quinta-feira, 19 de julho de 2018

Pragmático

            Recapitular.
            Ir para casa.
            Escrever a carta, arrumar as coisas, despedir-se delas.
            E sair.
            Não esquecer. A carta. Sucinta. Sincera.
            Calma.
            Mas dura. Dura. Como deve ser.
            A vida ensina. Tantas coisas aprendi.
            Droga.
            Controlar-se.
            Não falta nada?
            Recapitular. Tudo de novo.
            Ir para casa, escrever a carta.
            Merda! congestionamento.
            Diminuir a marcha.
            Brecar. Quase bater.
            Acalmar-se. Não é tão grave. É. Não sei.
            Mudou tudo.
            Engata a primeira. Tirar o pé. Tentar a segunda.
            Não deu. É claro que não deu. Brecar.
            Socar a direção. Justo agora? Não posso perder tempo. Não quero.
            De novo. Engatar a primeira. Tirar o pé. Acelerar. Tentar a segunda. Deu. Terceira?
            Vermelho. Parar. Sempre a mesma. Merda.
            Viver igual. Temos programado tudo. Tudo. Até a quantidade. O pensar. O lembrar. Lembranças… Vivências…
            Verde. Até que enfim, verde. Que te quero. Azul. Olhos azuis. Ela. Nosso filho. Ela. Olhar estranho no meu.
            Não só o olhar. A vida. O filho. Maldito. Maldita.
            Cinquenta metros. Parar de novo. Buzinar, buzinar. Talvez resolva.
            Escrever, não esquecer. Sem esquecer nada.
            Porra! Guardas. Só atrapalham.
            Não se distrair. Pensar. Esquecer as convenções. A moral. O certo. Difícil. Tanto tempo na cabeça. Não se esquece assim tão facilmente.
            Finalmente. Engatar a primeira. Tirar o pé. Acelerar. Mecanicamente. Como o amor. O nosso, olhos azuis. O beijo, a trepada.
            Acelerar. A vida. Trocar a marchar. Virar a esquina.
            Chegar em casa. Sentir o cheiro. O cheiro ainda. Tanto tempo. Ela sabia. Sabia agradar. A primeira vez. Primeira vez, na segunda. A vez segunda. Todas as vezes.
            Aprender tudo. Com ela. Só com ela.
            Tanto tempo já.
            Agora. Agenda cheia. Minha vida vazia.
            Ela não. Sem compromissos. Nunca. Como é bom. Sem horas. Cem horas, cheia de horas. Sem o carro. Sem o compromisso. Idiota. E inútil. Sem as leis.
            Como ela pôde?
            O filho? Ela sempre quis. Alguém como ela, não como eu, é certo.
            Olhar longe. Sorriso leve. Seu cheiro. Ainda o cheiro.
            Cuidado. Olha a hora. O compromisso. A moral. O certo. As convenções. Respeitem tudo.
            A troco de quê?
            Escrever a carta. Pragmática. Sucinta. Sincera. A vida ensinou. Mas dura.
            Viajar com ela. Nunca mais.
            O cheiro. Nunca mais.
            O filho. Nunca mais.
            O medo. Nunca mais.
            Um pé no mundo. Outro nos sonhos. Tombo certo.
            Papel. De carta. Não se encontra. Nada. Caneta. Serve lápis? Escrever.
            Escrever. Escrever.
            Ouvir um barulho. Risadas. Pelo cheiro, ela. E o filho. Nosso. Dela.
            Rasgar. Chorar.
         
   Janeiro/84, São Paulo


[[ Esse é um conto antigo, publicado no meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências" Editora Escrituras, 1996. Nem sob tortura eu digo o que eu acho dele agora... ]] 

Nenhum comentário:

Postar um comentário