quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Ofegâncias

O segundo andar o alcançou antes que pernas menos ligeiras tivessem a mesma oportunidade.

            Ofegante, olhou para trás só para confirmar o que já suspeitava, estava bem na dianteira dessa escapada aparentemente sem sentido. Porém, a pausa curta o fez questionar sua decisão de entrar nesse edifício e já o impingia a continuar sua subida.

            Terceiro, quarto, quinto, quinto andar. Já mais lento, viu-se subitamente sem lugar para onde ir. Naquele prédio o quinto andar era o fim, o topo e, por um instante, só restariam o batuque de seu coração desesperançado e o cadenciado toc-toc dos passos que, mesmo não mais tão perto, ainda insistiam em persegui-lo.

            Agora, só restava esperar ela chegar.

E ela acabou por chegar. Não percebi se tinha chegado com o mesmo corpo do último beijo ou com os sussurros e gritos do último orgasmo, mas acabou por chegar e reconheci-a mais depressa pelo olhar do que pela forma do corpo e da roupa.

Ela era mesmo sensual e deu para perceber isso enquanto a sua respiração normalizava. A forma de beijar era mesma. Era mesmo ela. Agora apenas um pouco mais alta e com uma cor de cabelo um pouco mais escura do que a última vez em que a minha mão o tinha mexido e puxado com paixão.

Ambos sabíamos que não iríamos ter muito tempo, mas um minuto que fosse iria saber a uma vida inteira.

Agora, passada a paixão, ela dorme e eu só espero pelo que virá. Teria ela mudado tanto nesses tantos meses desaparecida que passará a me olhar diferente? O seu calor junto ao meu corpo não me diz nada.

Por isso, tinha corrido dela, fugido, mas, como sempre, ela ganhou mais uma sobre mim, conseguiu desarmar totalmente a minha autoconfiança, conseguiu convencer-me a amá-la outra vez sem trocarmos uma palavra sequer. E agora, o que fazer quando ela finalmente parar de ressonar e voltar a abrir os olhos? Acreditar que ela mudou e vá querer ficar comigo, ou resignar-me com a repetição ao que vive acontecendo nesses tantos anos que nos conhecemos? Satisfeita, desaparecerá mais uma vez e só voltará quando eu já estiver de novo ciente de sua ausência ou ficará me testando por um tempo ainda? De que forma ela irá brincar comigo dessa vez?

            Ela finalmente abre os olhos, me encara com seus lábios e eu então descubro a resposta.

            - Desculpa. Adormeci. Estava a ressonar, não estava? Sempre odiaste isso em mim… - e riu-se enquanto me abraçava. Foi este abraço apertado que me trouxe novamente à realidade. Ela não disse nada. Nem sequer abriu a boca. Porque ela nunca fala e os meus sonhos são cada vez mais perturbadores e reais. Tenho sempre receio chamar-lhe pelo nome e a Sara de manhã perguntar de quem era aquele nome que eu falei a noite toda e porque acordava sempre tão transpirado e excitado sempre que isso acontecia. Ela já tinha saído para ir levar os nossos filhos à escola e eu acabei por ficar mais algum tempo na cama. Só depois de me levantar e ir tomar banho é que percebi no papel em cima da cama. A Sara não tinha ido levar os miúdos à Escola. Tinha ido para casa dos pais. Tinha-me seguido e descobrira o meu segredo e resolvera sair de casa.

            - Ela não existe, Sara! É um produto da minha mente! Tal como tu e os nossos filhos! Nada disto existe!

            Delírios…

           Ofegâncias…

           O bar ia fechar e eu precisava de mais um copo para começar tudo de novo.


[[ Esse é o primeiro dos dois contos escritos em dueto com o poeta português João Dordio e que aparecem publicados no livro "Duetos Dordianos" (que eu costumo chamar de "Duelos Dordianos") em 2K20  pelo selo In-Finita.]]


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