quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Chuvas - I



[[Esse é mais um conto de meu primeiro livro, “Contos que conto”, que estou republicando aqui]].  

Primeira - Chuviscos
Desde o dia em que meu irmão caiu doente, resolvemos nos mudar da casa grande que temos na capital para este pequeno sítio, meia hora da próxima cidade.
Da família grande a princípio e dizimada e desunida por estas tragédias de nosso tempo, só sobramos nós dois, conforme nossa própria decisão. O meu irmão doente e eu, sua irmã mais velha.
Temos um casal como vizinhos e caseiros que se mantêm à exata distância da casa principal e, principalmente, de nossas vidas. Só não os dispensei porque são os únicos que podem me ajudar caso aconteça algo a meu irmão. 
Nos mudamos na quinta-feira, após ter convencido o médico que isto seria o melhor para o meu irmão, tão doente que estava. Teve alta na quarta-feira e nos mudamos na quinta mesmo, sem mais demora. Improvisadamente é certo; ainda faltam os móveis que tanto gostamos mas que só virão na próxima semana. 
E os móveis daqui irão para o lixo com certeza.
Sexta-feira à noite choveu. Foi um dia calmo, com poucas coisas a fazer. Algumas arrumações, aquele excitamento que sempre se tem quando se muda. De noite choveu. 
Chovia e eu olhava pelo vidro da janela, fechada para que os insetos não nos atrapalhem durante a noite e lá estavam eles grudados do lado de fora do vidro a nos vigiarem, a esperarem com certeza que a chuva passe ou o momento oportuno em que eu abra a janela e lhes dê aconchego.
O meu irmão está sentado na velha poltrona com os olhos fechados a fingir que dorme, a ressonar fingidamente. A fingir que dorme só para não conversar comigo, como sempre faz quando estamos a sós. Respeito sua vontade e volto a olhar pela janela a chuva que continua a cair e os impacientes insetos que se agitam contra o vidro, sabe-se lá com que intenção. Quão estúpidos eles são. 
Quão estúpido este pessoal da transportadora é. Eu os avisei com antecedência da mudança mas na última hora eles sempre inventam alguma desculpa. Queria que tudo estivesse aqui quando eu trouxesse meu irmão direto do hospital.
Viro-me um pouco, um pouco a tentar esquecer-me da chuva e dos malditos insetos, e vejo que ele já não ressona mais e que sua cabeça caiu um pouco para o lado.
Daqui dá para se ver a casa dos caseiros que cuidam de tudo. Fico por um momento a observar as luzes lá na casa deles. Quem será que está acordado a uma hora destas? A chuva parece que piorou. Alguns insetos, os menores, conseguem penetrar por algum vão da janela, mas que não consigo achar. 
Já é tarde e resolvo ir dormir. Passo por meu irmão que está sentado de uma maneira muito esquisita. Tento ajeitar o seu corpo pesado. Não parece mais fingir dormir. Desisto. Faz calor agora. Apago as luzes da sala e vou-me. Deixando na sala o meu irmão doente que comigo, sua irmã mais velha, somos os únicos que sobramos de nossa família. Conforme nossa própria decisão.


[[Projeto Pegaí: é um belíssimo projeto de incentivo à leitura criado e administrado pelo Prof. Idomar Augusto Cerutti no Paraná. Na semana passada, eu doei exemplares de três de meus livros para serem distribuídos nas Estantes de Leitura. Clique Aqui]]

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