quinta-feira, 26 de julho de 2018

Simetria - parte I

          E hoje, este gato é a única marca da presença dela aqui em casa. Daí a minha relutância em abandoná-lo. Por isso não o expulsei aos chutes como já pensei fazer tantas vezes; por isso ele ainda mora aqui, apesar de tudo. 
          Na quinta-feira, dois anos atrás, ao chegar em casa encontrei-a sentada à porta de entrada. Desajeitada e ansiosa, esperava por mim. Algumas malas, sacolas e uma vontade de ficar. Um sorriso maroto e um gato em seu colo. Um olhar sincero e muitas dúvidas, que sempre as teve. Que sempre as tive eu também, aliás. 
          E sempre tive grandes dificuldades em dizer não. Ainda mais naquelas circunstâncias. Fora um dia complicado de se administrar, maçante e massacrante e o que mais eu queria era poder chegar em casa e ligar para ela vir correndo para podermos nos amar longamente como bem foi nas últimas semanas. As pequenas derrotas do dia-a-dia exigem companhias afetuosas. Nada de ficar em casa sozinho à noite depois delas, mas nem precisei ligar, ela já estava lá. 
          Ela ali à porta de minha casa era o sim que eu queria escutar pelo telefone, era tudo que eu queria para esta noite: uma longa trepada após o jantar. Mas agora, frente ao portão de casa, não pude retribuir totalmente o seu sorriso pois aquelas malas ali a seus pés me incomodavam. Por que as malas?
          Sim, as malas ali a seu lado, com todos os seus apetrechos, era a sua maneira de dizer que sim, estava disposta a vir naquela noite para fazermos amor e, isto sim, aquela tralha toda era a sua disposição de ficar por aqui sem qualquer discussão, sem qualquer comentário, sem qualquer pedido ou insinuação. Quem é que precisaria disso tudo quando nos dávamos tão bem? Ela não com certeza. Eu sim, no entanto. 
          Minha disposição naquele dia, minha incompetência nas negativas, seu olhar e suas coxas, uma ameaça de chuva, isto é, uma grande conjunção cósmica me levou a apenas sorrir, abrir a porta e ajudá-la a entrar com a bagagem. Levei suas malas, seus pacotes, sua insegurança para dentro. Ela e o gato. Ela, o gato e minha total incompetência em dizer não a eles. 
          Enquanto ela toma um banho, necessário depois de um dia agitado, eu tento achar nos caóticos armários algo para se comer, enquanto isto e aquilo pensamos os dois nos acertos e desacertos dessa decisão. Será que ela pensou muito antes de se mudar? Decisão ou impulso, nunca soube ao certo. 
          O gato me olha com um misto de desdém e interesse, procura saber ansioso se estará devidamente incluído em nosso primeiro jantar desta vida a dois. Desdém e interesse, assim são os olhares dos gatos e assim será o deste gato comigo. Ao longo destes últimos dois anos em que convivemos juntos nesta casa será sempre assim: interesse e desdém. Mais interesse que qualquer outra coisa agora que me convenço, contrariado, que o grande jantar de nossas vidas será um mero macarrão ao molho de sardinhas. Sem sequer queijo ralado, que descubro, um tanto quanto contrariado, já acabou. 
          Ouço o silêncio das águas, um assobio feliz e logo ela entrará pela porta da cozinha vestindo a minha camiseta predileta, suas belas pernas à mostra, um beijo em minha nuca, fuçará as panelas e um sorriso, irônico? desapontado? Sentará afinal em um dos banquinhos feliz e satisfeita com a vida, o gato ronronando em seu colo. O molho insonso já está quase pronto, queimo os meus dedos na panela de macarrão, um avião passa, ela me pergunta algo e eu respondo automaticamente. O rádio toca uma música estranha e eu também preciso de um banho. Ela espia o jornal e eu ponho a mesa. 
          Imaginar que passamos os vários meses de nossa vida conjugal comendo macarrão com sardinhas ao som de Philip Glass é um pouco de exagero e seguramente muito longe da realidade. Mas de alguma forma, aquela é a imagem mais forte que trago de nosso relacionamento, aquele primeiro dia de vida em comum, seus pequenos seios arrepiados debaixo de minha camiseta cinza, seus sorrisos e suas dúvidas, seus deboches e suas coxas, já as mencionei? Nosso longo amor na sala e o sono dos deuses. E para terminar, ou melhor para bem começar o novo dia seguinte, o seu leve roçar das unhas em meus pés, assim ela gostava de me acordar, assim aprendi com o tempo. 


[[ Esse conto, Simetria, apareceu na VIII Antologia Alberto Renart, 1995 e, depois, em meu livro de contos Ledos Enganos, Meras Referências, publicado em 1996 pela Editora Escrituras. Vou publicá-lo aqui dividido em três partes ]]

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Pragmático

            Recapitular.
            Ir para casa.
            Escrever a carta, arrumar as coisas, despedir-se delas.
            E sair.
            Não esquecer. A carta. Sucinta. Sincera.
            Calma.
            Mas dura. Dura. Como deve ser.
            A vida ensina. Tantas coisas aprendi.
            Droga.
            Controlar-se.
            Não falta nada?
            Recapitular. Tudo de novo.
            Ir para casa, escrever a carta.
            Merda! congestionamento.
            Diminuir a marcha.
            Brecar. Quase bater.
            Acalmar-se. Não é tão grave. É. Não sei.
            Mudou tudo.
            Engata a primeira. Tirar o pé. Tentar a segunda.
            Não deu. É claro que não deu. Brecar.
            Socar a direção. Justo agora? Não posso perder tempo. Não quero.
            De novo. Engatar a primeira. Tirar o pé. Acelerar. Tentar a segunda. Deu. Terceira?
            Vermelho. Parar. Sempre a mesma. Merda.
            Viver igual. Temos programado tudo. Tudo. Até a quantidade. O pensar. O lembrar. Lembranças… Vivências…
            Verde. Até que enfim, verde. Que te quero. Azul. Olhos azuis. Ela. Nosso filho. Ela. Olhar estranho no meu.
            Não só o olhar. A vida. O filho. Maldito. Maldita.
            Cinquenta metros. Parar de novo. Buzinar, buzinar. Talvez resolva.
            Escrever, não esquecer. Sem esquecer nada.
            Porra! Guardas. Só atrapalham.
            Não se distrair. Pensar. Esquecer as convenções. A moral. O certo. Difícil. Tanto tempo na cabeça. Não se esquece assim tão facilmente.
            Finalmente. Engatar a primeira. Tirar o pé. Acelerar. Mecanicamente. Como o amor. O nosso, olhos azuis. O beijo, a trepada.
            Acelerar. A vida. Trocar a marchar. Virar a esquina.
            Chegar em casa. Sentir o cheiro. O cheiro ainda. Tanto tempo. Ela sabia. Sabia agradar. A primeira vez. Primeira vez, na segunda. A vez segunda. Todas as vezes.
            Aprender tudo. Com ela. Só com ela.
            Tanto tempo já.
            Agora. Agenda cheia. Minha vida vazia.
            Ela não. Sem compromissos. Nunca. Como é bom. Sem horas. Cem horas, cheia de horas. Sem o carro. Sem o compromisso. Idiota. E inútil. Sem as leis.
            Como ela pôde?
            O filho? Ela sempre quis. Alguém como ela, não como eu, é certo.
            Olhar longe. Sorriso leve. Seu cheiro. Ainda o cheiro.
            Cuidado. Olha a hora. O compromisso. A moral. O certo. As convenções. Respeitem tudo.
            A troco de quê?
            Escrever a carta. Pragmática. Sucinta. Sincera. A vida ensinou. Mas dura.
            Viajar com ela. Nunca mais.
            O cheiro. Nunca mais.
            O filho. Nunca mais.
            O medo. Nunca mais.
            Um pé no mundo. Outro nos sonhos. Tombo certo.
            Papel. De carta. Não se encontra. Nada. Caneta. Serve lápis? Escrever.
            Escrever. Escrever.
            Ouvir um barulho. Risadas. Pelo cheiro, ela. E o filho. Nosso. Dela.
            Rasgar. Chorar.
         
   Janeiro/84, São Paulo


[[ Esse é um conto antigo, publicado no meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências" Editora Escrituras, 1996. Nem sob tortura eu digo o que eu acho dele agora... ]] 

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Leve-me ao paraíso



            Desde que o Google Maps lançou a sua versão multitask X34iLCcD803, o cunhado do Thio Therezo, meu pai, tem estourado a conta da internet lá em casa. Logo após a leitura completa de dois jornais, raivoso como bem convém a quem ainda se indigna, meu pai, cunhado do Thio Therezo, senta-se à frente do computador, tenta relaxar, isolar-se de tudo e começa a sua viagem virtual.
            Essa versão do Google Maps, um significativo aperfeiçoamento da anterior X34iLCcD802s, permite que, por meio de comandos de vozes, você seja conduzido quase que imediatamente ao local escolhido e, claro, participe de uma experiência única, essencialmente sensorial (seja lá o que isso signifique, mas os marqueteiros devem muito bem saber do que falam).
            - Leve-me ao paraíso – era o comando verbal usual dado pelo meu pai ao Google Maps. Uma eternidade de 0.00356 segundos se passam até que sejam apresentadas ao menos 1.847 opções (dependendo do dia e das condições climáticas, esse número pode variar um pouco), opções essas que vão desde as cercanias da Estação Paraíso do Metrô de São Paulo até o Batistério de São João em Firenze com sua famosa Porta do Paraíso, passando por opções que meu pai só escolheria altas horas da noite quando minha mãe, irmã do Thio Therezo, já estivesse em seu quinto sono.
            A tal experiência sensorial inclui, além da possibilidade de passear visualmente pelas redondezas do local escolhido, também os sons, toques e cheiros ambientais, tudo isso com a precisão que só os mais modernos algoritmos podem permitir. Tudo isso ao alcance de bocas, olhos e narizes (e até dedos, na versão do senseware proibida a menores).
            Um dia, o pai chamou o Thio Therezo para mostrar-lhe um passeio que estava fazendo em uma das opções do paraíso pedido, um lugar perdido no meio de uma das inúmeras cidadezinhas de nomes impronunciáveis. O Thio logo reconheceu o local e disse:
            - Já estive lá... inclusive eu...
            - Como assim?- papai interrompeu – como já esteve aí?
            - Já, já fui lá. Olha, se você virar aquela esquina e andar alguns passos, vai encontrar um café esplendoroso, feito com canela tailandesa e servido com um bolo de cenoura braba que é do outro mundo.
            - Mas...
            - Cobertura de chocolate tibetano 63,2%...
- Mas...
- E ali, vê? – o Thio apontava um prédio em um canto da tela – lá vive uma senhorinha que fala sete idiomas de origem slava. Discutimos filosofia alemã em três dessas línguas.
- Em três? Sei...
- É... quando tentei a quarta, desisti, me dei por vencido, para deleite da senhorinha, simpática que só ela.
            - Quer dizer que você já esteve lá?
            - Sim, claro, algumas vezes...
            - Claro, algumas vezes – o pai usava de sua ironia.
            - É um lugar bem interessante, diga-se de passagem. Parabéns pela escolha.
            - Mas não é a mesma coisa.
            -  Ãh? – o Thio não entendeu a observação.
            - Nada como a sensação de conhecer um lugar no conforto de sua casa, de chinelão, com o filtrador de raios beta, o decantador de odores, o controlador de ruídos... Qual a graça de estar lá? Nesse solzão, com todos os odores te atacando, pessoas apressadas te empurrando, cansado de tanto andar...
            - Acho que prefiro em loco...
            - Thio, deixa eu te falar algo. Você precisa experimentar novas sensações, nada mais antiquado que se estressar com todo esse processo de viagem, fazer malas, aeroporto, o taxi te explorando, comidas diferentes, hotéis impessoais, colchão macio demais...
E aí o pai completou, rindo, com seu conselho predileto:
- Você precisa sair de sua zona de conforto.
            Pronto, o pai sabia como tirar o Thio do sério, bastava usar o pior dos piores conselhos de autoajuda jamais criados, o supra-sumo dele.
            A discussão, hoje, prometia.


quinta-feira, 5 de julho de 2018

santo doisdejulho


Do inúmeros santos que povoam o dia dois de julho, o Thio Therezo tem lá os seus prediletos. Dois na realidade, um dos tantos santos chamados de Estevão e o santo Bernardino Realino.

Dizem, mas em se tratando de santos são coisas difíceis de se comprovar, que o Santo Estevão realizou inúmeros milagres. Dizem também que um desses milagres, dubiamente fundamentado e polemicamente divulgado, teria sido cometido contra a sua própria gente, a muitos uma heresia ao santo comportamento do Estevão.

Quando soube disso, Thio Therezo que nasceu no mesmo dia em que, séculos antes, tinha morrido o então príncipe moldavo Estevão III não se aquietou até conseguir entender esse disparate. Afinal, esse príncipe, por conta da resistência aos ferozes ataques do Império Otomano, fora canonizado pela Igreja Ortodoxa Romena e é, até hoje, considerado o maior moldavo de todos os tempos. Príncipe, santo, que importa? Importa a verdade da história e o Thio bem sabe disso.

Consta dos anais da tal história que o grã-tio Estevão, como o Thio costuma dizer, só perdeu duas das quarenta e seis guerras que disputou em sua insistente e vitoriosa resistência aos avanços dos inimigos, isso lá pelos idos do século XV. Bem diferente do famoso Buendía que, como é bem sabido, começou dezessete guerras e perdeu-as todas. Aliás, dos anais históricos da Moldávia não consta informação de quantas dessas quarenta e seis guerras o não tão pacato Estevão iniciou. Que foram, em sua quase totalidade, bem sucedidas a ele, isso é mais do que bem registrado.

O ponto, dizia, é com relação a um suposto milagre feito pelo Santo Estevão, supostamente no século passado e supostamente a favor de um dos supostos descendentes de seu principal inimigo nas inúmeras batalhas que travou pelo fortalecimento da independência da Moldávia.

Tem gente que guarda rancores por séculos...

No entanto, investigações imparciais do Thio Therezo, se é que se pode esperar alguma imparcialidade dele nessas questões, não comprovaram esse injusto e maldoso boato, meros rumores de gente de má fé, e reestabeleceu de forma definitiva a reputação do santo Estevão. E, de quebra, fez do Thio a segunda personalidade mais popular da Moldávia.

O Thio também considera muito o menos controverso e talvez mais ortodoxo (apesar da igreja a que pertencia sequer mencionar isso) São Bernardino Realino que, ao que consta, foi prefeito das cidades de Felizzano de Monferrato e de Cassine e auditor fiscal de outras tantas. Mas, por mais que muitos queriam imputar a isso a sua santidade, o Thio está convencido que essa se deu, na realidade, a partir de sua ida, já como jesuíta e tendo abandonado de vez a administração pública, a Lecce em 1574 para a fundação de um colégio. O que o qualificou a santo definitivamente foram os 46 anos que lá passou como educador, santa profissão aliás.

Seguramente não ajuda muito ele ter sido canonizado pelo papa do Hitler, mas isso pode ser considerado mera nota de rodapé nos anais da história.

Cabe ressaltar que o Thio, tão entusiasmado que sempre foi com esse santo jesuíta, dedicou-lhe uma extensa biografia que, traduzido em trinta e oito línguas das mais variadas matrizes, fora incontáveis dialetos, tornou-se a fonte principal de referência da magnífica vida desse santo. Seriam portanto necessárias muitas e muitas quintas-feiras para sequer se narrar ínfima parte que fosse de sua trajetória na terra. O Thio que nos desculpe, mas isso não faremos.

Menciono sim que o Thio, por vezes, olha pros acontecimentos do dia dois de julho e se convence, quem nasceu nesse dia é um privilegiado!