quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Solzinho - parte II

 


          “O que você estava fazendo?” a pergunta o pegou distraído.

          “Escrevia uma carta.”

          “Posso ver?” e seguiu em direção ao computador, mas logo se lembrou que ele estava desligado. Ela então sorriu marotamente, virou-se em direção à cama onde ele jazia pensativo e ficou à espera de algum comentário, que não veio, desistiu de esperar e foi até a escrivaninha. Só achou lá uma folha em branco, debaixo da caneta tinteiro. “Mas está em branco...” ela gritou para ele que ficou no quarto. Quando é que vou poder ler?” Nem esperou a resposta e foi logo dizendo “mas precisa escrever isto direto no computador, tá? Não consigo entender os seus garranchos...”

          “Solzinho... Solzinho...” precisou chamá-la várias vezes até conseguir a sua atenção, “Solzinho, vem cá, senta aqui...”

          “Eu gosto tanto quando você me chama de Solzinho... é por que eu ilumino a sua vida, não é?” Ele não pode evitar um sorriso enquanto escutava isto e nem deu tempo de responder quando ela completou “você me deixa ler, não deixa? Gosto tanto de ler as suas coisas. Faz tempo que você não me mostra nada.”

          “Não, Solzinho, não deixo... é uma carta, mas não para você.”

          “E por que não?”

          “Para você eu escrevo mensagens curtas, torpedos, eu twitto, estas coisas todas, nunca uma carta... vem cá, me dá um abraço,” ele insistiu. Era muito bom tê-la por perto em um dia como hoje, tempo bom. Gostava muito de sua companhia, de sua inteligência intuitiva e de seu jeito descompromissado. E de fazer amor com ela, é claro.

          Ele se perguntava muitas vezes o que a fazia voltar a ele, tinham mundos tão diferentes! Mas ela voltava, sempre voltava, ou ao menos tinha sido assim desde o dia em que cruzou com ela em uma daquelas estranhas e movimentadas feiras de quinquilharias. Ela buscava um vaso colorido enquanto que ele olhava as coleções de selos à procura de um que completasse a sua própria. Seus olhares se cruzaram em frente à barraca de adagas renascentistas e, após os rituais próprios decorrentes de um súbito encantamento mútuo, acabaram por passar o resto do domingo juntos, e outros mais posteriormente.

          Mas ele sabia que chegaria o dia em que ela cruzaria aquela porta para não mais voltar. Isso não o preocupava realmente, era bom tê-la por perto de vez em quando, faziam amor, fumavam, dividiam risadas e histórias inventadas e inverossímeis, cozinhavam e se divertiam no chuveiro como duas crianças. Mas quando ela desaparecia, parecia que nada sobrava e seus pensamentos então se voltavam a outras coisas, tanta coisa ele tinha para ler.

          “Você sabe que eu tenho quase três vezes a sua idade?” ele perguntou enquanto a cafuneava, em um dos poucos momentos em que ela se permitiu ficar quieta ao seu lado. Pouco tempo mesmo, pois logo ela se levantou para responder melhor a provocação.

          “Sim, eu sei, você já me disse isso uma porção de vezes...” ela se jogou nele fazendo cócegas, “quando você vai me mostrar os seus novos escritos?”

          “Você sabe multiplicar por três, não?” ele continuava provocando, enquanto se virava para escapar de seus dedos que o percorriam todo.

          “É claro que sei,” ela respondeu também rindo. Levantou-se de sopetão assustada e, olhando para os lados, completou “onde é que eu deixei o meu celular?”

          E ele nunca soube, até porque nunca mais falaram sobre isso, se ela procurava o celular para fazer a multiplicação por três ou se apenas estava tendo uma pequena síndrome de abstinência. Ainda ficaram alguns dias juntos, conversaram, riram um bocado, ele ainda pode observá-la bastante contando seus onomatopéicos casos com trilha sonora e direção de arte, ainda fizeram amor de novo naquela noite e nos dias seguintes.

          Alguns dias se passaram e ele foi esquecendo suas motivações para escrever o que planejava. Pois as manias, assim como os rituais, só entendem e aceitam quem as têm. Ele não conseguia escrever se outra pessoa estivesse por perto, mania, enquanto que ela não se importava nem um pouco em dividir sua rotina com ele, ou com quem quer que fosse. Horas digitando mensagens em seu celular, enquanto ouvia músicas e músicas, ritual. Ele travava quando não estava sozinho e nada o faria voltar à rotina de escrita nessas circunstâncias. Ele então aproveitava esses momentos acompanhados para por a leitura em dia e arrumar suas coisas, enquanto que ela ficava até impaciente com ele, pois gostaria de vê-lo escrever, a carta que fosse, que até fosse a outra pessoa que não ela. Ela achava que o natural seria que os dois mantivessem suas rotinas enquanto estivessem juntos.

          Até que chegou a hora, eles se entenderam bem daquele jeito que era só deles. Até que chegou a hora de ela dar uma desculpa qualquer e ir-se embora para sempre. Mas antes, ainda tomaram banhos juntos e se ensaboaram como sempre faziam nestas horas e ela ainda pediu, inúmeras vezes, para ler a carta que ele escrevia e ainda, fingindo ciúmes, quis saber para quem era. E ele ainda riu, fingiu mistério, olhou para o infinito, ficou sério. E ela ainda tentou fazer render o tempo que restava, fez graça, dançou e cantou, tentou convencê-lo a deixar ler os seus novos escritos, mas chega a hora em que o tempo muda, o tempo que era bom se torna o tempo de ir embora. Beijaram-se prometendo-se outros mais, mas ambos sabendo que não, que, assim como o sol se põe, daqui a pouco ela sai por aquela porta e vai-se embora e é tudo.

          Ela também não sabia muito bem por que tinha voltado tantas vezes àquele apartamento. Ele era diferente, uma boa pausa para tudo o que vivia em seu caótico e movimentado dia-a-dia. A calma que não conseguia desfrutar nunca, a companhia que não demandava dela o que seus colegas de idade exigiam sempre, aquele mútuo ritual cotidiano de um querendo impressionar o outro.

          Mas ambos sabiam que tinham se visto pela última vez, a menos que algum acaso os aproximassem de novo. Mas acasos não existem, eles costumavam se dizer mutuamente. De qualquer forma, não se veriam mais. Não que tivessem decidido conscientemente por isso, mas era assim que era. Era porque era e fim da história.

          Ele a viu seguir pelo corredor até o elevador sem sequer olhar para trás, ela já estava com o pensamento longe e ele não durou muito para fechar a porta de seu apartamento, deixando as lembranças para o lado de fora. O que o olhar não alcança, sequer existe, e o momento era de retomar o ritual, recuperar as manias, realçar a retidão do relógio em seu andar à espera do recomeço.

          Ele ainda tentou retomar a carta que estava em sua cabeça quando ela chegou, a carta que queria tanto escrever, mas que agora não conseguia mais, ideias confusas e incompletas substituindo a precisão de outro dia. A presença dela o fez sair de sua rotina dos últimos tempos e agora a folha de papel que esperou em branco por aqueles tantos dias, ainda teria que esperar um pouco mais. Ele se levantou, virou-se, aconchegou-se no sofá, foi à cozinha preparar um sanduíche de queijo, a televisão ligada, ouviu uma ópera, uma freada de carro ao longe, um latido, todos esses barulhos assustadoramente noturnos, e o papel esperando a sua vez de receber finalmente aquelas palavras que ele tanto ansiava poder escrever.

          Desistiu afinal, sabia que teria que recomeçar de novo todo o processo que acontecia sempre depois que ela ia embora, recomeçar o ritual, depois de terem passado aqueles ansiosos e movimentados dias juntos. Todo um processo ainda por se repetir de novo e de novo, tantas vezes ela já tinha aparecido e desaparecido, um vazio, um desânimo, uma lenta recuperação, saudades e lembranças e finalmente a vontade de voltar a escrever. Mas por ora, só restava esperar.

          Olhou pela janela, fez uma comidinha, leu vários livros, ouviu muitos cachorros e carros e ruídos noturnos, e aquele CD sorumbático também, caminhou, examinou novamente seus quadros minuciosamente, pintou outros, e dormiu sozinho nesta noite e por muitas mais que ainda se seguiriam.


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