Outro dia ainda estávamos lá naquele
cemitério israelita; você com o solideo que lhe cobre a careca que começa a
crescer à medida em que você se aproxima dos quarenta, mais jovem sim, mas ao
mesmo tempo isso lhe faz parecer muito sério. Pensa nele, eu sei.
Você não quis vê-lo no caixão. Nem
eu tampouco. Aquela estória de se querer guardar outras lembranças das pessoas.
Essas desculpas que se costumam dar nestas horas e que são perfeitamente
aceitáveis. Mas o fato é que não o conheci bem. Nem creio que você o tenha
conhecido também apesar de tudo o que fizeram juntos nestes anos todos. Juntos
e separados, se é que você me entende. E eu sei que sim!
Muita gente lá; a maioria da
universidade, alguns amigos de outros lugares, alguns familiares. Mas uma
porção de seus melhores amigos não vieram, não deve ser fácil vê-lo morto. Olho
diretamente o seu rosto e você parece distante e eu sei em que pensa. Tento
imaginá-lo também mas não consigo.
Um velho, um tio talvez, talvez um
rabino, chega-se ao bebedouro que está bem à nossa frente, pega um copo de
plástico, vagarosamente. Um pouco de água, mas isso não parece contentá-lo.
Olha a água no copo com estranheza, com aquela calma específica dos velhos,
como se não existisse nada mais no mundo que pudesse destruir aquele instante.
“Mas o que é isto? Uma sujeira em minha água”, deve pensar o velho rabino, que
agora joga a água fora e recomeça o lento processo de encher o copo de água e
esvaziá-lo em sua boca.
Não descreverei mais a cena mas
naquela hora ou tanto em que ficamos ali à espera de algo que não veio, pelo
menos três vezes o tal velho lá voltou e tentou matar a sua insaciável sede.
Talvez ele só estivesse ali à espera de algo, matando o tempo à espera de algo,
neste meio tempo bebendo água, matando o tempo afogando-o. Talvez tal qual eu
que fico agora angustiada com a tranquilidade da cena e tento,
desesperadamente, imaginá-lo e não consigo mais. Mas resolver isso é fácil,
bastaria levantar-me, atravessar esta multidão que me separa da sala onde está
o caixão e ir vê-lo, recordar as suas feições e com isso me livrar do peso que
está sobre mim agora, que não é apenas a curiosidade de me lembrar de suas
feições. Preciso de uma imagem dele em minha cabeça para poder voltar a me
relacionar com você. Apavora-me a ideia de fazermos amor, ou somente lhe
acariciar, sabendo que ele existiu e que nada sobrou. A você sim deve ter
sobrado um montão de coisas, lembranças e vivências com certeza mas não a mim,
descubro agora. A cor dos olhos bastaria; um sorriso, se é que ele sorria
assim; um nariz arrebitado? Alto?
E de repente estou de pé, todos a
caminharem para dentro da sala. Nem sei se fui eu que me levantei abruptamente
e induzi todos a me seguirem ou se apendas fui induzida por algum movimento de
pessoas naquela direção.
Um velório é um velório, um enterro
é um enterro, não há nada de muito especial nisso. E, é claro, estamos todos
pensando nele e na morte horrível que teve. O longo sofrimento no hospital.
Lágrimas, a vida dele e a nossa, que mais é possível se pensar em um enterro? A
mim, ele agora é apenas um nome, cheguei tarde demais e não o vi e isso, tenho
a certeza, atormentará o nosso relacionamento. Um fantasma é um fantasma, mas
um fantasma sem feições é algo impossível de se livrar.
Suas mãos estão quentes nas minhas.
Não entendo uma palavra que o rabino diz. Por fim, vamos embora.
Disseram-me depois que nos velórios
judeus os caixões ficam sempre fechados. Não importa, sei que terei de conviver
com os meus pavores e com o fato de que eles não possuem feições.
setembro
de 1991, São Paulo
[[ Esse conto saiu inicialmente em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", publicado em 1996 pela Editora Escrituras.]]
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