quinta-feira, 25 de junho de 2020

Möbius - parte 2

A porta do corredor número dois permanecia fechada e, mais ainda, permanecia uma possibilidade de escape. Ele olhou para o seu passado e se redescobriu um aventureiro. Bons tempos aqueles em que pulava de paraquedas um dia para no outro subir o Himalaia e no seguinte descer aquela montanha de neve fofa. Canoagem no encontro das águas, parapente em dias trovejantes, leituras de novos autores brasileiros, cada aventura já viveu!

Mas agora, tudo passado, tudo tão longe, queria apenas ir para a rua, bastava essa aventura! Arriscou abrir a porta do corredor número dois e, estava escuro, nem arriscou um passo naquela misteriosa e assustadora direção. Dias se passaram antes de nova tentativa, é preciso ir se acostumando com a ideia, nem tudo deve ser feito de forma tão radical e imediata.

Foi, coragem, de uma vez, antes do arrependimento.

Atravessou a porta do corredor número dois, avançou por ele, passou por dois quartos que se mostraram tão surpresos por vê-lo quanto o contrário. Parou em um deles e ficou admirando os quadros por lá, quadros esperançosos de tão coloridos que eram, a cama aparentemente recém feita, a estante de livros de poesia, e só de poesia. Quem é que só lê poesia, meu? retrucou para si mesmo, e mesmo assim parou e ficou horas lendo-as. Recitava em voz alta as que mais gostava, e tantas foram as que gostou e tanto ficou por lá que lá dormiu e lá acordou faminto já no dia seguinte.

Resignou-se, era preciso retroceder um pouco, achou o caminho de volta para a sala, para o corredor principal e para a cozinha. Café com leite, queijo de minas no pão de forma barrado de manteiga, o suco de laranja.

Quem diria? Precisou de mais um par de dias para se recompor, a ressaca o pegou de jeito, o deixou acabado no sofá assistindo filmes antigos e já decorados de tanto ver, o fez comer qualquer coisa de almoço, de jantar e mais um dia assim, assim viveu.

Mas a coragem volta, o ímpeto recupera suas forças e lá vai ele de novo. Interpretou que o cansaço da outra vez tinha sido por conta do excesso de poesia lida e, por isso, evitou dessa vez aquele quarto. Mas não o seguinte que, de fato, vazio estava, ou quase. Uma cadeira de balanço balançava ao sabor dos ventos e dos pensamentos de quem por lá passara recentemente, mesmo que esses tempos mais recente possam ser contados em décadas. O embalo da cadeira não o animou a ficar, traria lembranças, impingiria uma tristeza, seguiu.

De tempos em tempos, a parede o apresentava um interruptor de luzes e ele ia acendendo enquanto passava por portas e mais portas, todas fechadas. Quando voltava o olhar, só via o corredor iluminado como rua de Natal, as luzes, sabe-se lá por que, coloridas com tendência ao vermelho.

Mas ainda não foi dessa vez. Assustado com um barulho na parte ainda escura do corredor, ele voltou a passos ágeis para o conforto de seus domínios, sua sala-banheiro-cozinha-quarto que tinham sido suficientes por tantos anos, voltou para a porta, agora trancada por fora, mas que significava sua conexão com o seu mundo predileto.

Enquanto jantava, prometeu-se fechar de vez a porta daquele corredor e não pensar mais nisso. Logo, a quarentena acabaria e ele poderia voltar às suas voltinhas pelo bairro.

Pois é, decisões são para serem refeitas, promessas para serem quebradas, resoluções irrevogáveis revistas, opiniões nem se fala. Mas ele se assustou foi com a rapidez que tudo ocorreu. Mal acordou dois dias depois e sua mente já estava convicta de que era preciso ir até o final daquilo, aquilo sendo o misterioso corredor número dois. Preparou-se, no entanto, não queria que nada o surpreendesse no meio do caminho, fome, frio, febre que fosse.

Encheu então sua mochila com sanduíches, de queijo, de salame italiano, de carne louca. Com chocolates, com bebidas, geladas ou energéticas, mas evitou as alcóolicas (a bem da verdade, antes de ir, topou um cálice bem generoso da parati que mantinha escondida dos filhos). Casaco, pastilhas e tylenóis completavam sua bagagem. Gorro e lá se foi.

Pois bem, ao final o corredor nem era muito maior do que o que no outro dia ele tinha andado. Se bem que, dessa vez, a curiosidade o levava a abrir porta aqui ou acolá para ver o que encontrava. Foi se acostumando com a diversidade dos quartos e banheiros e salas e até cozinhas paralelas que foi encontrando pelo caminho. Essa curiosidade o foi detendo mais do que queria, sentia nesse momento uma vontade imensa de chegar ao final do corredor e, quiçá, abrir sua porta final para o mundo que tanto o esperava.

Vez ou outra, parava por um bocado de lanche, um gole de bebida, um pedaço de chocolate.

Tivesse ele trazido uma bolinha de gude na mochila, poderia vê-la rolar no chão ao sabor das imperceptíveis inclinações do corredor, ora para a frente, ora para trás, ora quase correndo, ora modorrenta de quase não se mover. Notar o imperceptível nos caminhos andados, isso se faz necessário.

Mas ela chega, né? alguma hora a porta do final do corredor chega e lá ele se encontra frente a ela, maçaneta piscando e pedindo para ser usada, sem fechadura aparente. Impossível não filosofar nessas horas, impossível não pensar que lá fora o espera esse tal novo normal que tanto falam, esse novo e maravilhoso mundo. Porém, fazendo suspense, gostava disso, ou talvez disfarçando a ansiedade, detestava essa sua característica, ele resolveu desembrulhar antes de qualquer coisa o último de seus sanduíches, que calhou ser o de mortadela com manteiga. Mordeu-o após um gole da coca-cola zero, já quase morna.

Girou a maçaneta, a porta cedeu e, pronto, ele estava na rua. Seus olhos ainda demoraram um pouco para se acostumarem com aquela luz natural. Não tardou muito para se perceber do outro lado da rua de sua casa e só restou a ele atravessá-la para dar de frente aos seus filhos descarregando em sua porta de entrada as caixas com as compras semanais.

Uma nova mordida no sanduíche de mortadela o entreteve antes de cumprimentar o par de assustados filhos.


quinta-feira, 18 de junho de 2020

Möbius - parte 1

            Lá estão eles, os dois filhos, me trancando aqui em casa. É certo que eu dizia, e cumpria, que sairia de casa a hora que quisesse. Eles, sei lá por que, ficavam ameaçando trancar-me por aqui, vamos colocar uma nova fechadura aqui nessa porta, diziam e tanto disseram que agora cumprem o ameaçado e bem na minha frente. Agora eu os olho pela janela, conversam entre si sem remorsos, acenam ao final e se vão. Já a compra está toda no hall de entrada esperando que eu a desinfete e a arrume na cozinha.

A casa é grande, sei, mas maior é o mundo lá fora e eu gosto muito de minhas voltinhas, até sinto a dura abstinência se algo me impede a saída diária. Mas eles insistem que agora eu tenho que ficar dentro de casa, que é perigoso sair por aí na minha idade. Qual-o-quê, setenta anos é lá idade de risco? Setenta e seis, vá lá!

            Certo é que eles deixam semanalmente na minha porta tudo o que necessito, inclusive em uma tal fartura que não tive nesses anos todos desde que fiquei só nessa imensa casa. Daqui não saio, insistiam que saísse antes e agora me impedem de sair, vai entender isso! Não saio, mas quero dar minhas voltinhas pelo bairro, meu cafezinho na padaria, a conversa com o jornaleiro, a fezinha no jogo do bicho. Quem é que pode me impedir isso? Pois bastava eles virarem a esquina, eu recolhia toda a compra deixada na porta e, zás, saia para a minha voltinha, o sorriso para a manicure da rua de baixo, retribuído sim por ela com muito carinho. Ela até costuma me dizer que eu sou jovem demais para viver sozinho, para ficar preso naquela casa imensa sem companhia, e que dava até para a família inteira dela vir morar comigo se eu quisesse, tanto o espaço que eu tenho à disposição. Família inteira? E eu lá sou um idiota? Basta ela vir uma vez por semana para cuidar de minhas unhas e me conceder uma de suas massagens generosas. Pago muito bem pela unha e ela sabe disso, quero lá outra família? Basta a minha que agora, de tanto insistirem que eu não deveria sair, resolveram colocar uma nova fechadura na porta da frente, uma chave para cada um dos filhos e eu fico sem nenhuma, fico trancado e trancado.

Eles agora deixam essa fartura de coisas na minha porta, uma vez por semana, quem será que come tanto assim? Esperam à distância que eu recolha tudo e depois me trancam por aqui. A casa é grande, poderia passar dias e dias sem sequer repetir algum cômodo, a quarentena inteira sem sequer repetir quarto que fosse. Exagero... é grande, mas nem tanto. É grande, mas maior era minha voltinha diária nesse mundão de deus. Eles se justificam que é para o meu bem, que é por pouco tempo, que logo poderei voltar ao que era antes. Sei lá, sei lá. Preferia arriscar a não voltar para casa em um desses dias do que arriscar a não sair mais daqui.

Agora estou preso em casa. Parece que há uma outra porta, nos fundos da casa, mas não me lembro bem dela. Sempre usei a porta da frente nessas décadas todas em que aqui vivi, recusava-me a usar outra e agora nem tenho a certeza de que ela sequer existe. Esforço-me, olho para um dos corredores que sai da sala e fico confuso. O, digamos assim, corredor principal, irá dar no meu quarto, no banheiro que uso frequentemente e, lógico, na necessária cozinha. Faço esse trajeto todos os dias e até pareceria, a quem me vigiasse de perto, que a casa se resume a isso. Tudo o que precisei desde a morte dela está por aqui, nessa pequena porção dessa imensa casa. Sim, na cozinha há uma porta para fora, mas ela dá para um quintalzinho nos fundos, meio atulhado de coisas e sem saída para o mundo. Sem possibilidades para o jogo do bicho ou para a manicure, a não ser que ela pule o murro lá nos fundos. Será? Pedir muito.

O outro corredor, tempos não abro a sua porta, deve dar, eventualmente, para o mundo exterior, penso agora. É preciso explorar isso, mas hoje não que de aventuras mentais, já me cansei.

Acontece que semana passou antes de ter de novo esses pensamentos. Olhei minhas unhas e fiquei com saudades. E a porta principal da casa continua trancada por fora. Amanhã deve ser o dia em que eles virão, eles e as caixas de mantimentos. Se eu conversasse com eles, se pedisse com jeito, talvez eles me permitissem dar uma volta, apenas uma voltinha, curtinha, até a rua de baixo, bastaria isso. Suborno? Não... acho que eles não precisam, a herança da mãe foi bem gordinha. Chantagem emocional? Nada... são frios como o sorvete que eles me trazem todas as semanas.

Durmo desanimado.


quinta-feira, 11 de junho de 2020

rodízio

[[ da série Futurando ]]



          hoje acabou o rodízio

          dia sim, dia não

          entre a esperança e a falta de vontade

          entre a comida caseira e o delivery apressado e frio

          acabou hoje

          entre a lágrima da perda e a lágrima da expectativa

          entre os gráficos com curvas alongadas e as funções exponenciais

          acabou o rodízio

entre as lives

          entre a insônia e a preguiça de sair da cama

          entre os amigos do zoom e os ignorados do zapzap

          entre as palmas na sacada e os panelaços

          acabou, acabou

          entre a máscara e o pacote de batatas fritas lavado em água corrente

          entre o alquingel e a água sanitária

          entre o bom dia desconfiado e o celular limpado a álcool

          acabou, sim acabou o rodízio

         

          e o que vier, que venha

          que venha forte, único,

que nos arrebate de vez

          e que acabe pra sempre esse rodízio

          entre o medo e o ódio

 



Amigos,

tempo de quarentena, tempo de ler!

Para quem quiser conhecer melhor o meu trabalho, preparei alguns kits com os meus últimos livros. Para ler ou presentear.  Contato: flavioucoelho@gmail.com



- "Contos&Vinténs" (contos, AGirafa, 2012)

- "Pigarreios" (romance, Chiado, 2016)

- "Guarda-Trecos" (infantil, Belo Dia, 2017)

- "outros tantos" (contos, PENALUX, 2019).



• Kit I: os quatro livros, R$ 60,00 (frete nacional incluso).

• Kit II: três dos quatro livros (a escolher), R$ 50,00 (frete nacional incluso).

• Kit III: dois dos quatro livros (a escolher), R$ 40,00 (frete nacional incluso).

 

(os dez primeiros leitores receberão um brinde extra...)







quinta-feira, 4 de junho de 2020

A culpa é da Isildinha... parte II

[[ a primeira parte dessa história foi publicada na semana passada ]]



          - Sabe, Thio, acontece que justamente no dia dessa palestra sobre desejos quânticos eu tinha uma aula na faculdade.
          - A da esquina?
          - Pô, Thio, fala assim não, que você sabe que ela é conceituada.
          - Que seja. Continua...
          - Então, era uma aula sobre Provas, eu a perdi e desde então não consigo entender direito esse conceito. O que são Provas afinal? O que eu posso aceitar como Prova em um processo judicial? Como se prova uma culpa? Daí aparece uma tal de Produção de Provas. Quer dizer que eu posso produzir eu mesmo uma prova? Fico confuso, tantos detalhes...
          O Thio olhava estupefato ao juiz. Então era isso? O seu amigo juiz tinha dificuldades em entender o que era uma prova jurídica. É claro que o Thio já tinha desconfiado disso em vista das famosas decisões tomadas pelo fake hair ao longo dos anos. Estava claro que ele sequer desconfiasse o que isso fosse. Mas como explicar o que é uma prova a alguém que tem tanta dificuldade assim? O Thio ruminava seus pensamentos tentando achar um meio.
          - Veja, como posso explicar isso a você? Ah, quem sabe você não poderia me dar algum exemplo concreto e aí discutimos em cima dele.
          - Não sei se devo, são casos sigilosos. Se bem que de vez em quando vazamos coisas pra imprensa ajudar a gente...
          - Fale como se fosse em teoria... não precisa mencionar nomes...
          - Tá. Tem um caso em que o acusador, grande chapa meu, a gente combina tudo para não dar xabú depois... pois bem, o acusador quer provar que um determinado sujeito tem um quadriplex em uma cidade litorânea e quer trazer como prova um recibo de pedágio da Rodovia Imigrantes na direção ao litoral. É claro que tal recibo existe, ele foi encontrado em uma diligência ile..., digo legal, feita na casa de um amigo do acusado.
          - Um recibo de pedágio para comprovar que alguém possui um quadriplex? É isso? Você quer aceitar isso como prova?
          - Não sei se é uma prova forte... me ajuda, Thio! Mas veja o raciocínio. Se o acusado tem um recibo de pedágio para ir ao litoral, é claro que ele tem uma razão para ir a uma das inúmeras cidades litorâneas e essa razão não pode ser outra que ir para o seu quadriplex conseguido com dinheiro de suborno... não é claro isso?
          - Um recibo de pedágio para comprovar que alguém possui um quadriplex? - O Thio não acreditava no que ouvia.
          - É... parece fraca... quem sabe se fosse um triplex?
          O olhar do Thio ainda estava perplexo com tudo aquilo, tão perplexo que até o fakinho percebeu.
          - Duplex, talvez? Não, deixemos triplex, é mais chique... o que você acha?
          - E não há nenhuma outra possível prova para tal?
          - Há um depoimento...
          - Pode ser...
          - ... de um vendedor de amendoim da praia que garante que viu o acusado por lá.
          - Viu ele entrar no prédio? Mesmo assim...
          - Não, ele o viu por lá, na praia... ou ao menos era alguém muito parecido com o acusado.
          - Ah!
          - E tem também o documento.
          - Documento?
          - É, o documento de compra e venda do quadriplex, digamos que seja do triplex.
          - Estamos melhorando.
          - Pena que não esteja assinado...
          - Como assim, não está assinado? Por ninguém?
          - É, sem assinaturas, nenhuma. Na realidade, ninguém sabe de onde veio esse documento, mas é um documento de compra e venda, né? Me ajuda, Thio, estou com tantas dificuldades com essas questões de provas... Por que é tão difícil assim?
          O Thio ficou com pena.
          - Se você ainda não tivesse perdido a aula por conta da Isildinha, né?
          - É isso, Thio, agora você percebeu, a culpa é dela! – o fake hair estava desolado. Mas o Thio sabia que ensinar o que é uma prova judicial a alguém que detém o poder como os fakinhos desse país tem é por demais da conta. Em todo o caso, estava tranquilo, pois daqui a pouco, depois da terceira cerveja eles estariam falando de coisas mais amenas.
          - E a propósito, como ela vai? Ainda a vê? – O Thio provocou.
          - A Isildinha?
          - É, ela mesma.
          -  Não a vejo mais, não, faz tempo. Brigamos, ela se decepcionou comigo pois eu não consegui passar no exame da OAB...
          - Acontece, isso acontece. Um brinde, então, às injustiças da vida!
          - Um brinde! – o fake hair levantou seu copo sem perceber a ironia.