como bem aprendera com ela.
Era o ápice de seus encontros e
assim foi até que perceberam o inevitável, amor algum perdura baseado em um TOC
apenas. Sem desavenças, foram se afastando. Hoje, são amigos ainda, grandes
amigos aliás, e, por vezes, até têm suas
recaídas e se reencontram para demonstrações explícitas de seus transtornos.
Ora bolas, afinal um TOC é para ser
vivido em sua plenitude, sem complacência!
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