Ontem
o meu abraço ficou novamente por aqui. Apenas escrito. A minha solidão está
cada vez mais insuportável e todas as minhas máscaras e todos os meus teatros
estão a tornar-se insuficientes. Ontem a minha mão ficou também novamente por
aqui… agarrada apenas à caneta. Os teus dedos assim ficam estranhos, meu amor…
Todo o meu ontem do hoje e do amanhã é percorrer-te sem te tocar nas recordações que vou escrevendo. Vou passando assim os meus dias. Escrevendo e bebendo. Ontem fui despedido. Mais uma vez. É o terceiro emprego que perco por causa de chegar ou bêbado ou atrasado. Apenas quero levar-te comigo para conheceres o meu trabalho. E para te trazer, tenho que beber e levar-te naquelas folhas todas. Eles não percebem. Não te veem e apenas me despedem e expulsam a mim. Mas tu reconfortas-me. Abraças-me e beijas-me só por aqui. Em letras. E eu não sei até quando irei aguentar isto.
Agora
sigo, como toda semana, ao correio. Envio-te mais uma carta, que novamente
seguirá sem resposta. Acumulo lembranças só para afogá-las todas na bebida,
para em seguida ressuscitá-las na forma dessa tinta seca espalhada pelo papel
branco.
E
sigo escrevendo, escrevo, envelope e envio, uma vez por semana.
A
moça que me ajuda nesse caos que é a minha casa, arrumando e tirando o pó dos
recantos invisíveis de meus pensamentos, ela estranha o quanto escrevo, menos o
tanto que bebo, mais sim o que tanto escrevo. Cria coragem e pergunta o que
tanto merece um papel em branco ser preenchido afinal e eu respondo que és tu,
tu serás sempre a única razão para um papel receber garranchos e respingos
dessa bebida amarga a que me imponho diariamente. Bebo e escrevo e relembro.
Ela sorri e segue o seu destino que, vez ou outra, passa pelo apartamento
fedido em que vivo, passa por esse espaço merecendo uma limpeza. Ela sorri, eu
também, mas eu só de pirraça, se é que posso assim dizer. E tu lês, certeza
tenho que lês meus desesperos e desesperanças, garranchos no papel em branco
que merece ser preenchido.
Vou ao correio, quem não iria se te conhecesse?
-
Já verificou se não mudou de local? Peço desculpa por estar a meter-me na sua
vida, mas já enviou tantas cartas para esta morada e nunca recebeu qualquer
resposta. Acho que deveria…
Ela
só queira ajudar, mas eu não tenho paciência para ninguém. Poderia contar-lhe
parte do que fomos e que nunca partiu, mas preferi sentar-me no chão e começar
a escrever.
-
Desculpe, mas não pode ficar aí no chão…
Saí
dos correios não porque ela estava a mandar, mas porque precisava de ir beber
para completar o que já tinha escrito. Precisava de abrir a porta. E esta porta
de correr até ti para te abraçar por letras só assim se abre.
Esta noite vomitei novamente os lençóis. A almofada já tinha adquirido uma cor que nem um coquetel de arco-íris poderia definir. Enrolei tudo e coloquei-os no lixo. Só depois me lembrei que não tinha outros. Ainda tinha algum dinheiro guardado do último emprego, mas não fui comprar outros lençóis. Fui abrir mais portas até ti. Há dias em que preciso mesmo de o fazer com mais regularidade. Esta é a minha vida. Comigo contigo sem ti …
Voltei
para casa no habitual horário da desesperança. Abri portas mas tu não
entrastes. Escancarei janelas que tu ignorastes. Deixei folhas em branco sobre
a mesa na, agora sei, vã expectativa de que surgissem, milagrosamente, tua
resposta aos meus apelos, às minhas cartas que foram se perdendo em algum lugar.
Prefiro ainda pensar que o correio andou perdendo todas aquelas cartas que
enviei, mas no fundo sei que não foi isso.
Foi
o que, então?
É
estranho, sei, mas sempre que bebo, deixo um copo a mais por perto, é tua
presença sendo requisitada, lembranças que não as deixo se perderem nunca, um
brinde necessário entre nós dois que talvez nunca mais se repita.
Agora, penso triste, só há dois caminhos a seguir. Olho para a rua e vejo os carros passando em alta velocidade, esse é um. E o outro, esquecer-te, dolorido demais para esse acabado ser que aqui bebe e escreve...
[[ Esse é o segundo dos dois contos escritos em dueto com o poeta português João Dordio e que aparecem publicados no livro "Duetos Dordianos" (que eu costumo chamar de "Duelos Dordianos") em 2K20 pelo selo In-Finita.]]
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