O olhar mais estranho que vi sendo irradiado dos olhos do
Thio Therezo foi naquele dia, coincidentemente o dia de seu aniversário, em que
ele soube da existência dos túneis dois de julho. Difícil descrever,
mais parecia um olhar de total desânimo, mas também emitia, paradoxalmente, uma
pontada de lívida esperança.
Estranho,
sim, como um olhar pode refletir tanto assim?
O
desânimo de saber que pessoas constantemente se escondiam naqueles túneis, não
só hoje mas desde sempre nesse país de togas e fardas, nesse país de meirinhos
e jagunços, nesse país de golpes. Desânimo de saber que os túneis nunca tinham
ficado vazios, época que fosse de nossa história, que sempre serviram de
refúgio aos excluídos, que excluídos nunca faltaram por aqui, multidões o
frequentam dia a dia. De saber que suas teias agora se alastram por todo o
subterrâneo desta imensa cidade, crescentes a cada geração, mais escuros a cada
golpe imposto pelas elites cruéis. Suas entradas sempre vigiadas pelos
milicianos a favor das eternas capitanias hereditárias.
Assim que soube da existência deles, o Thio foi lá
visitar, foi lá saborear a pouca esperança que heroicamente ainda resiste feito
musgo em sua escuridão, foi se deliciar com os belos cantos de seus seres
eternos, compartilhar refeições substantivas, foi se deslumbrar com letras e
palavras e frases, todas elas tentando exercer os seus justos direitos de serem
livres e livros, do direito de encantarem como teatro, como poesia, como
estrelas nas suas paredes pichadas. Foi exercer o seu olhar esperançoso junto à
luminosidade de tantos outros olhares. Passou dias lá, meses, anos, sentiu o
calor humano, a compaixão e a solidariedade, experimentou o silêncio respeitoso
e o respeito silencioso, as homenagens sinceras a quem de direito.
Desde então, o Thio alterna gratas e longas visitas aos
túneis com o que elegeu como projeto de vida: escrever a bela história deles. A
cada dia, descobre algo novo sobre a imensidão que agora eles são. De como o
primeiro ramo foi construído pelos indígenas a partir de uma entrada até hoje
escondida aos fundos do colégio do centro da cidade. De como, ironia, a
horrenda estátua dos bandeirantes encobre outra de suas entradas, a que tantos
quilombolas usaram para fugir desses milicianos. De como o famoso deixa que
eu empurro, cartão postal do Ibirapuera, nada mais é do que um disfarce
para outra de suas famosas vias de acesso. Tantos pontos escondem entradas, o Obelisco,
as fontes, a Estação da Luz, a Pinacoteca, o MASP e sua famosa entrada escondida
no terceiro subsolo, o Municipal, o Parque do Povo, o Martinelli, o Copam
certamente, o Terraço Itália, a insuspeita USP tem lá também suas entradas escondidas,
até o Palácio dos Bandeirantes (lá vem eles de novo) quem diria? Túneis os há
sob toda a cidade, o ramal MMDC, o ramal Marighella, o ramal Dona Sinhá, os
inúmeros ramais quilombolas, o arco-íris recepcionando calorosamente a todos.
Todos que os buscam serão sempre bem vindos, mesmo em tempos difíceis, mesmo em
tempos de desânimo, de desesperança, tempos de pós-golpes como o que agora vivemos.
Mas que venham com o coração aberto, sem hipocrisia, sem pretensas terceiras
vias.
Os
túneis dois de julho, dizem, têm esse nome pois ele indica o dia exato da
metade do ano, o tempo passado igual ao que virá. O olhar desesperançado
olhando para trás, enquanto o outro, o ainda otimista, olhando para frente.
Seguimos, apesar da escuridão nos túneis, apesar dos
sentimentos dos que nos odeiam, apesar da violência dos que nos achacam, apesar
da maldita herança eterna de nossas elites. Mas logo virá o três de julho... há
de vir!
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