quinta-feira, 29 de abril de 2021

Noves Fora...

 

          Às vezes, uns gritos, gemidos em meio a um incômodo silêncio, me acordam no meio da noite. O suor frio me imobiliza, me prende à cama. Quando consigo, levanto-me, vou ao banheiro da suíte de casa, subo na banheira para ter uma boa visão da rua pela janela alta. Mas nada! Ouço gritos de desespero, angustiantes gemidos, mas nada vejo, e, no entanto, parece a voz de meu irmão.

          Não há nada pior do que gritos de desespero no meio da noite, nada pior do que isso na escuridão do medo. Pareço impotente, estou impotente, sou impotente nesses momentos. Suo, ouço, assusto-me, amedronto-me, estou preso à cama, sinto meu peito arder ao escutar esses gritos todos vindo da rua. São do meu irmão? Não sei, parecem ser, temo que sejam.

          Arrisco olhar e ele não está na cama ao lado. Ainda ouço os gritos que me acompanharão pelo resto da vida, noites insones me atemorizarão até o fim. Custo a dormir novamente, mesmo com o inquieto silêncio que agora volta a reinar, só dormirei mesmo quando o coração voltar ao normal. Quando acordo, finalmente, vejo que ele está bem, dormindo, ressonando tranquilamente na cama ao lado, mas a experiência, essa noite desesperadora, me acompanhará ao longo de vários dias ainda, o temor e a angústia presentes em meu cotidiano.

          De resto, tenho uma boa vida, nada para reclamar...

Bogotá, março de 2012


[[Este conto apareceu inicialmente no livro Contos&Vinténs (Editora A Girafa, 2012).]]

quinta-feira, 15 de abril de 2021

Piaf

Há certas pessoas que vão do "je ne regrette rien" para o "ne me quitte pas" sem maiores escusas...  





[[ Acaba de sair um conto meu na Revista Intransitiva da UFRJ (vol 5, núm 1): Cique aqui ]] 

quinta-feira, 8 de abril de 2021

VInténs - VII

Intruso

          Ela, devidamente sem roupa e sem vergonha, atendeu à porta de sua casa. Ele, armado de seu sorriso e maleta de mão, adentrou-a. A casa, ela, a vida dela...

São Paulo, março de 2012



Gambiarra 2

          E foi naquele momento que ela, olhando bem fundo em seus olhos, finalmente falou. Falou tudo aquilo que ele não gostaria de ouvir, mas que estava entalado em sua garganta há tempos. Ainda estavam os dois nus, na cama, a noite tinha começado com eles fazendo amor, um amor estranho, meio forçado e repetitivo, e foi evoluindo para uma daquelas brigas cada vez mais frequentes em seus cotidianos, com as vozes subindo de tom na mesma intensidade em que o lençol ia cobrindo seus envergonhados corpos.

          E no exato momento em que ela abriu a boca para falar o que tanto o magoou, quase nada de seus corpos restavam descobertos.

São Paulo, 2009




[[Vinténs publicados no livro "Contos&Vinténs", Editora A Girafa, 2012]]

Na próxima quarta-feira, dia 14/04, haverá o lançamento do volume 5 (número 1) da Revista Intransitiva da UFRJ e que contém um conto meu.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

A partir do momento em que...

 

          Estávamos almoçando e escutando a dupla de marqueteiros fazendo sua cotidiana propaganda diária quando o Thio Therezo, de repente, declarou:

          - Querem saber? O jantar hoje é por minha conta, 100% caseiro.

          Todos sabemos das qualidades culinárias do Thio, as que eu, inclusive, já comentei por aqui um par de vezes. Mas, por conta de certos aborrecimentos que também já comentei por aqui, o irmão de minha mãe tinha deixado de nos brindar com aqueles pratos maravilhosos que só ele consegue fazer. Nada pessoal com a família, mas sim com certos críticos culinários, coisas que nem valem a pena recordar de novo.

E agora esse repentino anúncio, logo depois de ouvir os marqueteiros, encheu-nos de alegria. Claro que disfarçamos um pouco o entusiasmo, olhares brilhantes e meio sorrisos foram trocados, mas só. Não queríamos que o Thio interpretasse essa repentina alegria como uma crítica por ele não ter dividido conosco, ao longo dos últimos anos, os seus incríveis dotes culinários.

Passamos todos a tarde inteira muito curiosos para saber qual seria o prato a ser feito. Uma única dica ele nos deu: tudo seria 100% caseiro, até a bebida seria 100% caseira, um bolo 100% caseiro de sobremesa.

As horas passavam e não víamos o Thio sequer chegar perto da cozinha. Sabíamos da competência e agilidade do Thio em preparar suas receitas, mas achávamos que algum preparo prévio deveria ser essencial nessas horas.

Já eram quase sete horas da noite quando o Thio finalmente se levantou da poltrona onde passara a tarde lendo e disse:

- Bom, pessoal... já é hora de começar! – espreguiçou-se e foi em busca do seu celular. De lá, fez um par de ligações e, em seguida, foi para a cozinha para, de acordo com ele, preparar o bolo de chocolate que prometera.

Às oito horas, a comida foi entregue por um desanimado moto-boy. O Thio recolheu a comida, fechou-se na cozinha e, quinze minutos depois, trouxe os pratos para a mesa, o vinho já dentro no decanter, e anunciou o jantar.

Não que não estivesse bom, mas seguramente não estava no padrão Thio Therezo que todos esperávamos. Comemos bem, sim, e mesmo o bolo que, depois descobrimos era um de caixinha, não nos decepcionou. Mas, ficou no ar um pouco a promessa do Thio.

Como sempre, foi meu pai, crítico eterno das façanhas do cunhado, que resolveu falar. Havia, claro, um prazer nas suas palavras.

- Mas, Thio, você não disse que seria um jantar 100% feito em casa?

- E foi...

- Desculpe, mas não me pareceu...

- Veja bem, a partir do momento em que a comida atravessou aquela porta, 100% dos processos envolvidos, colocar em pratos, manter a comida quente, espalhar o tempero, ajustar o visual, tudo isso foi feito em casa e por mim. A partir do momento em que abri a garrafa de vinho, fazê-lo respirar, colocar no decanter, servir em taças apropriadas, tudo 100% feito em casa. Até o bolo que, alguém insinuou que era de caixinha, foi feito por mim. A partir do momento em que abri a caixinha, todo o processo foi 100% caseiro. Ou vocês não gostaram do meu jantar?

Um silêncio nos poupou mais embaraço, pois logo nos lembramos da tal vacina que fora anunciada na hora do almoço como 100% nacional e, dito desta forma, nosso jantar foi sim bem caseiro, integralmente caseiro.