quinta-feira, 21 de junho de 2018

Solideo

            A rapidez com que você me disse que queria fazer amor comigo me desconcertou a princípio. Tão pouco tempo se passara desde o dia em que ele morreu (na realidade, agora nós dois deitados, suados e exaustos, você silencioso como sempre nestas horas; na realidade agora percebo que de fato não faz tão pouco tempo assim desde a sua morte. Meses já, talvez anos, não me lembro mais ao certo.).
            Outro dia ainda estávamos lá naquele cemitério israelita; você com o solideo que lhe cobre a careca que começa a crescer à medida em que você se aproxima dos quarenta, mais jovem sim, mas ao mesmo tempo isso lhe faz parecer muito sério. Pensa nele, eu sei.
            Você não quis vê-lo no caixão. Nem eu tampouco. Aquela estória de se querer guardar outras lembranças das pessoas. Essas desculpas que se costumam dar nestas horas e que são perfeitamente aceitáveis. Mas o fato é que não o conheci bem. Nem creio que você o tenha conhecido também apesar de tudo o que fizeram juntos nestes anos todos. Juntos e separados, se é que você me entende. E eu sei que sim!
            Muita gente lá; a maioria da universidade, alguns amigos de outros lugares, alguns familiares. Mas uma porção de seus melhores amigos não vieram, não deve ser fácil vê-lo morto. Olho diretamente o seu rosto e você parece distante e eu sei em que pensa. Tento imaginá-lo também mas não consigo.
            Um velho, um tio talvez, talvez um rabino, chega-se ao bebedouro que está bem à nossa frente, pega um copo de plástico, vagarosamente. Um pouco de água, mas isso não parece contentá-lo. Olha a água no copo com estranheza, com aquela calma específica dos velhos, como se não existisse nada mais no mundo que pudesse destruir aquele instante. “Mas o que é isto? Uma sujeira em minha água”, deve pensar o velho rabino, que agora joga a água fora e recomeça o lento processo de encher o copo de água e esvaziá-lo em sua boca.
            Não descreverei mais a cena mas naquela hora ou tanto em que ficamos ali à espera de algo que não veio, pelo menos três vezes o tal velho lá voltou e tentou matar a sua insaciável sede. Talvez ele só estivesse ali à espera de algo, matando o tempo à espera de algo, neste meio tempo bebendo água, matando o tempo afogando-o. Talvez tal qual eu que fico agora angustiada com a tranquilidade da cena e tento, desesperadamente, imaginá-lo e não consigo mais. Mas resolver isso é fácil, bastaria levantar-me, atravessar esta multidão que me separa da sala onde está o caixão e ir vê-lo, recordar as suas feições e com isso me livrar do peso que está sobre mim agora, que não é apenas a curiosidade de me lembrar de suas feições. Preciso de uma imagem dele em minha cabeça para poder voltar a me relacionar com você. Apavora-me a ideia de fazermos amor, ou somente lhe acariciar, sabendo que ele existiu e que nada sobrou. A você sim deve ter sobrado um montão de coisas, lembranças e vivências com certeza mas não a mim, descubro agora. A cor dos olhos bastaria; um sorriso, se é que ele sorria assim; um nariz arrebitado? Alto?
            E de repente estou de pé, todos a caminharem para dentro da sala. Nem sei se fui eu que me levantei abruptamente e induzi todos a me seguirem ou se apendas fui induzida por algum movimento de pessoas naquela direção.
            Um velório é um velório, um enterro é um enterro, não há nada de muito especial nisso. E, é claro, estamos todos pensando nele e na morte horrível que teve. O longo sofrimento no hospital. Lágrimas, a vida dele e a nossa, que mais é possível se pensar em um enterro? A mim, ele agora é apenas um nome, cheguei tarde demais e não o vi e isso, tenho a certeza, atormentará o nosso relacionamento. Um fantasma é um fantasma, mas um fantasma sem feições é algo impossível de se livrar.
            Suas mãos estão quentes nas minhas. Não entendo uma palavra que o rabino diz. Por fim, vamos embora.
            Disseram-me depois que nos velórios judeus os caixões ficam sempre fechados. Não importa, sei que terei de conviver com os meus pavores e com o fato de que eles não possuem feições.

            setembro de 1991, São Paulo



[[ Esse conto saiu inicialmente em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", publicado em 1996 pela Editora Escrituras.]]

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