quinta-feira, 7 de junho de 2018

Etiquetas - segunda parte


            Semana passada, falei do TOC que atormenta o Thio Therezo, o de não suportar ver etiquetas para fora das roupas. Dizia que, dia outro, ele chegara em casa muito eufórico e falante e, como é comum nessas horas, a sua fala refletiu muito mais a rapidez de seus pensamentos que o ritmo normal de nosso entendimento. Nessas horas, é preciso calma, melhor mesmo é deixá-lo falar atabalhoadamente até que os ritmos de pensamento-fala-entendimento, dele e nossos, se harmonizem ao final.
            Demoramos a perceber que ele tinha encontrado o seu par, alguém que compreendia e muito suas necessidades quanto àquele específico TOC. Juntando as peças do que pudemos entender a partir da narração inicialmente caótica do Thio, soubemos então que ele estava em uma imensa fila numa livraria quando tudo aconteceu (há de haver pessoas que hão de achar isso pura ficção, visto que ninguém compra livros nesse pais, mas não, nem tudo está perdido, por vezes há até fila em livraria...).
            Pois bem, estava ele em uma imensa fila numa livraria quando o seu olhar, inquieto, fixou-se sem mais nem menos em uma etiqueta que timidamente se exibia pra fora da blusa da mulher à sua frente.
            TOC, TOC, TOC, pânico!
            Seguindo o sugerido pela ATOCA (a famosa associação dos portadores anônimos de TOC) para esses torturantes momentos, ele murmurou para si mesmo a usual reza e forçou o desvio de seu olhar. O receituário é claro: como primeiro passo, deve-se desviar o olhar a todo custo; não conseguindo, é preciso ignorar, mesmo suando frio; não conseguindo sequer isso, o máximo, e isso em casos que beirem o pânio, cabe dirigir-se à pessoa com a etiqueta pra fora e, singelamente, relatar o ocorrido, torcendo para que essa atitude não seja mal interpretada.
            Seguiu esse receituário passo a passo. Por fim, muito gentilmente, como normalmente é de seu feitio, o Thio alertou a mulher à sua frente sobre aquela singularidade em suas vestes. Para sua surpresa, ela agradeceu e pediu-lhe que fosse ele a reestabelecer a ordem ajeitando a etiqueta para dentro de sua blusa.
            Surpreso, desnorteado e com o suor frio a lavar o seu rosto, o Thio ainda perguntou-lhe se era isso mesmo que ela queria, o que foi confirmado com um belo sorriso. Sem mais delongas, em um singelo mas firme movimento, os dedos do Thio fizeram com que desaparecesse da vista de todos a infratora etiqueta.
            Mera impressão dele ou fato real, o que aconteceu foi que, ao roçar levemente seu dedo na pele da ainda desconhecida mulher à sua frente, o Thio percebeu um quase inaudível gemido acompanhado de olhos fechados em uma prolongada piscadela. Sentiu ele também um ligeiro tremor na voz quando ela agradeceu, ambos arrepiados e extasiados pela ímpar experiência.
            Seguiu-se um café, uma caminhada pelo parque e logo estavam trocando confidências sobre os respectivos TOCs. Se o dele era não suportar ver etiquetas para fora de roupas, o dela era quase um fetiche, o de permitir que outros as recolocassem em seus devidos lugares.
            Eles saíram algumas vezes, tiveram seus momentos íntimos, mas o principal era quando eles se encontravam e ela, displicentemente, deixava à mostra inúmeras etiquetas para delírio do Thio, e dela também, que, com todo o cuidado do mundo, recolocava-as onde nunca deveriam ter ousado sair. Uma a uma, sensualmente como bem aprendera com ela.
            Era o ápice de seus encontros e assim foi até que perceberam o inevitável, amor algum perdura baseado em um TOC apenas. Sem desavenças, foram se afastando. Hoje, são amigos ainda, grandes amigos aliás,  e, por vezes, até têm suas recaídas e se reencontram para demonstrações explícitas de seus transtornos.
            Ora bolas, afinal um TOC é para ser vivido em sua plenitude, sem complacência!

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