Os rituais, assim como as manias,
faziam parte de seu cotidiano e ele, conformado, sabia que nem valia a pena
tentar entender o porquê de tê-los ou mesmo se esforçar para mudar, já tinha
passado da idade em que isso faria alguma diferença. E do ritual consistia
sempre escrever a primeira versão do que fosse, carta, conto, romance, lista de
compras que seja, inicialmente em papel. Gostava então de ver os seus
garranchos estampados, cuidadosamente ou não, a caneta tinteiro e ocupando
folhas ou guardanapos antes de transpô-los para a máquina de escrever e, em um
segundo e último estágio, para o computador. Manias. Pois eram nessas
passagens, ou migrações como ele próprio chamava, que o texto se aprimorava,
amadurecia, tomava a forma definitiva em que deixava de ser um mero ajuntamento
de símbolos e letras e palavras e frases para começar a fazer sentido, e para
alguns aquilo realmente faria sentido, depois de impresso. O ritual se
confundindo com o processo criativo, a criação se sobrepondo às manias.
Ele acordou cedo naquele dia, estava
animado para escrever depois de meses sem inspiração. Um café reforçado, uma
caminhada revigorante pelo parque a dez minutos do elevador, e ele já estava em
frente à alva folha de papel. Com um rodar silencioso, mas preciso, do êmbolo, ele
preenchia lentamente a sua caneta tinteiro de tinta preta, sempre tinta preta.
Mas, impaciente, tudo isso era parte do ritual, lia antes o jornal, antes tomava
o seu café revigorante, andava até a janela, antes pintava um quadro bem colorido,
ouvia um CD poético, enquanto sua mente começava a se ocupar de ideias que
inicialmente seriam traduzidas a tinta em papéis alvos, ou pardos de tão reciclados
que seriam. Era, por assim dizer, o momento especial do processo criativo, era
o momento de sentir aquela febrezinha inofensiva, porém gratificante, era o
momento em que o papel deixava ser papel e as ideias viravam símbolos.
Quando a campainha tocou, ele ainda
tomava o seu café, olhava pensativo pela janela, lia displicentemente o seu
jornal, escrevia aquela carta, sincera, sucinta, mas dura. Tentou ignorar
aquele barulho estridente em seus ouvidos tentando desconcentrá-lo do bom
andamento de seu ritual, mas, a cada toque, mais e mais ele era puxado de volta
das ideias ao mundo tacanho.
O toque ansioso, monótono e repetitivo
da campainha venceu finalmente a sua resistência, despertou-o de seus profundos
pensamentos, o distraiu de sua leitura, quase o fez se engasgar com seu café
forte. Pelo toque, ele soube imediatamente que só poderia ser ela a vir
visitá-lo, tanto tempo desde a última vez
que a tinha visto, pensou com resignação. E ela não desistiria, ele sabia,
ele teria que parar o que estivesse fazendo, importante ou não, para ir
atendê-la. A campainha sim, eventualmente se cansaria de tanto soar, mas não
ela, ela nunca desiste, ela insistiria, derrubaria a porta se necessário, pois
sabia que ele estava lá no apartamento trancado com seus cotidianos.
Não tinha jeito, o jornal, o café, a
paisagem e até a carta teriam que esperar, atrapalhando assim os seus planos,
suas manias. Olhava o papel pardo em branco esperando, agora impacientemente,
pela carta, pousado na escrivaninha e que se quedará assim enquanto ela estiver
por perto. O ritual se esvaindo no espaço ao som da campainha que insistia em
tocar.
Ela só aparece quando o tempo está bom, foi tudo o
que ele pensou...
Caminhou, levantou-se e caminhou, virou-se e caminhou,
atravessou toda a sala e foi abrir a porta e lá estava ela, carinha marota de
sempre, sorriso aberto, jovial, esperando a vida passar por ela, atropelando
quem quer que fosse com suas emoções. Apesar de tudo, como é que ele poderia
não gostar daquela cena?
“Ah, Solzinho ! É você?” fingiu surpresa e sorriu, tentando
se lembrar de quando foi a última vez que a tinha visto.
“Qual a surpresa?” ela retrucou, já entrando em seu
apartamento, um beijo de passagem, como se o tivesse visto há um par de horas
apenas. Lançou um olhar curioso por todo o apartamento, ela tentava descobrir o
que ele fazia naquele momento. “Eu twittei que estava vindo para cá. Você não
viu?” ela disse finalmente.
Intuitivamente, ambos olharam para o canto da sala onde o
computador descansava desligado, eternamente em berço esplêndido. O olhar de
menino travesso então cruzou com o dela, com aquele já costumeiro desapontado e
desesperançado, mas jovial, olhar. O bom do olhar do Solzinho eram seus olhos
verdes, numa estranha combinação com sua pele meio escura. O bom de seu olhar
era que era jovem...
“Não... não li...” ainda a olhava, enquanto esperava por
sua resposta de sempre, por que é que
você não compra um aparelho deste? ela costumeiramente dizia e mostrava o
seu celular mágico, sempre por perto, qualquer coisa que fizesse dependia dele,
até respirar parecia depender dele, até amar... Mas ela nada disse desta vez,
nem sempre os rituais se cumprem, às vezes mudamos o script só por desaforo.
Ela apenas sorriu. Foi ele que complementou meio marotamente ao vê-la ir em
direção ao quarto levando a sua mochila surrada. “Quer dizer então que todos os
seus zilhões de seguidores sabem que você veio até aqui...”
“Ah, benzinho... não implica... que mania a sua!” ela
disparou com aquele jeitinho carinhoso todo dela, beicinho e tudo.
“... trepar com o velhinho...” ele completou baixinho e
marotamente, mas ela não escutou a última frase, já tinha desaparecido de seu
olhar, já seguia o ritual de deitar-se confortavelmente em sua cama, celular na
mão, codificando mensagens a meio mundo.
Sim, afinal treparam. Rituais são necessários e, afinal, o
que de melhor tinham para fazer? Ela, com aquela sua natural impaciência,
balançava a cabeça vigorosamente de um lado a outro enquanto gemia e gemia.
Movimentos rápidos da cabeça, que ele até desviava os olhos para não ficar
zonzo, braços abertos para trás e pernas curvadas, os lindos olhos fechados e
gemidos impacientes.
Gozaram rapidamente, como sempre.
Foi bom, ela
pensou.
Tudo bem,
ele retrucou mentalmente, já tinha chegado àquela idade em que se à companheira
não interessava tanto as preliminares, muito menos a ele. Ele se sentia agora
revigorado e nem se lembrava mais o que tinha deixado para trás em troca desse
momento.
Depois de fazerem aquele amor todo deles, ela montou nele e
pediu com sua voz meiga:
“Me diz alguma coisa que você nunca disse a ninguém”.
Ele então fez a sua cara predileta de pensativo e disse... inventou
algo de sopetão, o que foi possível naquele momento de torpor. Como em muitas outras vezes, ela reclamou gargalhando
e fazendo-lhe cócegas, pois ele acabava de dizer algo que já tinha dito... e
justamente a ela! E que memória ela
tinha para essas coisas. Mas pior que isso era quando ela pedia, antes do amor:
“Me faz algo que você nunca fez com ninguém...”
Como sempre, depois daqueles momentos, eles compartilhavam
um baseado enquanto ela, ainda em um estado excitado, em contraposição ao seu,
puramente letárgico, desembestava em um usual quase-monólogo onomatopéico,
contando longas histórias sem nexo. Ele sempre se admirava com a capacidade que
ela tinha de substituir as palavras pelos ruídos e pelos gestos em qualquer
conversa que fosse. Ele se divertia tanto com aquela, digamos, teatralização
que, a bem da verdade, era cada vez mais comum de se ver nos jovens e ele já
não tinha tanta certeza se aquilo era um mero ritual geracional ou uma mania
pessoal dela.
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