quinta-feira, 26 de março de 2020

Mero, parte III

3. ADÁGIO MA NON TROPPO

         Enquanto ouvia os sons por detrás da porta desaparecerem e percebia que daqui para a frente teria de atuar sozinho, ele pensou no amigo que agora conhecia ainda menos. Tivera a tola intenção de conhecê-lo mais em companhia de outros colegas em comum, nessa caravana que fora em busca de indícios do colega, caravana esta que teria sido bem maior se por mero e puro acaso outros dos colegas deles não tivessem comprado ingresso para o teatro naquela mesma noite, como era o caso do José Antônio por exemplo. Não dá para perder esta peça, faz tempo que eu me programei para isso, justificou.

            E o conhecia menos ainda porque agora duas imagens do amigo estavam se contrapondo em sua mente, a se embaralhar e a se confundir um pouco e uma era a do amigo, colega de conversas de cervejas, aquele do escritório, várias vezes o vira conversando com as pessoas em volta e esta imagem não batia com a outra, agora uma nova imagem para ele, o colega sentado naquela cadeira a ler livros e a escrever frases, a preencher certos papéis em branco com rabiscos enquanto escrevia e a gastar os rabiscos de outros papéis preenchidos, lendo-os. O colega a sair do escritório depois da conversa debochada com os amigos, umas cervejas às vezes, a ir para casa de ônibus, o que será que pensava nestas horas? e terminar a noite sentado naquela cadeira daquele quarto a pensar em coisas totalmente distintas das que ocupara sua mente durante o dia. Nos dois extremos duas imagens distintas e, sem dúvida, pensou, é difícil imaginar isso e mais difícil para ele foi perceber que estas duas imagens a conviver inesperada mas pacificamente no mesmo corpo só existiam em sua cabeça. Os outros amigos que também lá estiveram em momento algum questionaram isso. Nem iriam fazê-lo tampouco.

            Para a maioria dos amigos dele a sua imagem era apenas aquela das cervejas e das conversas debochadas.
            Resolveu ficar lá e tentar entender o que ele agora chamava de manuscrito e que nada mais era que um montão de papéis cheios de garranchos simbólicos, espalhados pelo quarto, e resolveu ficar mesmo não se sentindo muito à vontade lá, sozinho, a remexer tudo aquilo, a procurar um significado maior que apenas um montão de frases dispersas e perdidas no espaço, mas por outro lado estava realmente disposto a fuçar tudo aquilo, a abrir gavetas e revirar os livros e ler e decifrar todos os símbolos e todas as letras e todas as palavras e todas as frases que lá encontrasse e decifrá-las em que nível fosse preciso, com a determinada intenção de conhecer o amigo a partir disso sem atentar por um instante sequer para a grande estupidez que é tentar conhecer o pensamento de alguém, saber como esta pessoa é e pensa a partir de seus escritos, a partir deste mero e aleatório ajuntamento de símbolos e garranchos que elas costumam deixar impressas nas noites maldormidas.

            Mas, decidido, abriu gavetas e armários e começou a tarefa. Mal sabia ele que para descobrir o que queria a respeito do colega teria de estar aberto a descobertas novas e, mesmo a procura, tudo se efetuaria em um nível mais profundo do que aquelas todas descobertas triviais com os outros amigos. Por isso agora estava sozinho, nem todo mundo se interessa a tal ponto.

            Sentou-se, acomodou-se melhor para poder melhor fazer o seu serviço. Ao fazer isso sentiu uma calma a percorrer todo aquele quarto, uma calma a abraçá-lo enquanto gastava um tempo a olhar o porta-retrato que jazia na mesa e no qual um grupo de pessoas comemora algo, celebra algo que não fica claro o que é ao um dos amigos dele mas com certeza ele não estava lá nem ninguém que conhecera. Passou uns instantes a tentar descobrir Susan entre as três mulheres da foto, convencido que estava de que Susan era destas pessoas que podem ser vistas em fotos e serem tocadas (e beliscadas, pois não?), mas não chegou a nenhuma conclusão.

         Desviou o olhar da foto e começou a remexer os papéis. Leu

         Quando tudo começou, eu comecei a perder minhas referências, a noção do tempo, a noção do ser e do estar; minhas lembranças já não eram mais minhas, era algo com o qual não tinha mais controle; o que sou realmente, minha idade, por onde passei, quem amei…

            – Quando tudo isso começou – repetiu em voz alta (mas ninguém escutou, não havia mais ninguém lá).

            O um dos amigos dele então olhou ao seu redor e lá tudo o que viu foram só aqueles papéis todos com aqueles símbolos impressos neles em meio de uma porção de palavras e frases em meio de uma porção de papéis e livros e pensou que, e concluiu que o que tinha começado era isso, não podia ser nada mais que isso e disso era que o amigo teria perdido todas estas referências, a do tempo e a do espaço, a do ser e a da memória à medida que ia preenchendo aqueles papéis todos com rabiscos e transformando-os em um ajuntamento deles que só a alguns poderiam interessar e parecer inteligíveis. E que a ele, em particular, tanto fascinava.

            Conturbou-se com suas próprias ideias. A calma aborreceu-se e foi batendo a porta, enquanto ele pensava nisso tudo e enquanto ele pensava nisso tudo suas mãos mexiam nervosamente os papéis e enquanto pensava nisso e suas mãos mexiam nervosamente os papéis seus olhos não conseguiam se concentrar em mais nada. E enquanto tudo isso, pensava e perturbava-se com a ideia de perda que o amigo falava tão firmemente e que ele firmemente associava a todos estes rabiscos que o cercavam.
            No primeiro instante em que sua perturbação permitiu-lhe uma trégua, sentiu-se cansado, um intenso cansaço tomou-lhe de sobressalto, vindo sei lá, destas todas atividades a que se permitiu naquele dia. Não conseguiria mais nada hoje e além disso não era do tipo maratona intelectual, precisava de tempo para assimilar qualquer coisa, para ele tudo acontecia de uma maneira mais lenta, amadurecer tudo primeiro, se convencer e etc. e tal.

            Naquele dia não fuçou mais nada e foi-se embora convencido de que mais nada havia a fazer por lá, que sua presença lá era uma intrusão, verdadeira intromissão, e que de fato só se irritara com esta estória toda sem ter nenhum resultado prático e na certa o amigo há de aparecer e ter alguma explicação plausível, sim, ele terá de se explicar muito bem e não fuçou mais nada e foi-se embora convencido de que lá não voltaria mais, convencido da inutilidade deste seu ato, certo de ter perdido um tempo precioso em que poderia ter descansado ou assistido à televisão ou qualquer outra coisa tão ou mais produtiva. Convencido a não mais voltar lá, foi embora pensando como seria bom estar rapidamente em casa, tomar um bom banho e depois gastar o tempo a fazer coisas de que gosta de fazer naquelas noites. Naquelas noites a fazer coisas de que gosta. Depois de um banho. Hoje à noite.

            Pensativo e excitado, custou a dormir. Após tanto pensar, dormiu. E bem demais. E tanto que acabou perdendo a hora de ir ao trabalho. Decidiu não ir mesmo. Tinha como norma geral de vida que as coisas tinham de ser começadas e terminadas no momento certo, um pouco de atraso e isso atrapalharia todo o processo e melhor era mesmo nem começar. Decidiu não ir trabalhar atrasado que estava, por pouco que fosse.

            Passou o dia de ressaca. Acho que pensei demais, ele relacionou isso à forte dor de cabeça que agora sentia. De tarde, levou suas neuroses e complexos para passear um pouco no parque.




[O conto "Mero" foi publicado em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", de 1996 (Editora Escrituras). Irei republicar aqui as suas quatro partes (Andante, Agittato, Adágio ma non troppo e Alegretto), uma por semana.]

quinta-feira, 19 de março de 2020

Mero, parte II


2. AGITTATO


            Entraram no quarto e, de fato, o amigo não se encontrava lá, pendurado ao teto e mantido assim por uma corda que o enlaçava o pescoço, um dos sapatos caído de lado e uma carta sucinta, sincera, calma, mas dura, deixada em cima da mesa explicando os motivos de tal violenta atitude. Nem estava ele escondido debaixo da cadeira a tremer de medo por causa de um improvável, mas não descartado ataque de rinocerontes asiáticos. Em suma, não estava lá efetivamente.

            Por um momento ficaram todos a olhar o quarto, a examinar tudo superficialmente mas sem sequer se entreolharem pois isso implicaria dizer algo e algo eles ainda não estavam preparados para dizer. Por um longo instante ainda ficaram mudos, evitaram se olhar. E não mexeram em nada enquanto durava aquele longo instante que é aquele em que entramos em um mundo que nunca nos pertenceu e que nunca de fato irá nos pertencer inteiramente, aquele longo instante que é o da descoberta a respeito do amigo, conhecido apenas?, aquele longo instante que é simplesmente aquele longo instante. Não mexeram em nada, apenas ficaram a olhar em volta, a se moverem lentamente, a respirarem silenciosamente, até que a impressão se dissipasse no ar e o relógio voltasse a correr e a avisar que não poderiam ficar lá o dia todo, ao menos não parados a olharem-se uns aos outros, ou a não se olharem, como era bem o caso.

            É interessante como as coisas acontecem: por um instante após eles terem entrado no quarto nada os teria feito viver esta impressão estranha, este estranhamento, este longo instante que eu citei acima, isso faz parte da vivência. Só depois que este instante terminou é que o relógio pode avisá-los a respeito do tempo a correr e coisa e tal e todas as consequências, óbvias ou não, que advém deste corriqueiro, usual mas extremamente complexo e intrigante fato. Se o relógio tivesse insistido em avisá-los antes, eles não teriam nem ouvido. O que eu estou querendo dizer é que este instante fora importante para eles, eles precisaram disso antes de poder ter a próxima reação, reação esta que não é inteiramente espontânea e muito menos arbitrária. Intrigante, não?

            Enquanto eles foram descobrindo este quarto do amigo, o único que estava fechado a chaves e enquanto o um dos amigos dele pensou que era no mínimo surpreendente encontrar tudo aquilo reunido em um quarto só e pensou até que a única coisa em comum entre aquilo tudo que ele agora via, acompanhado de certos amigos deles e que juntos começavam a descobrir lentamente, a única ligação entre todos aqueles objetos era que tudo pertencia à mesma pessoa, à mesma pessoa que ele não conhecia direito e que, intrigado, agora gostaria de conhecer realmente melhor e enquanto foram mexendo nos livros, uma porção de livros, nos papéis espalhados em cima da mesa, um montão de papéis, uma porção de papéis com um montão de rabiscos neles, nas coisas jogadas por tudo quanto é canto e enquanto foram mexendo nisso tudo, a princípio devagar e com respeito, olhares respeitosos e mãos vagarosas e logo logo adquirindo aquele sarcasmo e descuido que vem de nossa insegurança, enquanto isso eles foram percebendo o quão pouco eles conheciam o amigo, nenhum deles poderia sequer imaginar que o amigo colecionava tantos papéis, aquela porção de papéis espalhados pela mesa, com aqueles garranchos, sim verdadeiros garranchos neles que fazia sentido, ou que deveria fazer sentido a poucos e, aos poucos, aqueles amigos dele foram se acostumando à bagunça dos papéis e ao estranho quarto que ele mantinha, uma verdadeira reclusão e um dos amigos dele ficou a imaginar se alguém, fora o amigo, jamais chegara a entrar neste quarto e repentinamente perguntou-se se eles próprios teriam este direito, o direito de entrar aqui e permanecer e fuçar as suas coisas com o mesmo respeito que os cachorros tem quando fuçam esfomeados uma lata de lixo. Estas dúvidas se dissiparam logo, porém.

            Um minuto, treze? e eles já se sentiam mais à vontade naquele quarto, a rirem até e isso substituía a segurança que eles ainda não tinham adquirido neste mundo estranho  e desconhecido.  E aos poucos, isto demora mais é claro, foram achando que aqueles garranchos naqueles tantos papéis espalhados por lá poderiam ter algum significado simbólico (sim, por que não?); aqueles papéis que eles pegaram de cima da mesa e após espanarem, soprando junto com a poeira dos tempos também alguns rabiscos extras e olharem cuidadosamente e que a princípio não conseguiam distinguir nada mais que alguns garranchos deveriam, ah! isso sim, deveriam ter algum significado (acho até que as mentes deles estavam deveras preocupadas de início com outras questões e vem daí, esta é a minha interpretação, deixemos isso bem claro, a demora em se procurar nos garranchos sinais inteligíveis) e poderiam, quem sabe, ter algum significado até para eles que não estão muito acostumados com isso e logo eles ficaram curiosos para poder decifrá-los, decodificá-los para uma linguagem que eles todos pudessem entender e um dos deles chegou até a abrir a boca para dizer isso, mas não o fez pois não soube codificar os seus pensamentos em forma de palavras. Mas qual o significado, qual a lógica daqueles símbolos? (Ah! esta nossa estranha e tola, inútil e imprescindível mania de se procurar significado nas coisas!)

            Por um instante o silêncio os subjugou.

            Difícil explicar como mas já agora começam todos a procurar significados, a tentar decodificar os códigos obscuros que encontraram, os símbolos que sejam, e a recodificarem em outros mais inteligíveis, uns com cautela, outros afoitamente, uns incompetentemente e outros com mais intuição, com vivências ou tolamente; alguns até conscientemente.

            – Letras – arriscou um meio timidamente.

            – Sim, é isto, letras – disse outro dos deles, justamente aquele de óculos (que já sabemos são os mais inteligentes) e que tenta com entusiasmo conquistar a liderança do grupo. E existem aqueles que logo aceitam as descobertas, mas sim são letras seus estúpidos. E tanto quanto aceitar as descobertas também faz parte do jogo questioná-las, recusá-las, desqualificá-las, ridicularizá-las, nem que seja pela disputa de uma liderança. Mas aqui a disputa foi curta, não havia muitos argumentos contra, nem havia daqueles que nunca desistem, e a vitória logo se estabeleceu: são letras sim, por que não? e logo logo todos já estão comemorando efusivamente a descoberta, letras, letras, e pensarão todos uniformemente, até aqueles que não se convenceram inteiramente desta estória de rabiscos simbólicos e decodificações e letras. E com certeza a descoberta traz como consequência também a segurança que faltava a uma outra busca (ninguém descobre nada impunemente).

            Sim, todos a rirem enquanto alguns poucos, já que alguém ensinou o caminho, começam a perceber que estes rabiscos e garranchos estão postos lado a lado de uma maneira esquisita e isto os inquieta e agora se questionam se isto ocorre porque, só estou arriscando um palpite, pessoal, existe, talvez, quem sabe, alguma intenção específica e oculta para isso, mas qual? e aos poucos foram se convencendo de que sim, mas é óbvio, os garranchos são letras e concluíram ao analisar cuidadosamente estes garranchos, estas letras para todos os possíveis efeitos, que se elas estão postas lado a lado isto indicaria uma possibilidade (pequena?, grande?) de que juntas possam ter algum significado mais profundo que apenas letras esparsas e soltas a saltitarem inconsequentemente pelos papéis (quem é que poria letras juntas sem alguma razão específica?); palavras, sim letras juntas formam palavras, é claro, riram-se todos da própria esperteza, palavras na maioria das vezes ininteligíveis se a ordem em que estas ditas letras aparecem são escolhidas sem nenhum critério mas que no caso dele deveriam fazer sentido afinal ele era um cara sensato, ninguém poderia jurar mas tudo levava-os a crer piamente nisso. É isto: ele juntou as letras em tal ordem a formarem ajuntamentos, palavras, com sentido (apesar disso ser bem subjetivo, não é mesmo?).

            Riram-se todos bem satisfeitos da vida.

            Embaralhar o alfabeto, juntar estas todas letras uma a uma em um cuidado artesanal, emendá-las, reuni-las, escrevê-las, pintá-las, grifá-las, formar palavras e frases. Ah! o fascínio das palavras!

            Não demorou muito e eles seguindo a mesma linha de raciocínio (a criatividade não era o forte deles) perceberam frases, que nada mais são que um mero ajuntamento de palavras, em última instância um ajuntamento de letras, de rabiscos simbólicos e que para alguns tem algum significado todo especial e que chega a fascinar uns poucos a tal ponto de estes sempre as trazerem no bolso do colete como quem traz um relógio de ouro a exibir, a mostrar aos outros, a se orgulhar das frases que trazem nos bolsos dos coletes e a pretender que isso o diferencie dos outros.

            E um dos alguns amigos dele mostrou aos outros o que tinha achado e achava que aqueles papéis que trazia às mãos, naqueles papéis que trazia às mãos as frases pareciam se concatenar, se interagir, se inter-relacionar de tal maneira a querer dizer algo mais do que quando estão sozinhas a passear livremente pelos papéis, mas não sabia bem como. E talvez isso até pudesse explicar o desaparecimento do amigo, seguiu pensando mas não comoveu ninguém, ninguém ligou muito para esta opinião, muito menos para o seu pensamento, estavam por demais cansados por causa de tantas descobertas.

            – Pensar cansa, meu!

            Outro dos alguns amigos dele chamou a atenção de todos. Trazia um pedaço de papel na mão e leu:

            – ...daquela maneira maravilhosamente silenciosa que só com a Susan era possível…

            Riram-se todos, menos um. E ao que parece esta frase fazia sentido a eles todos. (E a respeito de Susan, desde então ela ficou conhecida por seu silêncio; maravilhoso silêncio, gozavam. Certos amigos, inveja? diziam a boca pequena que isto só poderia ser frigidez. Mas isto, é claro, é outra estória, é outro conto.)
         
            Após terem dado risadas com outras coisas que encontraram pelo caminho os alguns amigos dele deram por encerrada a sessão de intensa preocupação para com o suposto sumiço do amigo e, já era tempo, foram tomar uma geladinha comentando entre si, na realidade tentando se convencerem de que ele devia era estar agora em algum retiro espiritual e em completo silêncio com Susan. (Tudo é uma questão de se achar uma boa desculpa para não se preocupar mais. Alguns, porém, são mais exigentes com a qualidade das desculpas, outros não.) Riram-se todos das deduções, todos menos um, e estavam todos mais do que satisfeitos com o dia vivido, todos menos um, e seguiram para o bar, todos menos um, o mesmo um que achava que o amigo não sumiria assim à toa, o mesmo um que achou estranha a quantidade enorme de frases que jaziam na mesa do amigo pois nunca soube que seu amigo era escritor de frases e que possuía este encanto de saber misturá-las, de colocá-las juntas da maneira maravilhosa que a ele tanto agradava.

            O mesmo um que ouviu a porta bater enquanto pensava nisso tudo. E os sons por detrás dela aos poucos desaparecendo.

            O dia em que alguns dos amigos dele forçaram a porta do terceiro quarto do segundo andar que iria eventualmente desvendar o mistério do sumiço dele, pelo menos assim pensavam eles, era uma quinta-feira.




[O conto "Mero" foi publicado em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", de 1996 (Editora Escrituras). Irei republicar aqui as suas quatro partes (Andante, Agittato, Adágio ma non troppo e Alegretto), uma por semana.]

quinta-feira, 12 de março de 2020

Mero, parte I


1. ANDANTE


            Alguns amigos dele, aparentemente preocupados com o seu súbito desaparecimento, foram em caravana até o pequeno sobrado em que ele morava. Foram em busca, principalmente, de indícios para esclarecer tal misterioso sumiço pois ninguém em total sã consciência desaparece sem avisar, evapora sem dizer ao menos uma palavra, desintegra-se silenciosamente, ainda mais deixando um montão de serviço a fazer, ainda mais deixando pequenas dívidas para com os amigos.

            Alguns amigos dele, aparentemente convencidos de que uma completa busca em sua casa poderia ajudar a achá-lo e quem sabe até resgatá-lo do eventual perigo que certamente corria, conseguiram que o chefe deles todos os dispensasse uma hora antes do término de jornada e foram todos, com pequenas e desprezíveis exceções, a Sandrinha por exemplo não quis ir, não que eu não goste dele, mas é que eu não quero ir e pronto, justificou Sandrinha; foram todos em caravana até a casa dele. Era a primeira vez que iam até lá e talvez por isso lá não conseguiram chegar sem antes terem se perdido inúmeras vezes pelo caminho e sem antes terem de parar em um bar para perguntar qual o melhor caminho e sem antes, ninguém é de ferro, terem bebido uma cervejinha; tá bom, duas. Três para arredondar a conta.

            Durante todo o trajeto um dos amigos dele, um ao menos, foi pensando sobre este tal mistério e tentava encaixar certos fatos uns aos outros como quem tenta encaixar as peças de um complicado quebra-cabeças com o ingênuo intuito de formar alguma imagem que fizesse sentido, com a decisiva intenção de conseguir uma explicação para tal desaparecimento. Faltavam peças, muito mais do que as que tinha ali à sua disposição. Na realidade conhecia pouco o amigo e mesmo assim muito deste pouco vinha de informações que os outros amigos em comum lhe passavam. Fofocas, piadas contadas pelo caminho, fatos que de tão distorcidos já nos chegam diferentes e ele pensou que o que se sabe normalmente das pessoas são só as fofocas, são só os fatos distorcidos. Porém não codificou seus pensamentos em forma de palavras com medo de virar motivo de chacotas entre amigos. Decidiu finalmente que o pouco que conhecia do amigo era pouco mesmo, parte pelo fato de ele, não o amigo, ser novo na firma em que ambos trabalhavam, em salas separadas, o que aumentava em muito a distância e parte, sobretudo, por serem, os dois, dois tipos tímidos. Tão pouco que até diria que não o conhecia.

            Chegaram.

            Enquanto o um dos amigos dele tentava achar uma maneira  de se entrar no sobrado, sobrado de esquina com aparência deserta já há algum tempo (dias, talvez), a campainha soando com aquela preguiça e aquele som rouco que elas costumam ter quando não trabalham muito e tanto eles a tocaram, a apertaram e a irritaram que ela finalmente desistiu de soar, voltou à sua  mudez usual e ao seu descanso costumeiro, talvez já convencida de que não adiantava continuar soando que ninguém iria mesmo atender ao chamado, nem ele que morava lá há tanto tempo nem ninguém mais e o um dos amigos dele sorriu para si mesmo ao perceber que os outros amigos deles demoravam muito mais do que a campainha para perceber o que já era claro agora a todos nós.
            (tentemos de novo) Enquanto o um dos amigos dele tratava de achar uma maneira de se entrar no sobrado um outro dos amigos dele, aparentemente o mais esperto deles todos, o de óculos, girou a maçaneta da porta, ela estava aberta! e entre risos amarelos e gargalhadas debochadas e entre todas aquelas piadas que são normalmente feitas nestas horas de total nervosismo e completa descontração todos eles lá entraram, um após o outro, aparentemente esquecidos por um breve instante da imensa preocupação que os corroía por dentro por causa e conta do sumiço do companheiro de trabalho.

            Entraram.

            Casa pequena, sala pequena com algumas revistas espalhadas, um jornal de dias atrás meio que aberto no sofá. Mas como descrevê-la? Era uma sala com alguns móveis que, acho eu, não vão ter muita importância na estória e nem quero aborrecê-los com estas descrições maçantes, talvez uma televisão no canto, não sei ao certo pois não reparei bem. Fiquei lá pouco tempo, tempo insuficiente para me lembrar com clareza e firmeza e poder descrevê-la direito; pouco tempo também os amigos dele lá ficaram, aparentemente apressados e repentinamente incomodados por estarem em casa alheia.

            Com a pressa de quem procura, porém, e com a pressa de quem tem pressa em achar algo e com a pressa também de quem está incomodado com alguma coisa, os amigos dele resolveram sair apressadamente da sala, atravessaram a porta ao fundo dela e chegaram à cozinha, simples cozinha com cheiro de mofo e comida de anteontem. Apressados e incomodados, eles rapidamente deram por encerrada a procura de indícios por lá (ele não estava na geladeira, a julgar pela cara de satisfeito que um dos dele fez ao olhar lá dentro, nem no forno, como bem constatou algum outro dos deles) e a abandonaram do mesmo jeito que a encontraram com o seu cheiro de comida velha, com algumas panelas e pratos a lavar. Nada de interessante tampouco acharam no pequeno quintal aos fundos da casa e lá foram eles em temerosa mas decidida procissão ao segundo andar. O um dos alguns dos amigos dele sempre por último com aquela pressa de quem segue perdida, desesperada e inconvincentemente os apressados.

            Nem é preciso dizer (pois eu sei que o leitor é esperto e está lendo este conto com real atenção e ímpar interesse) que no quarto de dormir ele não estava. Não estava, por exemplo, estatelado ao chão vítima de um fulminante ataque cardíaco, baba a escorrer pela boca manchando o carpete bege nem estava ele na cama de casal (de casal? entreolharam-se surpresos) completamente desarrumada a agonizar por causa daquela doença tropical ainda totalmente desconhecida e que deforma horrivelmente o rosto e faz brotar caroços verdes e espinhas roxas por todo o corpo ficando o pobre coitado do doente com aquele aspecto anfíbio-horripilante e muito menos, última hipótese viável para eles, estava ele no banheiro. Não estava, vejam só, na banheira com uma faca incrustada no peito, os olhos parados de peixe morto, o sangue fresco a escorrer pelos ladrilhos escherianos, nem tampouco estava encolhido e escondido no armarinho em cima da pia, tremendo de medo por conta de algum inexplicável complexo de perseguição.

            Água fria.

            Nem no quarto de dormir nem no banheiro em nenhuma das possíveis hipóteses levantadas. Havia, porém uma terceira porta no segundo andar que estava fechada, trancada a chaves que seja. Dificuldade desencorajadora, pensou o mais careca deles. Ver-se-á logo logo que esta tal de terceira porta terá alguma influência no desenrolar da estória.
           
            Os alguns amigos dele, ainda aparentemente desesperados de preocupação com o seu misterioso sumiço, confabularam e confabularam e tanto confabularam que chegaram à conclusão de que não sabiam o que fazer. Mas uma das ideias que surgiu de tão profícua discussão foi tentar reconstruir a partir dos inúmeros objetos que eles foram encontrando espalhados pela casa os que teriam sido os últimos passos do amigo. Aquele dos alguns amigos dele que sugeria tal tão brilhante ideia exemplificou dizendo que tinha achado na cozinha dois copos com restos de vinho e dois pratos sujos com a mesma comida o que implicava, concluía brilhantemente, que o amigo em comum teve companhia em sua última refeição (quase disse ceia) antes de seu estranho e ainda não resolvido sumiço.

            Surpreendidos com a estonteante e inesperada esperteza do colega, voltaram todos apressadamente à cozinha, que deveria ser uma fonte inesgotável de pistas a procurar, a decifrar (Ah! O fascínio sherlockiano!) e a viraram literalmente ao avesso sem porém terem conseguido maiores resultados. Nenhum observador estrategista e imparcial ao ver a total falta de organização e método na procura aleatória de indícios por parte dos alguns amigos dele se espantaria com a quase total falta de conclusões a que chegaram. Pois, verdade seja dita, nada mais conseguiram deduzir a não ser que a companhia que ele teve aquela noite não deveria usar batom. Mas não conseguiram concluir mais nada e nada mais conseguindo concluir, por fim desistiram.

            Desistiram desanimados.

            E já que as deduções não eram o forte deles, o mais forte deles resolveu arrombar a porta daquele terceiro quarto do segundo andar, ora bolas, uma portinha daquelas eu arrebento com um sopro. Não que eles achassem que o amigo porventura estivesse lá dentro, não era isso, e muito menos confiavam que lá encontrariam alguma coisa que os levasse a ele, longe disso, a moral já estava em baixa como se vê, era apenas que deveriam fazer algo e este algo era a única ideia que passava pelas cabeças deles (era como se a movimentação fizesse com que a gente esquecesse um pouco as nossas limitações, acho que é isso, nada de muito filosófico; acabei de me lembrar de algo: para Rosa liberdade é isto, movimentação, enquanto aqui movimentação é isto, limitação). Se por um lado o arrombar da porta traduzia um pouco o restinho de esperança que eles ainda tinham de conseguir algo e salvar a missão de um completo fracasso, por outro lado a possibilidade, grande e aparentemente presente, de que eles não conseguissem nada dentro deste quarto os atormentava inconscientemente e a cada proposta para o arrombamento seguiam várias objeções e várias objeções surgiam a cada proposta para o arrombamento da porta (o simples sopro mostrou-se insuficiente como já deve ter concluído o astuto e atento leitor).

            Por fim, um tanto cheios dessa estória toda, eles forçaram a porta deste misterioso quarto que ele mantinha trancado a chaves, a arrombaram e lá entraram um tanto quanto assustados com a própria coragem (como diria o já citado e mencionado Rosa).




[O conto "Mero" foi publicado em meu livro "Ledos Enganos, Meras Referências", de 1996 (Editora Escrituras). Irei republicar aqui as suas quatro partes (Andante, Agittato, Adágio ma non troppo e Alegretto), uma por semana.]

quinta-feira, 5 de março de 2020

Hoje você é quem manda, tesourinha!

Símbolos. Sim, sou meio lerdo para certas coisas e confesso que só agora entendi o sinal que fazia na campanha aquele candidato a governador de São Paulo (e que, merda, foi eleito!). Aquele V deitado nada mais era que uma tesourinha. Aliás, foi a eleição da arminha e da tesourinha, tão iguais em suas pretensas diferenças.

Lição de democracia. Nessa semana, a mando do tesourinha e com o aval Supremo, a ALESP deu uma lição de como se agir democraticamente em uma discussão polêmica. Desânimo, tempos cada vez mais sombrios, só me resta pedir ajuda ao Chico e cantar a música que, infelizmente, voltou a ser tão atual...


Apesar de você
Chico Buarque

Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Este samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora, tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
Que esse dia há de vir
Antes do que você pensa
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai se dar mal
Etc. e tal