Agora você dorme no sofá, dorme com a boca pateticamente aberta, dorme enquanto eu saboreio um sanduíche de queijo à porta da cozinha com o olhar perdido em sua direção. E eu saboreio um sanduíche de queijo enquanto recordo o longo trajeto que nos levou a esse momento: você dormindo e eu saboreando um sanduíche de queijo, duas atitudes até que banais em nossa existência banal.
Não que o longo trajeto tenha sido
longo do ponto de vista temporal, só um par de anos, talvez três ou quatro
deles, se passaram desde que saímos, meio que fugidos, de nossa cidadezinha
natal. O longo a que me refiro é por conta de, como dizer... sei lá... do que
passamos desde então, da intensidade dos (dis)sabores vividos.
Amávamos, não? Eu amava, ainda amo,
como não amar você, apesar dessa boca pateticamente aberta e ronco de acordar
vizinhos? Exagero um pouco, sei, sou desse jeito, você sabe, seu ronco é pra lá
de gracioso. Mas você também é um pouco assim, criativa e exagerada, vivemos ambos
inventando teorias pra justificar nossas mínimas ações e nos enganarmos nessa
cidade maluca que escolhemos para viver. Inventamos estórias e conspirações, só
assim se sobrevive a tanta névoa ao redor.
Conspirações são o que nos move nesses
tempos estranhos.
Sim, estamos nos enganando por aqui.
Se tivéssemos optado por outro lugar para viver que não esse apartamento de
trinta metros quadrados, talvez tudo pudesse ter sido diferente. Tudo é muita
coisa, talvez algo fosse diferente e quem sabe isso nos bastasse agora. Você
sai à rua por não suportar esse aperto, esse sufoco, eu saio ou vejo televisão,
tanto faz, leio, faço um suco, estudo. Estamos nos matando nessa cidade, já
percebeu?
Lembra quando chegamos aqui e os
trinta metros quadrados nem incomodavam? Talvez faltasse espaço para nossas loucas
acrobacias naquelas exaustivas noites iniciais, mas o que faltava de espaço
sobrava em ousadia e imaginação. Onde foi que perdemos isso? Será que foi
naquelas reuniões do centro acadêmico, nos olhares livres com que cruzamos
então? No nosso mal escondido provincialismo? Na briga contra a ditadura? Nesse
medo que, a princípio, nos excitava tanto e que virou o pavor dos porões? Na
cerveja bebida, na desperdiçada em copos sujos, no desencontro na hora de vir
para casa, na vaga lembrança de perceber seus passos ao longe com um grupo de
pessoas, foi aí que nos perdemos? Era um grupo, era uma pessoa?
Se o pão não tivesse acabado, comeria
mais um sanduíche, isso sim...
Olho para você e você ainda dorme.
Queria contar algo e não encontro maneira, contar que o seu amante acaba de
levar um tiro. Mas acho que, isso, você gostaria de saber por outra pessoa,
nunca lidei muito bem com essas coisas mesmo.
Sei que, contando eu ou não, nossos
dias juntos já se foram, se escorreram mansamente entre tantas palavras de
nossas mais banais teorias, agora elas se reduziram às suas. Desanimado, deixo
de lado a criatividade, supero o tesão que tinha por isso, só quero mesmo é me
formar na faculdade e, quem sabe, comemorar tal façanha do jeito que muitas
vezes você me prometeu.
Subimos juntos no ônibus, lembra?
Tanto tempo! Mas fingindo um distanciamento que não existia. Seu pai, lembra?
Não queria nos ver juntos. Agora não precisamos fingir, e seu pai tampouco nos
virá tão próximos agora.
Ingênuos, nós, não? Agora sei que ele
sabe de nós (mas saberá do casarão no final da rua em nossa provinciana cidade
de origem?), li na carta dele direcionada a você, aquela descuidadamente
deixada na gaveta que sempre fuço à procura dos seus segredos. Você sabe disso,
até parece mistério o que narro.
Assim como li a preocupação dele com o
seu engajamento nesses tempos sombrios. Li ou sonhei? Sonhei ou intuí? Intuí ou
esperei? Sei lá. Só sei que ele sempre foi assim, melhor fugir que encarar,
você sempre dizia dele.
Talvez ele até tenha razão, deixa pra
lá.
Você me diz que eu também fugi, me
impinge uma culpa que não é minha, mas dói ouvir isso, te amo tanto. É simplesmente
que agora me sinto mais pragmático, não quero viver pra sempre nesses trinta
metros quadrados com ruídos entupindo nossos ouvidos o tempo todo, as luzes
noturnas impedindo também nossos sonos.
- Nem eu... ou você acha que quero
isso? – você me diz chorosa apontando o nosso redor sem tirar os olhos de mim.
E eu não sei o que você realmente quis dizer com isso, onde quis me atingir com
mais gosto.
Você então muda de estória, vai saber,
sua tática de sempre, sorri só pra criar o contraponto ao que falou, e fala de
coisas sérias, me desconcerta. Sorri, só pra confirmar a seriedade do que agora
fala.
Você me promete novamente comemorarmos
juntos a minha formatura, me deixa excitado. Diz então que vai sair com uma
amiga e desaparece por meses, enquanto estudo para as provas.
- ... foi pra te deixar em paz... – teu
sorriso me esperando ontem no sofá.
Amamos, te amo, você reclama de uma
dor misteriosa. Percebo cicatrizes em seu corpo, você fugidia não me diz o que
foi. Com os olhos úmidos, parece até uma obrigação me amar hoje. Mesmo assim,
amo, nos amamos.
E agora você ronca de forma patética
no sofá enquanto o queijo que me resta mal ocupa a boca ainda faminta.
Eu tenho algo pra contar.
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