3. ADÁGIO MA
NON TROPPO
Enquanto ouvia os sons por detrás da porta
desaparecerem e percebia que daqui para a frente teria de atuar sozinho, ele
pensou no amigo que agora conhecia ainda menos. Tivera a tola intenção de
conhecê-lo mais em companhia de outros colegas em comum, nessa caravana que
fora em busca de indícios do colega, caravana esta que teria sido bem maior se
por mero e puro acaso outros dos colegas deles não tivessem comprado ingresso
para o teatro naquela mesma noite, como era o caso do José Antônio por exemplo.
Não dá para perder esta peça, faz tempo que eu me programei para isso,
justificou.
E o conhecia menos ainda porque
agora duas imagens do amigo estavam se contrapondo em sua mente, a se
embaralhar e a se confundir um pouco e uma era a do amigo, colega de conversas
de cervejas, aquele do escritório, várias vezes o vira conversando com as
pessoas em volta e esta imagem não batia com a outra, agora uma nova imagem
para ele, o colega sentado naquela cadeira a ler livros e a escrever frases, a
preencher certos papéis em branco com rabiscos enquanto escrevia e a gastar os
rabiscos de outros papéis preenchidos, lendo-os. O colega a sair do escritório
depois da conversa debochada com os amigos, umas cervejas às vezes, a ir para
casa de ônibus, o que será que pensava nestas horas? e terminar a noite sentado
naquela cadeira daquele quarto a pensar em coisas totalmente distintas das que
ocupara sua mente durante o dia. Nos dois extremos duas imagens distintas e,
sem dúvida, pensou, é difícil imaginar isso e mais difícil para ele foi
perceber que estas duas imagens a conviver inesperada mas pacificamente no
mesmo corpo só existiam em sua cabeça. Os outros amigos que também lá estiveram
em momento algum questionaram isso. Nem iriam fazê-lo tampouco.
Para a maioria dos amigos dele a sua
imagem era apenas aquela das cervejas e das conversas debochadas.
Resolveu ficar lá e tentar entender
o que ele agora chamava de manuscrito e que nada mais era que um montão de
papéis cheios de garranchos simbólicos, espalhados pelo quarto, e resolveu
ficar mesmo não se sentindo muito à vontade lá, sozinho, a remexer tudo aquilo,
a procurar um significado maior que apenas um montão de frases dispersas e
perdidas no espaço, mas por outro lado estava realmente disposto a fuçar tudo
aquilo, a abrir gavetas e revirar os livros e ler e decifrar todos os símbolos
e todas as letras e todas as palavras e todas as frases que lá encontrasse e
decifrá-las em que nível fosse preciso, com a determinada intenção de conhecer
o amigo a partir disso sem atentar por um instante sequer para a grande
estupidez que é tentar conhecer o pensamento de alguém, saber como esta pessoa
é e pensa a partir de seus escritos, a partir deste mero e aleatório
ajuntamento de símbolos e garranchos que elas costumam deixar impressas nas
noites maldormidas.
Mas, decidido, abriu gavetas e
armários e começou a tarefa. Mal sabia ele que para descobrir o que queria a
respeito do colega teria de estar aberto a descobertas novas e, mesmo a
procura, tudo se efetuaria em um nível mais profundo do que aquelas todas
descobertas triviais com os outros amigos. Por isso agora estava sozinho, nem
todo mundo se interessa a tal ponto.
Sentou-se, acomodou-se melhor para
poder melhor fazer o seu serviço. Ao fazer isso sentiu uma calma a percorrer
todo aquele quarto, uma calma a abraçá-lo enquanto gastava um tempo a olhar o
porta-retrato que jazia na mesa e no qual um grupo de pessoas comemora algo,
celebra algo que não fica claro o que é ao um dos amigos dele mas com certeza
ele não estava lá nem ninguém que conhecera. Passou uns instantes a tentar descobrir
Susan entre as três mulheres da foto, convencido que estava de que Susan era
destas pessoas que podem ser vistas em fotos e serem tocadas (e beliscadas,
pois não?), mas não chegou a nenhuma conclusão.
Desviou o olhar da foto e começou a remexer os papéis.
Leu
Quando tudo começou, eu comecei a perder minhas
referências, a noção do tempo, a noção do ser e do estar; minhas lembranças já
não eram mais minhas, era algo com o qual não tinha mais controle; o que sou
realmente, minha idade, por onde passei, quem amei…
–
Quando tudo isso começou – repetiu em voz alta (mas ninguém escutou, não havia
mais ninguém lá).
O um dos amigos dele então olhou ao
seu redor e lá tudo o que viu foram só aqueles papéis todos com aqueles
símbolos impressos neles em meio de uma porção de palavras e frases em meio de
uma porção de papéis e livros e pensou que, e concluiu que o que tinha começado
era isso, não podia ser nada mais que isso e disso era que o amigo teria
perdido todas estas referências, a do tempo e a do espaço, a do ser e a da
memória à medida que ia preenchendo aqueles papéis todos com rabiscos e
transformando-os em um ajuntamento deles que só a alguns poderiam interessar e
parecer inteligíveis. E que a ele, em particular, tanto fascinava.
Conturbou-se com suas próprias
ideias. A calma aborreceu-se e foi batendo a porta, enquanto ele pensava nisso
tudo e enquanto ele pensava nisso tudo suas mãos mexiam nervosamente os papéis
e enquanto pensava nisso e suas mãos mexiam nervosamente os papéis seus olhos
não conseguiam se concentrar em mais nada. E enquanto tudo isso, pensava e
perturbava-se com a ideia de perda que o amigo falava tão firmemente e que ele
firmemente associava a todos estes rabiscos que o cercavam.
No
primeiro instante em que sua perturbação permitiu-lhe uma trégua, sentiu-se
cansado, um intenso cansaço tomou-lhe de sobressalto, vindo sei lá, destas
todas atividades a que se permitiu naquele dia. Não conseguiria mais nada hoje
e além disso não era do tipo maratona intelectual, precisava de tempo para
assimilar qualquer coisa, para ele tudo acontecia de uma maneira mais lenta,
amadurecer tudo primeiro, se convencer e etc. e tal.
Naquele
dia não fuçou mais nada e foi-se embora convencido de que mais nada havia a
fazer por lá, que sua presença lá era uma intrusão, verdadeira intromissão, e
que de fato só se irritara com esta estória toda sem ter nenhum resultado
prático e na certa o amigo há de aparecer e ter alguma explicação plausível,
sim, ele terá de se explicar muito bem e não fuçou mais nada e foi-se embora
convencido de que lá não voltaria mais, convencido da inutilidade deste seu
ato, certo de ter perdido um tempo precioso em que poderia ter descansado ou
assistido à televisão ou qualquer outra coisa tão ou mais produtiva. Convencido
a não mais voltar lá, foi embora pensando como seria bom estar rapidamente em
casa, tomar um bom banho e depois gastar o tempo a fazer coisas de que gosta de
fazer naquelas noites. Naquelas noites a fazer coisas de que gosta. Depois de
um banho. Hoje à noite.
Pensativo
e excitado, custou a dormir. Após tanto pensar, dormiu. E bem demais. E tanto
que acabou perdendo a hora de ir ao trabalho. Decidiu não ir mesmo. Tinha como
norma geral de vida que as coisas tinham de ser começadas e terminadas no
momento certo, um pouco de atraso e isso atrapalharia todo o processo e melhor
era mesmo nem começar. Decidiu não ir trabalhar atrasado que estava, por pouco
que fosse.
Passou o dia de ressaca. Acho que
pensei demais, ele relacionou isso à forte dor de cabeça que agora sentia.
De tarde, levou suas neuroses e complexos para passear um pouco no parque.
[O conto "Mero" foi publicado em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", de 1996 (Editora Escrituras). Irei republicar aqui as suas quatro partes (Andante, Agittato, Adágio ma non troppo e Alegretto), uma por semana.]